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As interfaces do Genocídio no Brasil: raça, gênero e classe (Disponível integralmente em pdf)

Enfim, está disponível em PDF a coletânea As interfaces do Genocídio no Brasil: raça, gênero e classe, organizada por Marisa Feffermann; Suzana Kalckmann; Deivison Faustino (Nkosi); Dennis de Oliveira; Maria Glória Calado; Raiani Cheregatto.

O genocídio no Brasil: uma questão complexa

Por: Marisa Feffermann; Suzana Kalckmann; Deivison Faustino (Nkosi); Dennis de Oliveira; Maria Glória Calado; Raiani Cheregatto 

Interfaces do genocídio
Interfaces do genocídio no Brasil

A coletânea que o leitor tem em mãos apresenta um dos temas mais urgentes e atuais da nossa sociedade: a temática da morte sistemática de determinados grupos sociais. 

Em outro tempo e espaço histórico (Paris, 1948), os Estados-mem- bros da Organização das Nações Unidas se reuniram na “Convenção para a Prevenção e Punição de Crimes de Genocídio” para pactuar, em una- nimidade, que a prática de genocídio “é um crime do direito dos povos”. Nessa ocasião, definem como genocídio os atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: 

a) assassinato de membros do grupo;

b) atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo;

c) submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial;

d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;  

e) transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.

A referida Convenção fora motivada pelo conhecimento internacional a respeito dos crimes do nazismo. Diante deles, viu-se uma mobilização geral em toda a Europa, ainda devastada pela sua segunda grande guerra, contra a possibilidade de retorno desse fantasma. O fenômeno do nazismo e as suas consequências genocidas ascenderam um sinal de alerta ético, político e estético nos intelectuais das principais vertentes teóricas – do liberalismo ao existencialismo e o marxismo – e instituições europeias que passaram a esboçar uma série de tratados e reflexões críticas sobre o auto- ritarismo, totalitarismo, a violência estatal e burocracia, etc. 

Nessa perspectiva, as transformações da estrutura social e das relações sociais, econômicas e culturais que ocorrem nos grandes centros urbanos têm implicações na mudança do perfil epidemiológico brasileiro, assim como nos efeitos sobre a produção da violência, e causam intensa influência na morbimortalidade das populações, pelo número de mortes, em especial, de adolescentes e jovens negros pertencentes às classes subalternas. A expansão primária do capital pelo globo terrestre – a chamada acumulação primitiva de capitais – exigia, como parte de sua viabi- lidade, de um lado, a destruição violenta de antigas formações produtivas que atrapalhassem a sua lógica e, do outro lado, a subsunção completa de populações não europeias à única forma possível de produção nesse período: o trabalho escravo. E para que esse fosse viável, no plano ético, político e estético, erige-se todo um repertório filosófico, religioso e jurídico voltado à negação da humanidade dos povos colonizados… isso talvez explique o silêncio dos melhores intelectuais europeus – todos assustados com o nazifascismo – diante do holocausto indígena, no Brasil, ou do genocídio hererós, na Namíbia. 

O curioso, para quem estuda as relações entre racismo e modernidade, é que o próprio ocidente, agora assustado com a violência sistêmica do nazifascismo, foi o sujeito dessa mesma violência que agora repudia por cinco séculos seguidos nos territórios não europeus. Aliás, como alerta o poeta martinicano Aimé Cesaire em seu Discursos sobre o colonialismo, o repúdio ocidental a Hitler não se deve ao fato desse chanceler estar à frente do saque, estupro, escravização e morte de milhões de seres humanos, mas, sim, pelo fato de tê-lo realizado na Europa, haja vista que as mesmas potências europeias que ali se colocavam contra o nazismo haviam-no praticado com outros nomes em outros locais da América, Ásia e África. 

Os números históricos não permitem desmentir o poeta. A demografia da população indígena americana decaiu de 2milhões a 4 milhões, no século 16, para menos de 100 mil indivíduos, no século 20. A população negra, a qual se objetivou fazer desaparecer completamente do país, fora alvo de todos os quesitos presentes na supracitada convenção de 1948. 

Ainda hoje, a situação é assustadora. Nas políticas públicas de saúde as inequidades são determinantes da vida, do adoecimento e da morte das pessoas, que resultam de intersecções entre as desigualdades de condições socioeconômicas, do racismo estrutural, de questões de gênero, agravadas por orientações sexuais e religiosas etc. “Raça/cor” deve ser entendida como uma variável social, não biológica, que carrega consigo construções históricas de exclusões, sendo um importante determinante da falta de equidade em saúde entre os grupos populacionais. Durante muito tempo essa informação não constava nos registros oficiais, como nascimentos, mortes, atendimentos, serviços, patologias específicas, registros hospitalares etc. Assim, como não havia a inclusão do quesito “cor” nos registros, as diferenças entre brancos e negros eram invisibilizadas e as reinvindicações do movimento negro quanto à saúde eram banalizadas e consideradas naturais. Vale salientar que retirar (ou não colocar) dos registros de dados a informação sobre a cor, inclusive do Censo de 1970 (1960 e 1980 havia a informação), foi/é uma estratégia adotada historicamente no Brasil, no sentido de manter a falácia da “democracia racial”. Somente a partir da inclusão do quesito cor em 1996 no SIM e Sinasc (Sistema de Informação sobre Mortalidade e Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos) e em todas as bases de dados em 2002, que os estudos epidemiológicos começaram no país, inicialmente sobre mortalidade e depois sobre morbidades, evidenciando o que já fora dito pelo movimento negro. As causas e as proporções das mortes são muito diferentes, quando se compara os dados referentes a brancos e negros. Elas explicitam nitidamente inequidades, determinando expectativas de vida ao nascer muito diferentes, quando se comparam os dois grupos. 

Apesar do pequeno número de estudos sobre os processos de morte, adoecimento, acesso a serviços de saúde e sequelas de doenças, eles revelam grande disparidade entre brancos e negros. 

Na produção científica das últimas décadas alguns resultados são recorrentes: 

•Entre os negros predominam mortes consideradas evitáveis, destacando-se como causa básica: ‘Causas externas’, ‘Doenças Endócrinas e Metabólicas’ e ‘Algumas Doenças Infecciosas e Parasitárias’. 

  • As causas externas (acidentes e violências), em 2014 no município de São Paulo, foram responsáveis por 8,7% do total de óbitos. Os pardos apresentaram a maior proporção (15,7%), seguidos pelos pretos (10,8%) e indígenas (8,3%). O porcentual de mortes por causas externas entre brancos e amarelos foi 6,8% e 3,6%, respectivamente.
  • A Mortalidade Materna é 4 a 9 vezes maior entre as mulheres negras do que entre as brancas, dependendo do estado e/ou cidade considerada.
  • Maior prevalência de hipertensão: independentemente de faixas etárias e do sexo, observa-se que a população negra apresenta taxas de prevalência de hipertensão maiores do que os brancos, sendo que essa taxa é sempre maior conforme se amplia a idade dos indivíduos analisados. No município de São Paulo a prevalência estimada pelo estudo ISA Capital de 2008 foi de 21% para brancos, 33,5% para os de cor preta, 20,5% para os de cor parda, 14,6% e 4,9% para amarelos e indígenas, respectivamente.

Quanto à realização de exames verifica-se menor proporção de adesão entre mulheres e homens negros, para diversos exames de prevenção (PSA, Papanicolau, mamografia etc.) e para seguimento de intervenções. Por exemplo, para realização de prevenção de 
 câncer de próstata PSA/TR no município de São Paulo observa-se maior proporção de exames, no último ano, entre brancos e amarelos. Na análise do quadro epidemiológico da saúde da população negra, ainda incipiente, são necessárias novas aborda- gens que considerem o racismo como estruturante da sociedade e procurem intervir de forma mais contundente na busca de equidade. Há lacunas importantes quando se busca informações e explicações sobre os processos de adoecimento e acesso a serviços. Muitas vezes os mais vulneráveis são culpabilizados pelo próprio adoecimento sem uma análise mais integral. 

Vale ressaltar que o acesso aos dados dos sistemas de informação desagregados por cor e sexo ainda é difícil, especialmente se desejarmos trabalhar com os dados municipais, regionais ou com os sistemas que registram patologias e uso de serviços. 

O Plano Nacional de Saúde considerou como prioridades em relação à população negra os agravos/problemas de saúde que se seguem: • mortalidade materna; • causas externas (homicídio); • mortalidade in- fantil; • doenças crônico-degenerativas: hipertensão e diabetes mellitus; • doenças cardiovasculares; • doenças mentais (depressão, alcoolismo); • desnutrição (criança, gestante, idoso); • DST/Aids; • mortalidade por Aids em mulheres negras. 

Foto: Joquim Lima / Mídia NINJA

Vale informar que em 2017, na Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), foi criado um GT (Racismo e Saúde), com pesquisadores, profissionais de saúde, movimentos sociais e gestores, que trabalha com as questões relacionadas ao racismo como determinante de saúde. Um dos objetivos do GT é aglutinar esforços para realização de estudos amplos e maximizar a difusão dos resultados de estudos e de intervenções/experiências. “O GT Racismo e Saúde é um espaço de diálogo e de articulação entre pesquisadoras/es, profissionais de saúde, gestores, movimentos que estão trabalhando com as temáticas relacionadas ao racismo, seu impacto e sua forma de enfrentamento.” (https://www.abrasco. org.br/site/gtracismoesaude/). 

Violência e saúde 

Em 1996, a 49a Assembleia Mundial da Saúde declarou a violência como importante problema de saúde pública e convocou a OMS para desenvolver uma tipologia da violência que caracterizasse “os diferentes tipos de violência e os elos que os conectariam”. Nessa perspectiva, a saúde pública parte do princípio da necessidade da compreensão da gênese e das formas de manifestação da violência e especificamente dos comportamentos violentos para refletir sobre as possibilidades de preveni-los. Buscando, dessa forma, compreender os possíveis fatores que permitem a emergência de ocorrências desse tipo de causas externas. Algumas hipóteses foram produzidas, desde a questão de comportamentos geradores de risco, o consumo abusivo de drogas lícitas e ilícitas e o envolvimento com o comércio ilegal de drogas têm sido apontados como os principais fatores de risco para a utilização de armas de fogo e, consequentemente, responsáveis por homicídios. Mais recentemente pesquisas revelaram que o registro de antecedentes policiais pode, igualmente, ser apontado como fator de risco, tanto para a morte precoce quanto para a ocorrência de deficiências físicas em jovens no começo da idade produtiva. 

A mortalidade representa a violência no grau extremo e é uma das formas mais utilizadas pelo campo da saúde para identificar a sua magnitude. Alguns autores reafirmam a mortalidade por homicídio como resultante de complexo processo de determinação, no qual atua uma série de fatores sociais, econômicos, culturais, familiares e psicológicos. 

Cartazes com imagens dos jovens normalistas do México

O contingente de jovens existentes na América Latina vivendo em situação de vulnerabilidade, aliado às turbulentas condições socioeconômicas de muitos países dessa região, provoca grande tensão, agravando diretamente os processos de integração social e, em algumas situações, fomentando o aumento da violência e da criminalidade. Essa ordem dominante tem ampliado as condições de precariedade e de vulnerabilidade dos jovens, a partir de perspectivas classistas, racistas, homofóbicas e de ordem proibicionista, que, com o pretexto de combater o crime organizado, têm funcionado como estratégia de limitação dos espaços sociais de liberdade. O conceito de Juvenicídio tem sido utilizado para discutir a situação dos jovens que sobrevivem na América Latina, sob a égide das políticas neoliberais. 

No Brasil, o tema do juvenicídio está intimamente relacionado com o que podemos denominar genocídio da juventude negra. O fenômeno do genocídio da juventude tem como fonte um conjunto de fatores que vão desde a explícita segregação social ao racismo velado. São condições que inferiorizam o negro, submetendo-o, por exemplo, às piores condições empregatícias e aos piores salários. O principal propulsor da construção desses estigmas, produzidos e reforçados pelos meios de comunicação, está alicerçado no processo histórico das discriminações e racismo no Brasil. Os indícios desses estigmas se expressam no número de mortes de jovens negros, na violência legitimada do Estado, nas chacinas e no encarceramento em massa, que tira de circulação inúmeros jovens, preferencialmente negros. 

Diante dessa subsunção substancial de vida, os movimentos negros e indígenas sempre lutaram, seja para afirmar a sua humanidade, seja para desarticular as forças materiais que o negavam ontologicamente. Diante dessa luta, chama a atenção a própria disputa de narrativas em torno de qual morte poderia ter o privilégio de ser chorada – ao invés de invisibilizada. É nesse sentido que o memorável Abdias do Nascimento escreve o livro Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mas- carado, mostrando o quanto o processo de embarreiramento racial vivido pelo negro brasileiro explica-se integralmente a partir das descrições da Convenção de 1948. 

Desde então, uma série de estudos tem evidenciado cada vez mais o caráter racial das mortes intencionalmente provocadas, especialmente pelo braço armado do Estado, mas não exclusivamente, haja vista as violações de direitos humanos no campo contra populações camponesas e quilombolas. Se é necessário falar em morte, para pensar o genocídio, é necessário considerar também as mortes em vida denunciadas por Rico Dalassan no rap Mandume quando canta “que eu já morri tantas antes de você me encher de bala”. É nesse sentido que a coletânea Interfaces do ge- nocídio no Brasil: raça, gênero e classe, organizada por Marisa Feffermann, Suzana Kalckmann, Dennis de Oliveira, Deivison Faustino (Nkosi), Maria Glória Calado, Luis Eduardo Barbosa e Raiani Cheregatto, apresenta ao setor saúde uma agenda de debates que não é nova, uma vez que os movi- mentos negros e indígenas vêm denunciando há séculos, mas ainda sem a recepção adequada. O objetivo da coletânea é trazer olhares distintos sobre a realidade da violência que perpassa a vida e a morte dos jovens e suas interfaces com a saúde. A análise dessa situação sob vários pontos de vista constitui um subsídio para construção de políticas públicas que possam enfrentar essa realidade. No sentido de ampliar essa discussão e implementar a rede de proteção aos jovens trazemos também textos pro- duzidos para o I Seminário Internacional Juventudes e Vulnerabilidade: Homicídios, Encarceramento e Preconceitos, realizado nos dias 7, 8 e 9 de junho de 2017, em São Paulo. O livro está organizado em sete blocos temáticos, a saber: I – Juvenicídio nas Américas; II – A cor do homicídio; III – Meios de comunicação como fomentadores do medo e do preconcei- to; IV – Encarceramento em massa; V – Criminalização das drogas e raça; VI – Racismo institucional e estrutural; VII – Gênero e raça. 

No primeiro bloco temático. Juvenicídio nas Américas. Os autores vão abordar a forma como o juvenicídio se apresenta em cada país, um processo que implica em condições precarizadas e persistentes que têm custado a vida de centenas de milhares de jovens na América. O conceito de juvenicídio é utilizado para descrever a situação das juventudes na América Latina, que são expostas às violências estruturais exacerbadas pela adoção de políticas neoliberais. O conceito amplia a ideia da morte real ou do simples registro da morte de jovens para um complexo proces- so de criminalização dos jovens, construída a partir do campo político e das indústrias culturais que estereotipam e estigmatizam as condutas e estilos juvenis, criando predisposições que desqualificam o mundo juve- nil e os identifica como violentos, perigosos e criminosos. A criminalização dos jovens reforça o preconceito, os estereótipos e estigmas inscritos em processos estruturantes de racialização que constituem as condições de possibilidade de que produzam relações de produção e de reprodução das desigualdades sociais. José Manuel Valenzuela Arce, autor do concei- to de juvenicídio, apresenta sua construção e relação com o conceito de feminicídio, apontando a realidade do México e trazendo a morte dos 43 normalistas de Ayotzinapa como emblemática dessa realidade. Gérman Muñoz apresenta a realidade da Colômbia com o conceito dos “falsos positivos” em seu texto “Juvenicídio na Colombia”. Em “As infantojuventu- des: “maras” e “gangues” transnacionais no Triângulo Norte-Americano- -Central (TNC) – El Salvador, Honduras e Guatemala” Nateras discute as migrações transnacionais e os atores desses processos, que ele denomina infantojuventudes. Kleaver Cruz contextualiza o genocídio nos Estados Unidos e a construção dos movimentos de resistência, especialmente dos movimentos “Black Lives Matter”. Por fim, Marisa Feffermann apresenta o genocídio como a forma de o juvenicídio se manifestar no Brasil. 

No segundo bloco, nomeado A cor do homicídio, problematiza-se as dimensões raciais do genocídio brasileiro. Em seu artigo intitulado “Genocídio dos povos indígenas no Brasil: um instrumento de mais de 500 anos”, Antônio Fernandes de Jesus Vieira (Dinamam Tuxá) fala na primeira pessoa do plural para refletir sobre os processos de racismo e de genocídio enfrentados pelas populações indígenas nesses mais de 500 anos desde a invasão europeia às suas terras. Deivison Faustino (Nkosi), por sua vez, apresenta um ensaio intitulado “Reflexões indigestas sobre a cor da morte: as dimensões de classe e raça da violência contemporânea”, onde discute, a partir de um diálogo entre a literatura, a epidemiologia e a filosofia, os padrões raciais das mortes provocadas no Brasil. Weber Lopes Góes, por sua vez, em seu “Racismo e violência em face da eugenia contemporânea”, retorna aos clássicos brasileiros da eugenia para argu- mentar que a mortalidade no país, principalmente nos últimos dez anos – 2006-2016 – tem sido uma das manifestações de eugenia contemporânea. 

O bloco III, Meios de comunicação como fomentadores do medo e do preconceito, reúne três artigos que enfocam uma instância do poder que ganha cada vez mais importância: os meios de comunicação de massa. É fato que, uma das características da sociedade contemporânea é a sua interconexão pelas tecnologias de informação e comunicação e pela disseminação desenfreada de informações. Ao lado de um processo de sitiamento do indivíduo com o esvaziamento da esfera pública, há uma profusão em escala nunca antes vista de informações, a ponto de estudos mostrarem que um cidadão médio hoje tem acesso a uma quantidade de informação em um dia maior do que um ser humano que vivia nos tempos do Ágora de Atenas durante toda a sua vida. Se isso é produto do projeto de modernidade do século 18 que se cristalizou e gerou a demanda do cidadão por estar conectado às singularidades dos fatos cotidianos, é fato que essa informação em excesso não somente gera uma ansiedade enorme como também cria mecanismos de poder por parte das elites que manejam o aparelho midiático. E, de diferentes formas, os artigos que compõem essa parte do livro tratam disso em interface com o problema da violência e do genocídio da população negra. Isabel C. Clavelin Rosa enfoca o silenciamento midiático ante os mecanismos de violência e extermínio de jovens negros nas periferias, em particular os impactos junto às mulheres, mães desses jovens. Observa-se, nesse caso, uma “exclusão do direito ao luto”, produto da desclassificação dessas vidas ceifadas pelo sistema e todos os envolvidos. Assim, há uma ação reativa por parte de mulheres negras impactadas nesse processo ao trans- formar o exercício do luto em ação de luta, rompendo um processo sis- têmico de dessensibilização operada pela indústria da mídia com esses assassinatos e, com isso, sinalizando para um reposicionamento político da violência de Estado contra os jovens negros da periferia. As trajetórias dessas mulheres negras são totalmente ignoradas pelo discurso midiático ao não se encaixarem nas narrativas de espetacularização da violência. Por isso, o sensacionalismo da violência que implica disciplinamento dos corpos se combina com o silenciamento da ação dessas mulheres negras, compondo uma forma singular de exercício do biopoder no sentido foucaultiano. Ricardo Alexino Ferreira propõe o conceito de Etnomidialogia como um campo de conhecimento voltado a refletir sobre os tensiona- mentos existentes entre a emergência da agenda das diversidades (étnica, de gênero, de orientação sexual) e a concentração do poder midiático. Enfatizando a diversidade étnica, em particular a situação do negro e da negra no Brasil. Alexino destaca o ano de 1988, do centenário da Abolição e da promulgação da Constituinte Cidadã, como um ponto de inflexão em que esse tensionamento chega a um limite de visibilidade, obrigando a um reposicionamento dos dirigentes dos aparelhos midiáticos. Assim, parte da agenda da diversidade étnica foi sendo incorporada na narrativa midiática. Para Alexino, a instância do poder midiático se transforma em um novo lócus de enfrentamentos, o autor defende a necessidade de um aprofundamento desses debates na formação dos profissionais de comunicação, uma politização desses na perspectiva do entendimento da agenda das diversidades. O artigo de Dennis de Oliveira defende a ideia de que as narrativas midiáticas, com as suas singularidades, criam uma sensação de insegurança plena e permanente. Essa insegurança permanente está presente, por exemplo, nos reality shows e nos concursos televisivos (como um pretenso modelo “pedagógico”), no noticiário sobre violência e nas lógicas narrativas das teledramaturgias em que há o confronto entre heróis e vilões. Com isso, cria-se uma ambiência de disputa permanente, de responsabilização individual pelo sucesso e fracasso, desmontando qualquer ideia de pactuação social, de estruturas de soli- dariedade. Nessa ambiência se constitui uma tríade discursiva composta por narrativas salvacionistas (de cunho religioso), meritocráticas e de securitização. Essa sensação de insegurança perene condiciona os sujeitos a viver em “estados de sítio permanentes” em que a violência pode ser exercida sem qualquer controle, daí a naturalização dos mecanismos de extermínio da juventude negra na periferia. Enfim, os três artigos apresentam contribuições densas e importantes para se refletir que o papel da mídia em relação a esses processos de extermínio é muito mais complexo do que simplesmente um problema de deformação técnica da cobertura jornalística sobre esses eventos. São questões históricas e estruturais que estão no âmago do problema. 

O bloco IV trata sobre o Encarceramento em massa e aborda o tema a partir da ótica das vidas precárias, da necropolítica, do racismo e da identidade. Paulo Cesar Malvezzi Filho apresenta o artigo “Massacre e responsabilidade na democracia do encarceramento em massa”, no qual o autor discute a crise prisional como um projeto cujo intuito é manter as hierarquias sociais e traz nuanças do encarceramento, tais como a tortura e massacres em presídios brasileiros. No artigo “Racismo, vidas precárias e o sistema de justiça criminal como máquina necropolítica”, Juliana Bor- ges defende que o Sistema de Justiça Criminal é uma engrenagem necro- política que conduz vidas precárias à prisão em um cenário neoliberal. Borges também analisa as relações entre interseccionalidade e sistema prisional. Ao longo do texto, a autora destaca ainda o racismo como uma das ideologias fundadoras da sociedade brasileira e, portanto, uma das bases vitais para as desigualdades. Em “Encarceramento em massa: Símbolo do Estado Penal”, Alfredo Nateras Domínguez debate a criminalização ocasionada por vinculação a identidades desacreditadas na América Latina. O pesquisador traz dados sobre o encarceramento de moradores das periferias de países como Honduras e Guatemala, aborda as violações de direitos humanos sofridas por esses presos e compara os presídios a campos de concentração, nos quais ocorrem extermínios silenciosos. Dina Alves, em “Rés negras, juízes brancos: uma análise da intersecciona- lidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana”, discute como a necropolítica e o racismo são estruturados na sociedade. A partir da pergunta: O que o encarceramento desproporcional de mulheres negras tem a nos dizer sobre o padrão de relações raciais no Brasil contemporâneo? A autora levanta questões importantes sobre a su- bordinação racial das mulheres negras. 

No bloco V, cujo tema é Criminalização das drogas e raça, Valenzuela Arce, no artigo “Criminalização das juventudesdiscute o tema tráfico de drogas sob o marco proibicionista, demonstra como é constituído um conjunto de mecanismos que implica um processo intenso de juvenicídio na América Latina. No artigo “A proibição de entorpecentes na República: notas sobre eugenia, urbanização e o racismo científico”, Eduardo Ribeiro dos Santos buscou averiguar a potencialidade de alguns conceitos produzidos durante o processo de restrição legal de determinadas substâncias, que seleciona categorias criminais, seja pela agenda legislativa ou judiciária. Assim como observar a produção de discursos na academia médica e através de periódicos populares, que, em alguns aspectos, nos sirva para a apreensão e análise de determinados dispositivos selecionados e acio- nados pelas relações raciais no Brasil. 

No bloco VI, intitulado Racismo institucional e estrutural, Fellipe Rodrigues Sousa e Silvio Luiz de Almeida apresentam o artigo “Raça e Ra- cismo no Brasil – Uma Perspectiva Estrutural”, onde apresentam o concei- to de racismo estrutural como o enraizamento da ideologia racista na estruturação do Estado brasileiro. Vilma Reis, em seu artigo intitulado “Mu- lheres negras – enfrentamento da violência e racismo institucional”, discute o enfrentamento da violência e racismo institucional a partir de ações de mulheres negras com vistas a uma reflexão sobre os sofrimentos e injustiças sociais, falas de muita dor, morte, prisões, humilhações, “políticas de morte” e outros temas correlatos em territórios com grande presença de negros na cidade de Salvador. Juarez Tadeu de Paula Xavier, por sua vez, apresenta o artigo “Racismo estrutural: produção industrial da des- truição de corpos negros e não normatizáveis”, onde retoma o conceito de genocídio e racismo estrutural para discutir a ausência de solidariedade e empatia no país que mais mata negros, pobres, jovens, mulheres, gays, lésbicas e transgêneros no mundo. 

No capítulo VII – Gênero e raça os autores discutem e analisam as intersecções entre raça/cor, gênero e classe social, permeadas pela orientação sexual. Alessandro de Oliveira Campos problematiza em “Masculinidades negras, subjetividades e suas (des)humanidades” como a socieda- de interage com o “homem negro”, trazendo-nos as diversidades identi- tárias e socialmente construídas nesse grupo. Partindo do princípio que o saber é construído socialmente, o autor realça a importância de não se negligenciar nenhuma forma de relação, nenhum discurso ou forma de linguagem. Jackeline Aparecida Ferreira Romio, no artigo, “Feminicídio reprodutivo: ciclos de vida, raça, corpo e violência institucional”, discute as mortes de mulheres relacionadas às limitações legais no acesso e ga- rantia dos direitos reprodutivos, especialmente das mulheres negras. Reafirma que a maioria dessas mortes poderiam ser evitáveis. Clélia Prestes, em “Juventudes negras amefricanas: genocídio como regra, saúde como resistência”, amplia e aprofunda a discussão sobre o genocídio dos jovens negros, apontando como a necropolítica atinge de forma dramática tam- bém outros sujeitos, especialmente as mulheres. Evidencia que o genocí- dio é muito maior do que o número (já muito alto) registrado de mortes de jovens negros. Segundo a autora, cada uma das mortes atinge outras pessoas vinculadas ao jovem, acarretando muitos óbitos, que não são contabilizados. Flávia Rios, em “Gênero e raça no Brasil (1978-2018) movimentos sociais, sociedade civil e Estado”, traz elementos importantes para o apro- fundamento da questão. 

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Boaventura: o Colonialismo e o século XXI

É hora de declarar incumprida uma das grandes promessas modernas. O homem branco jamais aceitou a igualdade. Novas lutas precisarão impô-la

Por Boaventura de Sousa Santos

 

Para Marielle Franco, in memoriam

O termo alemão Zeitgeist é hoje usado em diferentes línguas para designar o clima cultural, intelectual e moral de uma dada época, literalmente, o espírito do tempo, o conjunto de crenças e de ideias que compõem a especificidade de um período histórico. Na Idade Moderna, dada a persistência da ideia do progresso, uma das maiores dificuldades em captar o espírito de uma dada época reside em identificar as continuidades com épocas anteriores, quase sempre disfarçadas de descontinuidades, inovações, rupturas. E para complicar ainda mais a análise, o que permanece de períodos anteriores é sempre metamorfoseado em algo que simultaneamente o denuncia e dissimula e, por isso, permanece sempre como algo diferente do que foi sem deixar de ser o mesmo. As categorias que usamos para caracterizar uma dada época são demasiado toscas para captar esta complexidade, porque elas próprias são parte do mesmo espírito do tempo que supostamente devem caracterizar a partir de fora. Correm sempre o risco de serem anacrônicas, pelo peso da inércia, ou utópicas, pela leveza da antecipação.

Tenho defendido que vivemos em sociedades capitalistas, coloniais e patriarcais, por referência aos três principais modos de dominação da era moderna: capitalismo, colonialismo e patriarcado ou, mais precisamente, hetero-patriarcado. Nenhuma destas categorias é tão controversa, quer entre os movimentos sociais, quer na comunidade científica, quanto a de colonialismo. Fomos todos tão socializados na ideia de que as lutas de libertação anti-colonial do século XX puseram fim ao colonialismo que é quase uma heresia pensar que afinal o colonialismo não acabou, apenas mudou de forma ou de roupagem, e que a nossa dificuldade é sobretudo a de nomear adequadamente este complexo processo de continuidade e mudança. É certo que os analistas e os políticos mais avisados dos últimos cinquenta anos tiveram a percepção aguda desta complexidade, mas as suas vozes não foram suficientemente fortes para pôr em causa a ideia convencional de que o colonialismo propriamente dito acabara, com exceção de alguns poucos casos, os mais dramáticos sendo possivelmente o Sahara Ocidental, a colônia hispano-marroquina que continua subjugando o povo saharaui e a ocupação da Palestina por Israel. Entre essas vozes, é de salientar a do grande sociólogo mexicano Pablo Gonzalez Casanova com o seu conceito de colonialismo interno para caraterizar a permanência de estruturas de poder colonial nas sociedades que emergiram no século XIX das lutas de independência das antigas colônias americanas da Espanha. E também a voz do grande líder africano, Kwame Nkrumah,  primeiro presidente da República do Gana, com o seu conceito de neocolonialismo para caracterizar o domínio que as antigas potências coloniais continuavam a deter sobre as suas antigas colônias, agora países supostamente independentes.

união política africana(Julius Nyerere, Kwame Nkrumah, W.E.B Dubois, e Jomo kenyatta)

Uma reflexão mais aprofundada dos últimos 60 anos leva-me a concluir que o que quase terminou com os processos de independência do século XX foi uma forma específica de colonialismo, e não o colonialismo como modo de dominação. A forma que quase terminou foi o que se pode designar por colonialismo histórico caracterizado pela ocupação territorial estrangeira. Mas o modo de dominação colonial continuou sob outras formas e, se as considerarmos como tal, o colonialismo está talvez hoje tão vigente e violento como no passado. Para justificar esta asserção é necessário especificar em que consiste o colonialismo enquanto modo de dominação. Colonialismo é todo o modo de dominação assente na degradação ontológica das populações dominadas por razões etno-raciais. Às populações e aos corpos racializados não é reconhecida a mesma dignidade humana que é atribuída aos que os dominam. São populações e corpos que, apesar de todas as declarações universais dos direitos humanos, são existencialmente considerados sub-humanos, seres inferiores na escala do ser, e as suas vidas pouco valor têm para quem os oprime, sendo, por isso, facilmente descartáveis. Foram inicialmente concebidos como parte da paisagem das terras “descobertas” pelos conquistadores, terras que, apesar de habitadas por populações indígenas desde tempos imemoriais, foram consideradas como terras de ninguém, terra nullius. Foram também considerados como objetos de propriedade individual, de que é prova histórica a escravatura. E continuam hoje a ser populações e corpos vítimas do racismo, da xenofobia, da expulsão das suas terras para abrir caminho aos megaprojetos mineiros e agroindustriais e à especulação imobiliária, da violência policial e das milícias paramilitares, do tráfico de pessoas e de órgãos, do trabalho escravo designado eufemisticamente como “trabalho análogo ao trabalho escravo” para satisfazer a hipocrisia  bem-pensante das relações internacionais, da conversão das suas comunidades de rios cristalinos e florestas idílicas em infernos tóxicos de degradação ambiental. Vivem em zonas de sacrifício, a cada momento em risco de se transformarem em zonas de não-ser.

As novas formas de colonialismo são mais insidiosas porque ocorrem no âmago de relações sociais, econômicas e políticas dominadas pelas ideologias do anti-racismo, dos direitos humanos universais, da igualdade de todos perante a lei, da não-discriminação, da igual dignidade dos filhos e filhas de qualquer deus ou deusa. O colonialismo insidioso é gasoso e evanescente, tão invasivo quanto evasivo, em suma, ardiloso. Mas nem por isso engana ou minora o sofrimento de quem é dele vítima na sua vida quotidiana. Floresce em apartheids sociais não institucionais, mesmo que sistemáticos. Tanto ocorre nas ruas como nas casas, nas prisões e nas universidades como nos supermercados e nos batalhões de polícia. Disfarça-se facilmente de outras formas de dominação tais como diferenças de classe e de sexo ou sexualidade mesmo sendo sempre um componente constitutivo delas. Verdadeiramente só é captável em close-ups, instantâneos do dia-a-dia. Em alguns deles, o colonialismo insidioso surge como saudade do colonialismo, como se fosse uma espécie em extinção que tem de ser protegida e multiplicada. Eis alguns desses instantâneos.

Ojos de Sur Caricaturas Cartoons

Primeiro instantâneo. Um dos últimos números de 2017 da respeitável revista científica Third World Quarterly, dedicada aos estudos pós-coloniais, incluía um artigo de autoria de Bruce Gilley, da Universidade Estadual de Portland, intitulado “Em defesa do colonialismo”. Eis o resumo do artigo: “Nos últimos cem anos, o colonialismo ocidental tem sido muito maltratado. É chegada a hora de contestar esta ortodoxia. Considerando realisticamente os respectivos conceitos, o colonialismo ocidental foi, em regra, tanto objetivamente benéfico como subjetivamente legítimo na maior parte dos lugares onde ocorreu. Em geral, os países que abraçaram a sua herança colonial tiveram mais êxito do que aqueles que a desprezaram. A ideologia anti-colonial impôs graves prejuízos aos povos a ela sujeitos e continua a impedir, em muitos lugares, um desenvolvimento sustentado e um encontro produtivo com a modernidade. Há três formas de estados fracos e frágeis recuperarem hoje o colonialismo: reclamando modos coloniais de governação; recolonizando certas áreas; e criando novas colônias ocidentais”. O artigo causou uma indignação geral e quinze membros do conselho editorial da revista demitiram-se. A pressão foi tão grande que o autor acabou por retirar o artigo da versão eletrônica da revista, mas permaneceu na versão já impressa. Foi um sinal dos tempos? Afinal, o artigo fora sujeito a revisão anônima por pares. A controvérsia mostrou que a defesa do colonialismo estava longe de ser um ato isolado de um autor tresloucado.   

A “LIGA DAS GAROTAS ALEMÃS” DE HITLER

Segundo instantâneo. Wall Street Journal de 22 de março passado publicou uma reportagem intitulada “Procura de sêmen americano disparou no Brasil”.  Segundo a jornalista, a importação de sêmen americano por mulheres solteiras e casais de lésbicas brasileiras ricas aumentou extraordinariamente nos últimos sete anos e os perfis dos doadores selecionados mostram a preferência por crianças brancas e com olhos azuis. E acrescenta: “A preferência por dadores brancos reflete uma persistente preocupação com a raça num país em que a classe social e a cor da pele coincidem com grande rigor. Mais de 50% dos brasileiros são negros ou mestiços, uma herança que resultou de o Brasil ter importado dez vezes mais escravos africanos do que os Estados Unidos; foi o último país a abolir a escravatura, em 1888. Os descendentes de colonos e imigrantes brancos – muitos dos quais foram atraídos para o Brasil no final do século XIX e princípio do século XX quando as elites no governo procuraram explicitamente ‘branquear’ a população – controlam a maior parte do poder político e da riqueza do país. Numa sociedade tão racialmente dividida, ter descendência de pele clara é visto muitas vezes como um modo de providenciar às crianças melhores perspectivas, seja um salário mais elevado ou um tratamento policial mais justo”. 

Terceiro instantâneo. Em 24 de março o mais influente jornal da Africa do Sul, Mail & Guardian, publicou uma reportagem intitulada “Genocídio branco: como a grande mentira se espalhou para os Estados Unidos e outros países”. Segundo o jornalista, “O Suidlanders, um grupo sul-africano de extrema direita, tem estabelecido contato com outros grupos extremistas nos Estados Unidos e na Austrália, fabricando uma teoria da conspiração sobre genocídio branco com o objectivo de conseguir apoio internacional para sul-africanos brancos. O grupo, que se auto-descreve como ‘uma iniciativa-plano de emergência’ para preparar uma minoria sul-africana de cristãos protestantes para uma suposta revolução violenta, tem-se relacionado com vários grupos extremistas (alt-right) e seus influentes contatos midiáticos nos Estados Unidos para erguer uma oposição global à alegada perseguição a brancos na África do Sul… Na semana passada, o, ministro australiano dos Assuntos Internos, disse ao Daily Telegraphque estava considerando a concessão de vistos rápidos para agricultores sul-africanos brancos, os quais, alegava o ministro, precisavam de ‘fugir de circunstâncias atrozes’ para ‘um país civilizado’. Segundo o ministro, os ditos agricultores ‘merecem atenção especial’ por causa de ocupação de terras e violência …  Tem também sido dada mais atenção a agricultores sul-africanos brancos na Europa, onde políticos da extrema direita com contatos diretos com a extrema direita (alt-right) nos Estados Unidos têm solicitado ao Parlamento Europeu que intervenha na África do Sul. Agentes políticos contra os refugiados no Reino Unido estão igualmente ligados à causa”.

A grande armadilha do colonialismo insidioso é dar a impressão de um regresso, quando o que regressa nunca deixou de estar.

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Originalmente publicado no site Outras Palavras Boaventura: o Colonialismo e o século XXI-02/04/2018

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Clóvis Moura: O racismo como arma ideológica de dominação

Salve! A um tempo quero publicar por aqui o pensamento do Clóvis Moura! Intelectual preto que ainda esta a margem da sociologia brasileira e da branquitude como um todo. Meu objetivo é simples na medida que vou me debruçando sobre seus textos, compartilho por aqui! Tem muitos estudos sobre o pensamento do Clóvis Moura (ainda bem né) 🙂 e pretendo traze-los por aqui também.

O convite esta feito! Boa leitura para todos/todas nós!


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SEMINÁRIO

TRADIÇÕES AFRICANAS E RACISMO

Original post do Site Inzotumbansi.org

A liberdade de crença é um direito assegurado na Constituição Federal que necessita urgentemente de validade prática. Ainda que intolerância religiosa seja considerada um crime de ódio, ela continua acontecendo no Brasil e são as religiões de matrizes africanas que mais sofrem perseguição.
Se não fosse a bravura e resistência das sacerdotisas e sacerdotes, os Povos de Terreiros já teriam sido sepultados pelo racismo.

 


Neste dia 21 de Janeiro comemora-se o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, que foi oficializada em 2007 para rememorar o dia do falecimento da Iyalorixá Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum (BA), vítima de intolerância por ser praticante de religião de matriz africana. A sacerdotisa foi acusada de charlatanismo, sua casa foi atacada e pessoas da comunidade foram agredidas.

Aproveitando a data para estimular o respeito, tolerância e o diálogo inter-religioso, o mandato do vereador Toninho Véspoli, o Ilabantu (Instituto Latino Americano de Tradições Bantu), a Associação de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana Katina da Silva, e a Banda Mbeji Ariane Molina, promove o seminário “Tradições Africanas e Racismo”.

Dia: 21 de janeiro de 2017 – às 09:00 horas

Sindicato dos Metroviários – Rua Serra do Japi, 31 – Metrô Tatuapé – São Paulo/SP..

Programação

10h00: Abertura Tradicional/ Saudação aos ancestrais
Coordenação: Tata Nkisi Katuvanjesi – Walmir Damasceno – Coordenador nacional do ILABANTU
10h30: O poder legislativo e as ações politicas
Participação: Vereador Toninho Véspoli e Roberto de Oliveira – Chefe de Gabinete da Deputada Leci Brandão
11h00: Roda de Samba com Grupo Limão Rosa – sob coordenação do Mestre Limãozinho e Professora Rose
11h30: Debate: Tradição, Experiência, Saberes e Viveres Ancestrais
Coordenador: Deivison Nkosi – Cientista Social e do Grupo Kilombagem
Participação:
1. Mam`etu Luijidi, Mãe Ofa, (Kupapa Nsaba/RJ);
2. Ìyà Wanda d`Òsun – Ilé Ìyà Mi Òsun Muiywa e Afoxé Ile Omo Dada;
3. Niyi Tokunbo Mon’a-Nzambi, especialista em línguas africanas;
4. Congolês Samba Tomba, especialista em história da tradição bantu-kongo;
5. Baba Mario Filho Oníwindé Ifáṣọlá Ifárinú Olu – (Major da PM);
12h30: Almoço
14h30: Intervenção Cultural: Banda Mbeji – sob coordenação da Musicista e antropóloga Ariane Molina
15h00: Debate: Garantia de Direitos, Respeito e Combate ao Racismo
Coordenação: Liliane Braga – Maganza Ndembwemin
Participação:
1. Haydée Paixão (Advogada) ativista do movimento negro e de povos de terreiros;
2. Dote José Almir, advogado criminalista e membro integrante do Terreiro do Bogun (Salvador, Bahia);
3. Tata Nkisi Mutadiamy – Mauricio F Santos – Inzo Mutaloombô/SP
4. Damien-Adia Marassa, doutorando da Duke University(EUA);
5. Baba Anselmo Bara Sejy Esu Abyy
16h30: Intervenção Cultural: Cultura dos Tambores
17h30: Encerramento

Informações: 4165-4333 ou em https://www.facebook.com/events/1071253369686692/

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Memórias de Azânia! (África do Sul e Namíbia)

Celebração Kwanzaa, Data: 26 de Dezembro de 2015 Local: Johannesburgo.
Celebração Kwanzaa, data: 26 de dezembro de 2015, local: Johannesburgo.

Eu realmente gostaria de ter escrito muitos textos quando estava em Azânia, mas infelizmente nem sempre as coisas são como planejamos, lá eu não tinha tempo de parar e escrever, e como estava com dificuldade de conexão com a internet, dificultou um pouco mais. Acredito que seja importante relatar este momento, pois de onde eu falo ainda somos muito poucos que tiveram e tem a oportunidade de fazer um intercâmbio cultural desse tipo. Fiquei 4 meses na África do Sul (nome denominado pelo colonizador), na cidade de Johanesburgo (entre 7 de setembro de 2015 a 1 de janeiro de 2016). A realização desta incrível viagem foi através de longos anos em um trampo (foi preciso 10 anos em um emprego para fazer um intercâmbio), e através também do apoio do coletivo Kilombagem, do qual faço parte. Ir para o Continente Africano foi muito mais do que apenas um intercâmbio: representou a volta de uma filha a terra originária, representou todos do coletivo Kilombagem, representou todos os afrodescendentes fora do continente africano, representou a força de todas as famílias africanas na diáspora que lutam todos os dias para garantir o mínimo de sobrevivência para os seus, como minha mãe, mulher preta, guerreira, faxineira, que sonhava em ser psicóloga, mas devido a dureza que o sistema escravocrata e capitalista proporcionou para nós, afrodescendentes, foi obrigada a trocar a sala de aula pelo trabalho na plantação de café com apenas 7 anos de idade.

Chegando em Johanesburgo uma organização chamada Ebukhosini Solutions me recebeu com muito cuidado e alegria. Como eu tive a oportunidade de ficar hospeda nesta instituição, hoje eu entendo que é muito mais do que uma empresa empreendedora social, é uma família pan-africanista, kemetism e vegana. O líder, responsável e diretor executivo da organização é um pan-africanista chamado Baba Buntu, nascido em uma ilha na América Central, mas já vive há mais de 10 anos na África do Sul. Esta organização oferece consultas e serviços relacionados como desenvolvimento da comunidade, capacitação de jovens, treinamento de liderança, transformação social, eventos culturais, produção e educação centrada africana. Algumas atividades desenvolvidas são: seminários, palestras, Kemetic Yoga (é uma forma egípcia africana de respiração, movimento e meditação) e o Kwanzaa. Eu aprendi muito nesta organização, desde a sonhada disciplina revolucionária que muitos coletivos se esforçam e lutam para conseguir implantar, até um novo olhar para a questão da alimentação, pois como a família é vegana, eles não vêem a alimentação como algo à parte da revolução, é como se fosse uma coisa só. Confesso que antes da viagem o máximo que conseguia fazer era um ovo frito, hoje consigo cozinhar vários saborosos legumes e lembro como se fosse hoje a fala da Mama T (esposa do Baba Buntu): “Você precisa aprender cozinhar, não para fazer para alguém, mas sim para você mesma”.

Ao chegar na África do Sul passei pelo normal processo de adaptação. Mesmo correndo o risco de ser mal interpretada querendo ou não, meu contato com a cultura sul-africana foi através de um olhar de uma afrodescendente na diáspora, nascida em terras brasileiras, no continente sul americano, colonizado por portugueses, descendente de escravizados, de família da classe trabalhadora e humilde. Todos estes aspectos não são irrelevantes, pelo contrário, influenciaram a forma que eu me deparei com a cultura sul-africana. Por mais que o povo negro compartilhe com muitas coisas similares em qualquer parte desse planeta, a colonização deixou rastro em todas as partes que ela tenha se instalado. Não dá para negar a influência inglesa em alguns pratos, na forma de se vestir, na língua falada comercialmente, na arquitetura das casas, escolas e prédios (lembrava muito os filmes estadunidenses com aquelas escadas do lado de fora dos prédios). Mas isto não significa que aspectos tradicionais da cultura sul africana tenham se perdido ou não existam mais, pelo contrário, o contraste entre a cultura inglesa, europeia, indiana e a cultura sul africana é muito presente e visível de diferenciar. Outra coisa que não dá para negar (talvez muitos torcerão o nariz) é que o continente africano não é mais o mesmo que 500 anos atrás, não é mais o mesmo quando nossos ancestrais foram sequestrados, não é mais o mesmo após a invasão e a colonização europeia, sem falar do processo de globalização que não poupou nenhum país intitulado como democrático.

Na África do Sul há 11 línguas oficiais (zulu, ndebele, sesotho do sul, sesotho do norte, swazi, tswana, tsonga, venda, xhosa, africâner e inglês). Nas ruas de Johanesburgo e Pretoria a maioria da população sul africana negra fala zulu, já os sul africanos brancos falam africâner. Os sul africanos falam mais de 3 línguas na média, é algo muito comum para eles. O inglês é reconhecido como língua do comércio e da ciência, mas não necessariamente é a língua mais falada. Eu lembro que a primeira vez que eu peguei ônibus em Johanesburgo, eu saudei um “Bom dia” para um motorista negro em inglês, ele não respondeu. Depois entendi como a questão da língua tradicional é importante no continente africano, e o inglês é a língua do colonizador. Se Crummell fosse do nosso tempo ela jamais defenderia a adoção da língua inglesa como a língua a ser implantada na construção de um estado negro africano. Já para nós descendentes de africanos escravizados e colonizados a língua que nós falamos que é a língua do colonizador é apenas uma língua. Fiquei pensando em que momento e de qual forma a língua tradicional falada pelos africanos escravizados se perdeu, pois se tivesse se mantido, talvez nós saberíamos de quais reinos nossos ascendentes eram originários.

Na minha percepção a língua pode se tornar um dos fatores determinantes de separação e impedimento de unidade de um povo. Muitas vezes me sentia isolada dos interessantes debates que eles travavam pelo fato de não dominar o inglês ou o zulu. Ao que me parece, o Brasil também está isolado do mundo, como se estivesse em uma ilhazinha bem distante, como se apenas países – que, aliás, muito poucos – que falam português conhecessem um pouco do tal país chamado Brasil. Geograficamente, o Brasil está mais perto da África do Sul do que os Estados Unidos, mas na prática está muito mais longe da África do Sul do que os EUA, e não é só porque os Estados Unidos é o império dominante no mundo, a língua é um fator determinante também de aproximação. Muitos sul africanos sabem da violência policial contra a população negra nos Estados Unidos, já ouviram falar do Movimento “Black Lives Matter”, mas não sabem da violência policial contra a população negra no Brasil e nunca ouviram falar da “Campanha Reaja Ou Será Morto, Reaja Ou Será Morta!

Em Johanesburgo, no bairro de Braamfontein, estudei em uma escola de inglês chamada ABC International e lá tive grande a oportunidade de ter contato com jovens estudantes de outros países, como Angola, Moçambique, República Democrática do Congo, República do Congo, Líbia, Burkina Faso, Somália, Gabão, Burundi e Turquia. A grande maioria destes estudantes era muito jovem, de classe média, que estava estudando primeiro inglês lá para depois ingressar em uma faculdade na África do Sul. Tirando os estudantes da Turquia que eram a minoria, a maior parte dos estudantes era de negros. Conversando com muitos estudantes africanos, eles diziam que as universidades de seus países não eram boas e reconhecidas em todo Continente Africano como as universidades da África do Sul. Um dado importante é que as universidades na África do Sul são todas pagas, seja pública ou privada, os estudantes pagam e os preços não são acessíveis. Em 21 de outubro de 2015, estudantes protestaram contra o aumento do preço das matrículas universitárias[i], como a polícia é igual em qualquer parte deste planeta, recebeu os estudantes com bala de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Gostaria de ter acompanhado esta manifestação, e outras também, pois os sul africanos são muito ativos na luta por melhores condições, pois quase toda semana havia um protesto, mas em todas as vezes que estava acontecendo uma manifestação, eu estava tendo aula.

Na escola, teve vários momentos que eu jamais esquecerei, um desses foi quando eu perguntei para uma senhora da Líbia o que ela achava do ex-presidente Gaddafi (como ela fala árabe, a nossa comunicação era em inglês, na verdade tentava me comunicar em inglês, pois não era algo fácil). Ela começou a chorar, disse que o Gaddafi era louco, mas antes da derrubada dele, a Líbia tinha escolas, boa educação, não tinha roubo, sequestro e as pessoas deixavam as portas abertas da casa e ninguém entrava para roubar, e hoje está tudo destruído, não dá mais para viver lá. Eu quase chorei junto com ela, e lembrei da esperança que muitos depositaram com a entrada do primeiro presidente negro nos Estados Unidos, até Nobel da Paz ele ganhou em 2009, e é o mesmo presidente que autorizou a intervenção na Líbia. Independente das contradições que era o Gaddafi, a Líbia tinha o maior IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – de todo o Continente Africano.

A maioria dos professores na escola era brancos, desta forma o meu único contato com os brancos foi através da escola. A relação entre professores e alunos era muito boa, saudável, respeitosa e tranquila. Um exemplo que ilustra bem esta relação foi quando eu me despedi de uma atenciosa professora de origem europeia e ela me passou seu WhatsApp e me pediu o meu contato, e disse que se eu precisasse de alguma ajuda ou tivesse dúvida com o inglês era para contatá-la. Mas como nem tudo são flores, a relação entre os sul africanos brancos de origem europeia com os sul africanos negros era bem diferente e isso se refletia dentro da sala de aula. O conflito e a divisão que o apartheid proporcionou é bem visível e muito presente ainda hoje. A mesma professora prestativa que se colocou à disposição para me ajudar é a mesma que em vários momentos fez comentários problemáticos e muitos entenderiam como racistas em relação aos sul africanos negros, na atual conjuntura, se fosse em alguns espaços aqui no Brasil, já teria dado processo e nota de repúdio. Mas entre os professores brancos o que mais me surpreendeu foi a relação que eles têm com a sua identidade europeia. Exceto um professor inglês, todos os demais professores brancos que eu tive contato nasceram na África do Sul e apenas seus avós ou bisavós não tinham nascidos no continente africano, mas todos remetiam sua identidade europeia como se estivesse apenas de passagem no país africano, como se fossem verdadeiros turistas que em uma determinada data regressariam para seus países de origem.

Algo também muito presente dentro da sala de aula era a explicita desaprovação que os professores brancos tinham em relação ao atual Presidente Jacob Zuma. (Zuma é de origem Zulu e faz parte do mesmo partido do Nelson Mandela, ANC: Congresso Nacional Africano). Na escola tinha um professor branco, nascido na África do Sul, mas de origem europeia, muito simpático, não tinha ideias reacionárias, era contra o Estado, contra o atual sistema e ateu, vivia se queixando da atual política do presidente Zuma que favorecia apenas a população negra. Ele dizia que se você fosse negro você teria um emprego garantido, agora se você fosse branco não seria fácil conseguir um emprego. Era unânime a ideia entre os professores brancos de que o Presidente Zuma era burro e sem competência para administrar o país. Já o ex-presidente Nelson Mandela era bem visto, em nenhum momento eu presenciei algum comentário negativo ou alguma crítica dos professores brancos ao Mandela.

Confesso que no início estranhei bastante a visível separação entre brancos e negros presente na África do Sul, há bairros de brancos, negros e de indianos. Não que essa separação no Brasil não esteja presente, mas você apenas consegue visualizar essa separação em espaços elitizados. Para os brasileiros que não tem a consciência de classe, raça e gênero, ou para os estrangeiros ou turistas que visitam o Brasil, realmente acreditam que o Brasil é um paraíso racial, o mito da democracia racial é algo muito presente. Na África do Sul o apartheid acabou oficialmente em 1994, mas ainda é algo muito recente, minha geração vivenciou este desumano sistema, é como se fosse uma mancha que paira no país, que afeta todos, não deixando ninguém imune. Na minha percepção, é algo que não foi superado e resolvido. Para ilustrar como este tema é muito complexo, um jovem estudante do Gabão chamado Axel, uma vez disse na sala de aula para uma professora que, para ele, o apartheid não tinha acabado, só tinha mudado de forma, ela respondeu que não era bem assim, pois hoje as pessoas estão juntas no supermercado.

O racismo está presente na África do Sul e é muito forte. Comparando o racismo no Brasil e o racismo na África do Sul, entendo que é algo que não dá para mensurar qual é o pior ou qual é o menos pior, pois o racismo é racismo e é ruim em qualquer lugar desta galáxia. Mas avalio que o racismo que existe na África do Sul é tão complexo quanto o racismo que existe no Brasil, é claro que a forma como o racismo se articula e atua nos dois países é bem diferente. Na África do Sul há uma enorme quantidade de representatividade negra atuando em vários espaços, na televisão, na política, há uma classe média negra considerável e mesmo correndo o risco de estar errada, entendo que há uma burguesia negra consolidada ou em processo de consolidação. Nas ruas, várias BMW dirigidas por negros, nos Shopping Center estilo JK Iguatemi e Cidade Jardim há vários negros e não trabalhando, e sim comprando e passeando, há bairros nobres e elitizados de negros… A representatividade está presente, mas o racismo também está, há uma enorme desigualdade social e racial, muito negros e brancos pobres, mas óbvio que a pobreza se concentra em maior medida na população negra, mas isso não significa que não tenha brancos pobres. Há muitos moradores de rua, alto índice de criminalidade, muitos negros estão fora das universidades e desempregados. No Brasil os debates de empoderamento e representatividade para o povo negro estão muito presentes, e entendo que estes dois temas são importantes, mas acredito que é um erro focarmos apenas nestes dois temas para superação do racismo, pois já se mostraram insuficientes.

A África do Sul é considerada um país em desenvolvimento, tem o 2º maior PIB do Continente Africano, só perdendo para a Nigéria e faz parte do BRICS. Há casas, ruas, lojas, escolas, shopping, museus, hospitais, igrejas (a Igreja Universal também está presente na África do Sul) e casas noturnas de altíssimo padrão, como também há bolsões de pobreza, alto índice de criminalidade e desigualdade social. Há uma enorme quantidade de estrangeiros africanos de outras partes do continente. Há muitos estrangeiros que vão para estudar, ou em busca de melhores condições de vida e trabalho. Como a taxa de desemprego não é baixa, a procura por emprego entre sul africanos e estrangeiros acaba caminhando para uma disputa que se transforma em xenofobia. A mais recente onda de xenofobia ocorreu em março de 2015, deixando 7 mortos e 307 presos[ii]. A divisão entre sul africanos negros e estrangeiros negros está presente na África do Sul. Na escola, todas as vezes que eu perguntava para os estudantes estrangeiros o que eles achavam dos sul africanos as respostas eram sempre as mesmas coisas. Na visão dos estudantes, os sul africanos não são pessoas do bem e muito racistas devido a onda de violência contra estrangeiros negros. Eu perguntava se a onda de violência contra os estrangeiros negros não era uma questão de xenofobia e não racismo, muitos concordavam com minha reflexão, mas teve um jovem angolano que questionou argumentando a seguinte questão: se é apenas xenofobia, como você explica a onda de violência apenas contra estrangeiros negros e não com estrangeiros brancos? Analisando hoje essa questão, entendo que ser apenas preto não subentende que estaremos unidos enquanto povo em lugar algum, pois a escravidão e a colonização nos dividiram e a luta de classes ainda nos divide.

Como em Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné Bissau falam o português, muitos sul africanos achavam que eu era de algum desses países e o tratamento que eles me davam era de um jeito, quando eu dizia que era brasileira, claramente o tratamento mudava. Vários africanos falavam que nunca tinham visto uma brasileira, de fato não há muitos brasileiros como angolanos ou moçambicanos, mas na verdade quando eles diziam que nunca tinham visto uma brasileira, eles estavam se referindo a brasileiros negros, pois mais de uma pessoa chegou a comentar que pensava que não existiam negros no Brasil. Essa questão nos fazem pensar qual a imagem que a elite brasileira passa de sua população lá fora, haja vista que o Brasil é o segundo país em população negra do mundo, só perdendo para a Nigéria. Outra questão para refletirmos é: quem são na sua grande maioria os brasileiros que viajam para fora do Brasil?

A questão racial também é complexa na África do Sul. No Brasil, os afrodescendentes que mais se aproximam do branco conseguem circular em alguns espaços mais do que os afrodescendentes mais retintos como já bem estudado pelo Clóvis Moura. Já na África do Sul, os miscigenados chamados de “colored” tinham alguns privilégios na época do apartheid, logo a separação entre miscigenado e sul africanos está presente no país. Não são todos os africanos que têm consciência racial, nem todos são pan-africanista ou conhecem pouco sobre esta ideologia, logo deixando de lado o romantismo, não são todos os africanos que consideram os afrodescendentes na diáspora como originários de um povo só, e sim apenas americanos, latinos, brasileiros ou até mesmo “colored”.

Eu tive a grande oportunidade de ter contato com africanos de outras nacionalidades dentro da organização Ebukhosini Solutions. Fiquei muita próxima de dois talentosos músicos irmãos ganenses chamados Ofoe e Tetteh. A inteligência, gentileza e sensibilidade deles eram incríveis, nós falávamos sobre vários temas complexos como machismo, feminismo, estupro, capitalismo, religião, sexualidade…. A conexão com eles dois era tão especial que talvez meus ancestrais sejam da região que hoje é denominada Gana, apesar de que algumas pessoas disseram para mim que meus traços são parecidos com os africanos da região da Etiópia. Fiquei muita próxima também de uma linda e guerreira ruandesa chamada Ukwezi (Ukwezi significa lua em Kinyarwanda) e de sua irmã mais nova chamada Pamela. Fiquei muito amiga delas, a Ukwezi tem uma linda filhinha chamada Izaro. Sempre que possível eu tinha aula de inglês com a Ukwezi, na verdade era muito mais do que aulas de inglês, eram aulas para a vida, ela era muito inteligente, nós falávamos de racismo, feminismo, movimento rastafári, líderes revolucionários, revolução e capitalismo. Ao contrário de alguns grupos, organizações e coletivos negros aqui no Brasil que negam ou se recusam a falar sobre o estrago do capitalismo para o povo negro, em todas as conversas sobre capitalismo que eu tive com os africanos (sul africanos, ganenses e ruandês) esse tema está muito óbvio, eles entendem e visualizam nitidamente o problema que o sistema capitalista gerou para o continente africano.

Os jovens sul africanos usam roupas bem parecidas com o estilo estadunidense, mas as roupas tradicionais africanas estão presentes nas ruas, nas lojas e nos eventos que eu tive a oportunidade de participar. Achei muito bacana o estilo das sul africanas, elas usam aqueles chapéus chiques que aqui no Brasil só vimos nos filmes estadunidenses. O estilo de cabelo varia bastante: cabelos com tranças, cabelos raspados, cabelos alisados, cabelos naturais e cabelos colocados (brazilian hair é o nome denominado pelas sul africanas, faz o maior sucesso no continente africano). Há muitos salões de beleza em Johanesburgo (eu vi bastante) e o interessante é que a foto da modelo estampada na maioria dos salões de beleza é da Rihanna. Diferente do Brasil, a diva na África do Sul é a Rihanna, e não a Beyoncé. Para todas as meninas que eu perguntava, preferiam a Rihanna a Beyoncé. Acredito que alguns dos motivos da preferência pela Rihanna são: primeiro, como elas falam também inglês, conseguem entender a mensagem que a Beyoncé e a Rihanna passam; segundo, a Rihanna representa a ideia de superação e possibilidade, pois nasceu em uma pequena e desconhecida ilha chamada Barbados e hoje faz sucesso no mundo inteiro.

A África do Sul tem uma vasta e rica cultura, além das culturas tradicionais, há muitos estrangeiros de outros países do continente africano. Em Johanesburgo tem um importante e interessante bairro pan-africanista chamado Yeoville, neste bairro há muito afrodescendentes da diáspora e africanos de outros países do continente africano como Nigéria, Gana, Congo, Angola, Moçambique…. pelo que eu entendi é considerado um bairro periférico também. Neste bairro tem uma livraria com vários livros com preços acessíveis de autores pan-africanistas. É neste bairro que eu fazia Kemetic Yoga, essa atividade é oferecida gratuitamente todos os sábados pela organização Ebukhosini Solutions. Em cada encontro era um voluntário que se dedicava a passar seus conhecimentos, eu tive alegria de fazer aulas com a Mama T, Siyabonga, Pitsira, Ursula e Ted Niacky (com ele eu fiz uma interessante aula de Kemetic Boxing). Nesse bairro tem muitos rastas também, com muitas cores do reagge e do pan-africanismo, há imagens do Bob Marley e Fela Kuti.

Na primeira semana que eu cheguei na África do Sul eu fui para um maravilhoso show de jazz em Johanesburgo. O jazz e soul estão muito presentes no país, eu lembro que uma vez entrei em um ônibus ao som de Billy Paul – canção Me and Mrs. Jones. É óbvio que o hip hop e os estilos musicais tradicionais africanos também estão presentes no país. Mas o estilo musical que os jovens escutam bastante é o house music, na verdade não conheci ninguém que não gostasse de house music. Eu lembro que no dia do meu aniversário eu fui para uma festa chamada “Obrigado”, nesta festa supostamente tocaria músicas brasileiras e latinas, os DJs tocaram algumas MPB e sambas, mas tudo no estilo eletrônico, eu não sei como, mas sambei até não aguentar mais, mesmo na batida eletrônica. No show da virada do ano em Johanesburgo o estilo musical mais tocado e dominante era o eletrônico, o house music é uma verdadeira febre para os jovens. Já dentro da organização, os estilos que eles mais escutavam eram reggae, jazz e soul, mas a canção que eu tive a felicidade de conhecer e que mais me marcou foi do “Wambali – Ndimba Ku Ndimba”. [iii]

Na África do Sul o transporte mais comum e usado pela população negra são os chamados táxis (são parecido com lotações para nós), estas lotações são privadas, o custo não é muito caro e você vai sentado, (diferente do transporte público aqui em São Paulo, que você paga caro e com muita sorte, luta, briga e discussão consegue um lugarzinho sentado). As lotações geralmente não estão em situações boas e, infelizmente, há muito acidentes. Há ônibus e trens também, mais o que mais me chamou atenção foi o trem bala chamado Gautrain que liga Sandton ao aeroporto, e liga também Johanesburgo a Pretória. Foi a primeira vez que andei em um trem bala, o trem é muito moderno, bonito e rápido, o problema que é não é um transporte acessível à população local, há muitos turistas e brancos, você encontra negros também, mas da classe média e alta.

Tive a oportunidade de visitar a Namíbia através de uma organização chamada Namibian Brazil Friendship Association (NBFA). Esta organização me convidou a fazer várias apresentações sobre a situação da população negra no Brasil (violência policial, racismo e homicídios do povo negro) em várias universidades e organizações. Fiquei 4 dias na capital em Windhoek (entre os dias 19 a 23 de outubro de 2015), em uma pousada que tinha, na sua grande maioria, angolanos. A Angola faz fronteira com a Namíbia, logo, há muitos angolanos estudando e morando na Namíbia. Nas apresentações que eu fiz nas universidades, os estudantes eram muito poucos e conheciam praticamente nada sobre o Brasil. A apresentação que teve maior número de jovens foi em uma organização fora da universidade chamada Young Achievers Empowerment Project. O encontro foi na sede da organização, foi a apresentação mais interativa, os jovens fizeram muitas perguntas. Entre várias perguntas, uma que mais me chamou a atenção foi a pergunta de uma linda jovem namibiana, ela perguntou se eu me considerava negra. Respondi que sim e perguntei porque não me consideraria negra, ela respondeu que o motivo da pergunta era porque meu cabelo era diferente e agradeceu por eu me considerar negra.

A República da Namíbia tem uma linda história de luta e resistência, conseguiu sua independência da África do Sul através de muita luta na década de 90. A língua oficial é o inglês, mas muitos namibianos falam oshiwambo como sua primeira língua, outras línguas faladas também são nama/damara, kavango,hereró, africâner e o alemão (estas duas últimas falada pelos brancos). Eu vi muitas lojas e escolas com informações em alemão, há muitos alemães ou pessoas de origem alemã na Namíbia. A arquitetura dos prédios e o povo namibiano lembram muito os sul africanos, as ruas em Windhoek são extremamente limpas, lembra a cidade de Pretória na África do Sul. A forma comum de se locomover na capital da Namíbia é através de táxi, diferente do Brasil, o táxi é barato. É uma forma de transporte privado, mas a forma de utilização lembra o transporte público porque os taxistas não atendem um passageiro apenas, em uma viagem eles geralmente atendem 4 passageiros ao mesmo tempo. Há ônibus, mas ainda são muito poucos, o governo ainda está no processo de implantação de transporte público que atenda a demanda da população.

A incrível oportunidade de ter ficado com uma família pan-africanista foi uma das experiências mais significativas que eu tive em Azania. O caloroso acolhimento de toda a família, que morava e frequentava a eBukhosin, é algo impossível de descrever com apenas palavras. O cuidado que todos me receberam foram verdadeiros gestos de uma família que estava recebendo o regresso da filha mais nova, uma filha que estava de férias em algum país um pouco distante, mas que nunca deixou de ser esquecida e com prazo de retorno estabelecido. A cumplicidade e a vivência na casa ajudaram também para o fortalecimento desse sentimento de filha, tendo como pais Baba Bantu e Mama T, tendo como irmãos e irmãs (correndo o risco de faltar alguém) Ofoe, Siyabonga Moringe, Tetteh, PitsiRa, Thabiso, Patrick, Siyabonga Lembede, Phumulani, Mabule, Thabo, Ukwezi, Disebo, Mbaliyethu, Pamela, Nonhlanhla… As atividades que eu tive a grande oportunidade de participar como seminários, palestras, Afrikan Lunch, Yoga, eventos, Kwanzaa, debates e encontros com outros jovens líderes foram fundamentais para reforçar o espírito e atos de unidade, solidariedade, disciplina, práticas revolucionárias e um orgânico e ativo pan-africanismo como algo possível e viável. Hoje visualizo que o conjunto de todas essas atividades foi para além da aprendizagem, se tornou uma verdadeira transformação espiritual e mental. É algo que está e sempre estará presente em cada direção, passo e posicionamento na minha vida em diante. Sou grata a família eBukhosini e a todas que diretamente e indiretamente fizeram parte dessa maravilhosa oportunidade, experiência e aprendizado.

A experiência e aprendizado que eu tive na África do Sul e na Namibia foram incríveis, algo que levarei para vida toda. Uma das coisas que eu tive a oportunidade de vivenciar e participar foi do Kwanzaa (é uma celebração comemorada entre os dias 26 de Dezembro a 1 de Janeiro por milhares de africanos e afrodescendentes ao redor do mundo). Desde 2002, a Ebukhosini Solutions junto com outras organizações realizam a celebração do Kwanzaa, entre várias atividades tem música, poesia e boa comida. Eu já tinha ouvido falar dessa celebração, mas confesso que conhecia muito pouco, não entendia o real objetivo e nunca tinha participado. Hoje eu entendo a importância dessa celebração, e entre os princípios do Kwanzaa (Umoja: união; Kujichagulia: auto-determinação; Ujima: trabalho coletivo e responsabilidade; Ujamaa: economia cooperativa; Nia: propósito; Kuumba: criatividade; Imani: fé), a união é o que mais me chamou a atenção. Na celebração havia muitos africanos de outras nacionalidades e de várias religiões. A celebração do Kwanzaa no Brasil e em outras partes desse planeta pode ser o caminho ou uma das possibilidades para construção da sonhada unidade para o povo africano dentro e fora do continente africano.

Veja as fotos aqui: https://flic.kr/s/aHskuZ31C7

[i]http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2015/10/21/estudantes-enfrentam-policia-em-frente-ao-parlamento-na-africa-do-sul.htm

[ii]http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/04/1618597-ataques-xenofobos-na-africa-do-sul-deixam-7-mortos-e-307-presos.shtml

[iii] Wambali – Ndimba Ku Ndimba: https://www.youtube.com/watch?v=uFiWZceyRI4&feature=youtu.be

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Phil Anselmo: O ícone do Metal e a Alienação Coletiva

Por William Mumu Silva

Phil Anselmo - Pantera, advoga a supremacia branca
Phil Anselmo advogando a supremacia branca – CLICK NA IMAGEM PARA ASSISTIR O VÍDEO

“White Power”! Bradou orgulhoso e de peito estufado enquanto fazia a saudação nazista, um dos ícones do metal mundial, o ex-vocalista do Pantera, Phil Anselmo. Sua atitude racista talvez se transforme em mais um “arrependido” pedido de desculpas feitos por um descontrolado beberrão que os headbangers[1] tanto adoram.

Abro meu computador e vejo todo tipo de mensagem saltando na tela, umas em repúdio, outras em apoio a Phil Anselmo, que se tornou o trending topics[2] mundial como o mais novo famoso racista do momento.

Nos dias de hoje ser racista explícito não chega a ser um problema tão grave, principalmente se você for famoso. Os caminhos tortuosos da intolerância e o desejo de supremacia racial tomam corpo massivo nas ruas americanas e pasmem, nas brasileiras também.

Nos EUA, terra de Phil Anselmo e da “Lei de Lynch”[3], muitos dirão que não é mesmo um problema a prática do extremismo racial. Por lá temos Donald Trump concorrendo à presidência da república e a volta das atividades midiáticas da Ku Klux Klan, entre outras coisas.

No Brasil temos as bancadas evangélicas na câmara, Luciano Huck na TV e ex-militares como o deputado Bolsonaro, cumprindo o papel de fascistas tupiniquins. Por aqui o crime de racismo se quer existe, é injuria racial, o que sabemos não ser exatamente a mesma coisa, mas não entrarei nessa seara.

Muitas pessoas não enxergam violência em um fato como esse executado pelo músico, então partindo desse ponto, posso dizer que, minimamente, esse tipo de ação gera desconforto, mas lidar com o desconforto parece ser tarefa exclusiva para quem sofre a ação de injúria e violência, por isso não há tanta preocupação na tratativa da causa raiz do problema.

Scott Ian do Anthrax, que é judeu, disse em suas redes sociais: “Tudo isto é perigoso, não importa qual o contexto. Tenho tolerância zero para tudo isto e não protestar contra é tão perigoso quanto o ato em si”. Deveríamos mesmo ter tolerância zero, mas na cena metal, não é bem assim. Os headbangers foram se tornando conservadores ao longo dos anos e os casos de racismo são cada vez mais frequentes e explícitos, a intolerância é cada vez mais alta.

Pantera à frente da Bandeira dos Confederados, símbolo da supremacia branca nos E.U.A.
Pantera à frente da Bandeira dos Confederados, símbolo da supremacia branca nos E.U.A.

A Bandeira dos Estados Confederados da América virou adereço da nova moda Rock and Roll. As bandas, que obviamente entendem o real significado desse símbolo, espalham sua mensagem livremente pelo mundo, já os fãs, repetem discursos de ódio racial travestidos de símbolos de uma ideologia rebelde. Devemos aplaudir tamanha perspicácia na construção de um ecossistema tão bem elaborado e eficaz.

Phil Anselmo vendo o tamanho do barulho gerado, pediu desculpas, mesmo sabendo que não teria grandes problemas a longo prazo, mas como um garoto mimado, colocou a culpa na bebedeira regada a “vinho branco racista”. Esse tipo de atitude mesquinha valida nessa sociedade atual o fato assombroso de que se estivermos supostamente bêbados podemos praticar qualquer ação violenta ou de injuria racial, bastando depois se desculpar na internet por beber um pouquinho demais.

Não podemos mais a apologia à supremacia racial com rebeldia, discursos de ódio com gritos de liberdade. Se continuamos fazendo isso, passo a acreditar que estamos vivendo um período de Alienação Coletiva no rock.

Rob Flynn, vocalista do Machine Head, fez um vídeo sobre o caso e nele acusa Phil Anselmo de racista baseado em seu relato pessoal dos fatos ocorridos nos bastidores do show. Por ser caucasiano e não ter vínculo emocional com o nazismo, como é o caso de Scott Ian, acho louvável a coragem e o posicionamento do vocalista, apesar de também achar uma atitude deveras oportunista de marketing espontâneo.

Analisando a naturalidade com que Phill Anselmo usa a saudação nazista, me dá a entender que isso é algo comum em seu cotidiano nos bastidores entre amigos, nesse caso, seria essa a primeira vez que Flynn ouvia essa “piada”? Seria essa a primeira repreenda que ele daria em Phil Anselmo? Não tenho motivação em tentar demonizar a crítica feita por Flynn, respeito todos que se posicionam firmemente, seja lá por qual motivação, contra atos racistas, porém, a alienação coletiva não é extirpada em um único e isolado posicionamento perante a fatos constantes e repetidos, somente mudança nas atitudes diárias podem tratar os sintomas dessa doença. A questão é saber se quem oprime se reconhece como racista, e se está disposto a se tratar verdadeiramente.

Down
Créditos William Mumu Silva!

Acredito que ninguém é obrigado a apoiar uma causa específica, mas o mínimo do bom senso e respeito são requeridos na convivência em sociedade, omissão também é crime, não cível, mas moral. Nessa linha de pensamento Sebastian Bach, ex-vocalista do Skid Row, em seu Twitter demonstra um pouco de sanidade: “O rock deveria ser diversão. Perverter a música em ódio? Não é divertido. Pessoas que dizem “white power” são idiotas. Assim como aqueles que concordam. Ou que ficam em silencio”.

O Silêncio e a mentira são convenções que afirmam privilégios sociais e são as formas mais discretas para se tornar um racista ativo de boa índole na sociedade. Atitudes como a de Phil Anselmo permeiam o inconsciente coletivo e calcificam o pensamento racista que posteriormente tendem a transbordar nas ruas em forma de atitudes intolerantes e violentas.

Como alguns podem pensar, isso não tem nada a ver com a costumeira má interpretação do termo “politicamente correto”, mas sim com uma sociedade doente sofrendo de alienação coletiva muitas vezes promovida por pessoas com grande alcance midiático em seu país, ou em seu nicho de convivência social.

O psiquiatra e filósofo, Frantz Fanon, em “Racismo e Cultura” nos ajuda a entender que a alienação é um fato real. Para ele a alienação não se limita a nossa subjetividade, é algo concreto em nossas relações reais em todos os ambientes de convivência, neste caso a tribo do Rock e Metal.

Apresentação do DOWN - Carioca Club, 2013 - William Mumu Silva!
Apresentação do DOWN – Carioca Club, 2013 – William Mumu Silva!

Fanon também diz:

O racismo, não é mais do que um elemento de um conjunto mais vasto: a opressão sistematizada de um povo. O exotismo é uma das formas desta simplificação. Partindo daí nenhuma confrontação cultural pode existir. Por um lado, há uma cultura à qual se reconhecem qualidades de dinamismo, de desenvolvimento, de profundidade. Uma cultura em movimento, em perpétua renovação. Frente a esta, encontram-se características, curiosidades, coisas, nunca uma estrutura.

A fala de Frantz Fanon neste caso dialoga com o fato de que apesar da indignação por parte de outros músicos da cena rock e metal, não há confrontação cultural efetiva, pois tal atitude, mesmo para aqueles que se opõem a saudação nazista, batem de frente com suas supostas conquistas e privilégios históricos e sociais. Não basta romper em discurso único contra atitudes racistas, pois se no cotidiano não houver a prática de respeito e igualdade sócio cultural, não haverá mudanças estruturais na sociedade, sendo assim, a benevolência e aceitação de pedidos de desculpas em casos como esse, tendem a continuar se multiplicando.

Fiz muitos bons amigos na cena rock e metal, aprendi a andar nas ruas e a viver como um gladiador urbano sem pudores ou amarras por conta do Heavy Metal. Extravasei ódio, amor e tristeza na distorção das guitarras, no rufar de bumbos duplos e nos guturais animalescos de músicos cheios de postura e atitude. Estive sempre ao lado de boas pessoas que respeitavam e ainda respeitam nossas diferenças raciais e culturais, entendendo que enxergamos o mundo a partir de pontos de origem diferente, ainda hoje não espero menos de qualquer amigo Headbanger.

Como Headbanger Negro, redator e fotógrafo de sites e revistas do gênero, porém consciente de minha história étino-cultural, tenho motivação natural para me posicionar estruturadamente ante um fato que considero de extrema violência, hoje psicológica, amanhã física e letal, contra meus semelhantes negros, índios e qualquer outro povo considerado como minoria a ser massacrada por extremistas de uma suposta supremacia branca.

Já tive a oportunidade de fotografar Phil Anselmo com o Down duas vezes para revistas de Heavy Metal, e mesmo não sendo fã de Pantera ou do Down, é impressionante sua presença de palco e qualidade musical, por isso, como fã de música acho uma pena ver um dos maiores ícones do metal dos anos 90 se destacando por atitudes racistas e intolerantes, ao invés de ser por suas músicas.

Como cidadão africano em diáspora, fico indignado com os níveis de alienação coletiva dentro de uma cena que me acolheu quando adolescente, me tratando até então, como semelhante. Fico deveras indignado ao ver alguém tendo uma atitude explicitamente racista se safando por fazer um simples pedido de desculpas, transformando suas inspirações racistas em uma simples bebedeira e brincadeira de mal gosto. Acredito que Phil Anselmo não tem nada de inocente, e seu gesto não merece o perdão pela simples atitude de perdoar.

Apesar de ver muitos exemplos de conduta semelhante à de Phil Anselmo na cena rock e metal, especialmente nas redes sociais, ainda prefiro não generalizá-la como racista, pois sempre haverá boas pessoas e o contraponto a qualquer mal comportamento, além do fato de não conseguir medir assertivamente se a sociedade racista influencia o rock ou se o rock fascista influencia a sociedade racista.

Independentemente de qualquer coisa, enquanto as pessoas não estiverem dispostas a mudar a motivação de seus atos na vida real de forma cotidiana, ainda veremos muitos gritos pró supremacia branca vindos de futuros arrependidos beberrões como Phil Anselmo. Definitivamente estou velho e saudoso demais por estar afetivamente apegado ao século passado, quando falar de Phil Anselmo era somente falar de Heavy Metal.

[1] Headbanger (também chamado de Metalhead): É a denominação em inglês para os de fãs de heavy metal e suas variantes. No Brasil são chamamos Metaleiros, mas esse termo é considerado pejorativo para muitos fãs de Metal Extremo.

[2] Trending Topics: É uma lista gerada em tempo real das frases mais publicadas no Twitter ao redor do mundo. De forma simples são os Assuntos do Momento na internet.

[3] Lei de Lynch: O termo linchamento surgiu em 1782 a partir da expressão “Lei de Lynch” (Há controvérsias), a mesmo referia-se a ações praticadas pelo fazendeiro e político Charles Lynch. Charles teria usado a força contra suspeitos durante a Guerra Revolucionária Americana liderando um grupamento da Virgínia contra os suspeitos britânicos durante a guerra. Os capturados que eram julgados pela Lei de Lynch, eram sentenciados a chicotadas em público, prisão ou trabalho forçado. Há quem afirme que a origem do termo tenha surgido não de Charles, mas sim do capitão Willian Lynch. Que junto com aliados do condado Pittsylvania County, cunhou o termo “Lei de Lynch”, para penas severas que eles aplicavam.Há ainda quem credite a origem do termo, ao nome do prefeito irlandês, James Lynch Fitzstephen que em 1493, enforcou publicamente seu próprio filho na sacada de sua casa após condena-lo pelo assassinato de um visitante espanhol.

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Clóvis Moura e Florestan Fernandes

O protesto escravo na derrocada do sistema escravista nas obras Rebeliões da senzala e Brancos e negros em São Paulo

Por DIEGO RICARDO PACHECO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do grau em Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Diego Ambrosini

 

INTRODUÇÃO

 

 

 

Pensar o Brasil é pensar o negro[1]brasileiro. Ou seja, é pensar um Brasil negro. Todos aqueles que se voltaram à história brasileira com a finalidade de contribuir para o debate de sua formação e desenvolvimento, tiveram que necessariamente atentar-se às contribuições dadas pelo povo negro em solo nacional[2]. Porém, observamos que nem sempre esse ―resgate histórico foi feito com o intuito de consagrar ao negro contribuição relevante na formação brasileira. Quando muito, sua contribuição resulta em esforços à cultura (música, dança, comida etc.), fazendo com que o problema da ―integração do negro ao regime de trabalho escravo no Brasil seja visto como um problema de aculturação[3]. Destarte, a dinâmica das condições do negro sendo posto em relação direta com o modo de produção escravista é substituída pela sua inadaptabilidade vindo da África e sendo inserido nos padrões organizacionais europeus, manifestando-se em ―choques culturais. Ou seja, um problema de não adaptação do negro africano à cultura do colonizador europeu. Isso é observável napredominância das interpretações que proliferaram na primeira metade do século XX que contemplavam o arcabouço apenas do sincretismo das religiões, da língua e até dos quilombos (vistos apenas como movimento de retorno à organização social africana). Esse pensamento se desdobrará e será o suporte de uma das mais eficazes ideologias das relações raciais no Brasil: a democracia racial.

A expressão ―democracia racial, embora tenha sido vulgarmente assimilada à figura do antropólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) não é encontrada em sua obra. Na verdade, ela só vem aparecer tardiamente na literatura sobre as relações raciais no Brasil, mais especificamente na década de 1950[4]. Nesse autor, encontraremos uma referência similar, quando de um ciclo de palestras em que participa em Indiana, Estados Unidos.

―… o seu sistema excessivamente paternalista e mesmo autocrático de educar os índios desenvolveu-se às vezes em oposição às primeiras tendências esboçadas no Brasil no sentido de uma democracia étnica e social‖ (FREYRE apud GUIMARÃES, 2001, p, 148).

Mas a ideia de uma ―democracia étnical no Brasil, em que a cor não seria um empecilho ao acesso às oportunidades e riquezas produzidas, já povoava o imaginário dos países europeus e americanos a muito tempo antes dessas ideias ganharem espaço no debate acadêmico e político nacional. Podemos perceber isso em uma intervenção feita pelo abolicionista Frederic Douglas em uma palestra em 1858, como apresenta o professor Antônio Sérgio Alfredo Guimarães:

Mesmo um país católico como o Brasil — um país que nós, em nosso orgulho, estigmatizamos como semibárbaro — não trata as suas pessoas de cor, livres ou escravas, do modo injusto, bárbaro e escandaloso como nós tratamos. […] A América democrática e protestante faria bem em aprender a lição de justiça e liberdade vinda do Brasil católico e despótico. (GUIMARÃES, 2001, p, 149).

De fato, esse debate ganhará maior repercussão no Brasil com o surgimento e vulgarização da ideia de ―cultural, que contrapondo-se às concepções de ―raçal, nega o carácter irreversível da inferioridade moral e psicológica do negro, como essa última apregoava. Ainda distante de representar uma melhoria na situação do negro no Brasil, será uma maneira eficiente de incorporar essa parcela da população ao plano econômico e principalmente ideológico brasileiro.

Após o ano de 1945 e com o fim da ditadura varguista, abre-se o período democrático no Brasil. É o momento em que teremos o avanço do debate politico sobre os rumos da democracia no país, seja ela econômica, social, politica e também racial (essa última na ordem do dia das pautas dos movimentos negros da época). Não podemos perder de vista que a ideia de uma ―democracia racial‖ no país vai também de encontro a demonstrar o avesso dos conflitos raciais que se reproduziam nos Estados Unidos. Somente com o projeto da UNESCO sobre as relações raciais no Brasil que durou entre 1952/55 (e que buscava encontrar em solo nacional os elementos de uma convivência étnica não conflituosa) que o debate sobre a existência de uma democracia racial no país ganha maior visibilidade. O sociólogo Clóvis Moura (1925-2003) refere- se a esse debate da seguinte maneira:

Esses estudiosos, verdadeiros químicos antropológicos, sociológicos e historiadores analisavam os movimentos sociais dos escravos negros como se eles não estivessem engastados em um modo de produção, mas se limitassem à soma ou subtração de traços culturais africanos e ocidentais, para ver-se se esses movimentos antiaculturativos eram uma rejeição completa aos padrões culturais ocidentais ou podiam ser compreendidos através dos conceitos de sincretismo, aculturação ou assimilação (MOURA, 1988, p, 10).

Esse esforço voltado para a participação do negro na formação social brasileira enquanto contribuinte da cultura nacional nos revela importante passo dado na quebra dos paradigmas de um debate que tinha por principio elidir qualquer que seja a contribuição do negro na formação nacional. Lembremos que o projeto politico brasileiro do fim do século XIX, o ―branqueamento, tinha por pressuposto o desaparecimento gradativo do negro no seio da sociedade brasileira através da miscigenação.

A tese do branqueamento baseava-se na presunção da superioridade branca, às vezes, pelo uso dos eufemismos raças ―mais adiantadas e ―menos adiantadas‖ e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata. À suposição inicial, juntavam-se mais duas. Primeiro – a população negra diminuía progressivamente em relação à branca por motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior incidência de doenças, e a desorganização social. Segundo – a miscigenação produzia ―naturalmente‖ uma população mais clara, em parte porque as pessoas procurassem parceiros mais claros do que elas. (A imigração branca reforçaria a resultante predominância branca.) (SKIDMORE, 1976, p, 81).

Por outro lado, essa interpretação da ―integração do negro sendo feita, como já foi dito, predominantemente pela via cultural, sem uma verdadeira ―integração econômica, social e politica, deita um véu sobre as contradições fundamentais do sistema escravista (as relações antagônicas entre a força de trabalho escrava ante os detentores dos meios de produção colonial), culminando em um entendimento do papel do negro na formação nacional em que seus esforços são voltados, por todo o período colonial e persistindo no pós – abolição, aos elementos de sincretismo[5]na formação da cultura brasileira. Esta passagem bastante elucidativa da antropóloga Lilian Schwarcz (1957-) não deixará dúvidas sobre o ponto abordado:

O ―cadinho das raças aparecia como uma versão atualizada do mito das três raças, mais evidente aqui do que em qualquer outro lugar. ―Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e ou do negro‖, afirmava Freyre, fazendo da mestiçagem uma questão de ordem geral. Freyre mantinha intocados em sua obra, porém, os conceitos de superioridade e de inferioridade, assim como não deixava de descrever e por vezes glamourizar a violência e o sadismo presentes durante o período escravista. Senhores severos mas paternais, ao lado de escravos fiéis, pareciam simbolizar uma espécie de boa escravidão, que mais servia para se contrapor à realidade norte-americana. (SCHWARCZ, 2010, p, 12).

O grande problema evidenciado nessa interpretação, a nosso ver, é o de que o negro é incorporado como agente da formação nacional como sujeito ―pré-politico, no sentido em que toda a complexidade de sua dinâmica enquanto sujeito que faz a história a partir de sua inserção nos modos de produção colonial, sua organização para lidar com a violência inerente ao sistema de produção vigente, suas táticas de resistências diversas e outras variadas formas de construção de um novo meio politico e social em que pudesse gozar de melhor situação frente sua condição de escravo, é abandonada. Isto é, as formas as quais dispôs para a construção de um novo projeto politico e social, sua contribuição na derrocada do sistema escravista para a passagem ao capitalismo (mesmo que essa transição possa não o ter beneficiado de fato) e consequente desenvolvimento nacional, haja vista a condição extrema de degradação do trabalho no qual encontrava- se, não é levado a status de elemento dinâmico quando retornamos, pela via dos autores culturalistas (em seu sentido pejorativo) à história brasileira.

LEIA O TRABALHO NA ÍNTEGRA!!!

 

[1] Tanto Clóvis Moura, quanto Florestan Fernandes não divergiram na caracterização do que entenderam por ser o ―negro no Brasil, que de uma forma mais geral, seria aquele estrangeiro (africano) ou nacional e os seus descendentes. No seu Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, Clóvis Moura nos diz, ―No início da colonização, o termo ―negro‖ não servia para designar africanos, conforme documentação da época, mas para denominar o indígena. Muitos historiadores confundiram o significado do vocábulo na forma como era aplicado, tomando o termo como designativo de africano. Pelo menos em São Paulo, nos primeiros anos de colonização, para designar um negro usava-se o termo tapanhumo ou peça-de-guiné. Quando queriam designar o negro para diferenciá-lo do índio, chamavam-no, também, de ―gentio da Guiné‖ e aos índios, ―gentios da terra‖. Os jesuítas ao se referirem à população da Colônia, sempre usavam o termo negro como sinônimo de índio. Padre Manoel da Nobrega, em carta datada de 1549, pouco depois, portanto, da chegada dos primeiros grupos africanos no Brasil, já escrevia: ―e uns casam com algumas mulheres, se acham outros com as mesmas negras e outros pedem tempo para vender as negras‖. O mesmo autor afirma depois: ―e é desta maneira que fazem pares com os negros para lhe trazerem a vender o que tem e por engano enchem os navios deles e fogem com eles; e alguns dizem que o podem fazer por os negros já terem feito mal aos cristãos‖. Nos inventários e testamentos do primeiro século da colonização, faz-se invariavelmente, a distinção entre o negro e o índio, designando-se a sua origem, isto é, se é da terra ou da Guiné (africano).‖ (MOURA, 2013, p, 288). Para Florestan Fernandes, também fica claro nesta passagem que veremos que o ―negro, para o autor, é aquele africano trazido para exercer o trabalho compulsório (tornando-se escravo) no Brasil. Nas palavras de Florestan, ―A história do negro em São Paulo se confunde, durante um largo período de tempo, com a própria história da economia paulista. Os africanos, transplantados como escravos para a América, viram a sua vida e o seu destino associar-se a um terrível sistema de exploração do homem pelo homem, em que não contavam senão como e enquanto instrumentos de trabalho e capital. Em São Paulo, essa regra não sofreu exceção‖. (FERNANDES, 2008, p, 27). [2]Dentre diversos autores, podemos citar, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson Carneiro, Abdias do Nascimento, Gilberto Freyre, Roger Bastide, Luiz Luna, e os autores aqui estudados, Clóvis Moura e Florestan Fernandes. [3]Mudanças sociais que se ocasionam quando são colocados em relações grupos culturalmente distintos, resultando em elementos culturais característicos de ambos os grupos. Neste caso particular que estudamos, o aculturado seria aquele negro escravo que já teria assimilado a língua, os hábitos e os costumes dos senhores, e comportava-se como adaptado ao sistema social vigente, a escravidão. [4]Ver, por exemplo, o livro do antropólogo norte-americano Charles Wagley, Race and class in rural Brazil de 1952.   [5]Sincretismo é a fusão de diferentes elementos culturais que acaba por resultar em um fenômeno diverso de ambos. Nesse caso, o sincretismo vem ressaltar a ideia da miscigenação na formação do Brasil.

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O racismo mascarado: Reflexões sobre o complexo penitenciário industrial

Qual é o complexo penitenciário industrial? Por que isso Importa? Angela Y. Davis diz-nos. (De Seção Especial: Complexo Prisional Industrial)

Por Angela Davis**  (Originalmente publicado em 10 DE SETEMBRO DE 1998 – http://www.colorlines.com/articles/masked-racism-reflections-prison-industrial-complex)

Tradução e revisão: Jaque Conceição **

 Prisoes

Qual é o complexo penitenciário industrial? Por que isso Importa? Angela Y. Davis diz-nos.

Prisão tornou-se a resposta pronta a muito dos problemas sociais para as pessoas em situação de pobreza. Esses problemas muitas vezes são velados por ser convenientemente agrupados sob o “crime” emquamto categoria e pela atribuição automática de comportamento criminoso para pessoas de cor. A inexistência de moradia, o desemprego, dependência química, a doença mental, e analfabetismo são apenas alguns dos problemas que desaparecem da vista do público quando os seres humanos em luta com eles, são relegados para gaiolas.

Assim a prisão, acaba por ser um “feito de magia”, ou melhor, as pessoas que defendem a prisão e tacitamente parecem favoráveis a uma rede de proliferação de prisões e cadeias, são levadas a acreditarem na magia do aprisionamento. Mas, nas prisões não desaparecem os problemas, elas desaparecem com os seres humanos. E a prática de desaparecer um grande número de pessoas pobres, imigrantes e comunidades racialmente marginalizadas, literalmente se tornou um grande negócio.

A magia das prisões cria uma ausência de esforço para compreender os problemas sociais, escondendo assim, a realidade por trás do encarceramento em massa. As prisões desaparecem com os seres humanos, a fim de transmitir a ilusão de resolver os problemas sociais. Infra-estruturas penais devem ser criadas para acomodar uma população em rápido crescimento para serem criadas em gaiolas. Produtos e serviços devem ser fornecidos para manter as populações carcerárias vivas.Às vezes, essas populações devem ser mantidas ocupados e em outras vezes – particularmente nas prisões de segurança máxima – devem ser privados de praticamente toda a atividade significativa. Um vasto número de pessoas algemadas e algemados são movidos através das fronteiras estaduais.

Todo este trabalho, que costumava ser responsabilidade do governo, agora também é realizado por empresas privadas, e formam o complexo industrial militar. Os dividendos que se obtêm a partir do investimento na indústria de punição, como aqueles que se beneficia de investimento na produção de armas, apenas elevar a destruição social.Tendo em conta as semelhanças estruturais e rentabilidade de ligações de governo com o mundo empresarial para a produção militar e industrial. O sistema penal expandindo, agora pela relação público-privado, pode ser caracterizado como um “complexo industrial prisional”.

A cor das prisões
A cor das prisões

 

A Cor de Prisão

Quase dois milhões de pessoas estão atualmente presas na imensa rede de prisões e cadeias dos Estados Unidos. Mais de 70 por cento da população carcerária são pessoas de cor. Raramente é reconhecido que o grupo de crescimento mais rápido dos presos são mulheres negras e que prisioneiros americanos nativos são o maior grupo per capita. Cerca de cinco milhões de pessoas – incluindo aqueles em liberdade condicional – estão diretamente sob a supervisão do sistema de justiça criminal.

Três décadas atrás, a população carcerária era de aproximadamente um oitavo de seu tamanho atual. Enquanto as mulheres ainda constituem uma percentagem relativamente pequena de pessoas atrás das grades, hoje o número de mulheres encarceradas na Califórnia sozinhaa é quase o dobro do que a população prisional feminino em todo o país foi em 1970. De acordo com Elliott Currie, “[…] a presença da prisão tornou-se iminente em nossa sociedade, uma fato sem precedentes em nossa história – ou na história de qualquer outra democracia industrial. Desde as grandes guerras, o encarceramento em massa tem sido o programa social do governo mais bem implementado em nosso tempo. ”

Para entregar corpos destinados à punição rentável, a economia política das prisões se baseia em pressupostos raciais da criminalidade – tais como imagens de mães pretas reproduzindo crianças criminosas – e as práticas racistas nos padrões de prisão, condenação e sentença. Corpos coloridos constituem a principal matéria-prima humana nesta vasta experiência para desaparecer os principais problemas sociais do nosso tempo. Uma vez que a aura da magia é alimentada a partir da solução do encarceramento, o que é revelado é o racismo, preconceito de classe, e a sedução parasitária do lucro capitalista. O sistema industrial prisional é material e moralmente empobrecedor de seus habitantes e devora a riqueza social necessária para enfrentar os mesmos problemas que levaram ao espiral número de presos, que cresce cada vez mais.

Como as prisões ocupam cada vez mais espaço no cenário social, outros programas governamentais que já procuraram responder às necessidades sociais – como a Assistência Temporária para Famílias Necessitadas – estão sendo excluídos da dinâmica social. A deterioração da educação pública, incluindo a priorização do controle disciplinar e controle sobre a aprendizagem nas escolas localizadas em comunidades pobres, está diretamente relacionado com a prisão como “solução”, ou seja, da magia prisional.

 

Lucrando com prisioneiros
Como prisões proliferam na sociedade norte-americana, o capital privado tornou-se enredado na indústria da punição. E precisamente por causa de seu potencial de lucro, as prisões estão se tornando cada vez mais importante para a economia dos EUA. Se a noção de punição como uma fonte de lucros potencialmente estupendas é preocupante, por si só, então a dependência estratégica em estruturas racistas e ideologias para tornar punição em massa palatável e rentável é ainda mais preocupante.

A privatização é o exemplo mais óbvio do movimento atual do capital para a indústria de prisão. Embora as prisões administradas pelo governo sejam muitas vezes espaços de violação das normas internacionais de direitos humanos, prisões privadas são ainda menos responsáveis. Em março deste ano, a Corrections Corporation of America (CCA), a maior empresa norte-americana de prisão privada, alegou 54,944 camas em 68 instalações sob contrato ou desenvolvimento em os EUA, Porto Rico, Reino Unido e Austrália. Seguindo a tendência mundial de submeter mais mulheres a punição pública, CCA abriu recentemente uma prisão de mulheres em Melbourne, e recentemente, a empresa identificou a Califórnia como seu “novo território”.

Wackenhut Corrections Corporation (WCC), a segunda maior empresa prisional norte-americana, alegou contratos e concessões para gerenciar 46 instalações na América do Norte, Reino Unido e Austrália. Vangloria-se de um total de 30,424 camas, bem como contratos de serviços de saúde do prisioneiro, transporte e segurança.

Atualmente, os estoques de ambos CCA e WCC estão muito bem. Entre 1996 e 1997, as receitas da CCA aumentou 58 por cento, a partir de $ 293.000.000 para 462.000.000 $. Seu lucro líquido cresceu de US $ 30,9 milhões a $ 53900000. WCC elevou sua receita de $ 138.000.000 em 1996 para US $ 210 milhões em 1997. Ao contrário dos estabelecimentos prisionais públicos, os vastos lucros dessas instalações privadas contam com o emprego de mão de obra precária.

Evolução do encarceramento  nos Estados Unidos
Evolução do encarceramento nos Estados Unidos

 

O Complexo Prisional industrial
Mas as empresas de cárceres privados são apenas o componente mais visível da crescente mercantilização da punição. Contratos com o governo para construir prisões têm reforçado a indústria da construção. A comunidade arquitetônica identificou projeto prisão como um importante novo nicho. Tecnologia desenvolvida para o exército por empresas como Westinghouse está sendo comercializado para uso na aplicação da lei e punição.

Além disso, as empresas que parecem estar muito longe do negócio de punição estão intimamente envolvidas na expansão do complexo industrial da prisão. Títulos a construção de prisões são uma das muitas fontes de investimento lucrativo para os financiadores líderes como a Merrill Lynch. A MCI cobra dos prisioneiros e suas famílias preços exorbitantes para as chamadas telefônicas: ligações preciosas que muitas vezes são o único contato de prisioneiros com suas famílias.

Muitas empresas cujos produtos que consumimos diariamente nos ensinam que a força de trabalho na prisão pode ser tão rentável como força de trabalho terceiro mundo explorada por corporações globais baseadas nos Estados Unidos.  Algumas das empresas que utilizam trabalho forçado nas prisões são IBM, Motorola, Compaq, Texas Instruments, Honeywell, Microsoft e Boeing. Mas não é só as indústrias de hi-tech que colhem os lucros do trabalho penitenciário. Lojas de departamentos como Nordstrom vendem jeans que são comercializados como “Prison Blues”, bem como camisetas e jaquetas feitas nas prisões Oregon. O slogan publicitário para essas roupas é “feito no interior para ser usado no exterior.” Prisioneiros de Maryland inspecionar garrafas de vidro e frascos usados ​​por Revlon e Pierre Cardin e escolas em todo o mundo compram tampões da graduação e vestidos feitos por prisioneiro da Carolina do Sul.

“Para as empresas privadas”, escrevem Eve Goldberg e Linda Evans (um preso político no interior do Federal Correctional Institution em Dublin, Califórnia) “trabalho prisional é como um pote de ouro. Não há greves. Nenhuma organização sindical.Não há benefícios de saúde, seguro de desemprego, ou compensação dos trabalhadores para pagar. Não há barreiras linguísticas, como em países estrangeiros. Novas prisões paraísos estão sendo construídas em milhares de acres fantasmagóricos de fábricas no interior das muralhas.Prisioneiros fazem entrada de dados para a Chevron, fazem reservas por telefone para TWA, criam suínos, esterco, pá, fazem placas de circuito, limusines, camas de água, e lingerie para Victoria Secret – ‘. Trabalho livre a baixíssimo custo.

Devorando a riqueza social
Embora o trabalho prisional – que em última análise é compensada a uma taxa muito inferior ao salário mínimo – seja altamente lucrativo para as empresas privadas que utilizam o sistema penal como um todo, ele não produz riqueza. Ele devora a riqueza social que poderia ser usado para subsidiar moradia para os sem-teto, para melhorar a educação pública para as comunidades pobres e racialmente marginalizadas, para abrir os programas de reabilitação de drogas livre para as pessoas que desejam chutar seus hábitos, para criar um sistema nacional de saúde, para expandir os programas de combate ao HIV, para erradicar a violência doméstica – e, no processo, para criar empregos bem remunerados para os desempregados.

Desde 1984 mais de vinte novas prisões foram abertas na Califórnia, enquanto apenas um novo campus foi adicionado ao sistema de Universidade Estadual da Califórnia e nenhum para o sistema da Universidade da Califórnia. Em 1996-97, o ensino superior recebeu apenas 8,7 por cento do Fundo Geral do Estado enquanto as casas de correções receberam 9,6 por cento. Agora que a ação afirmativa foi declarada ilegal na Califórnia, é óbvio que a educação é cada vez mais reservada para certas pessoas, enquanto as prisões são reservados para outros. Cinco vezes mais homens negros estão atualmente na prisão em relação a faculdades e universidades de quatro anos. Esta nova segregação tem implicações perigosas para todo o país.

Segregando as pessoas e rotulado-as como criminosos, a prisão fortalece simultaneamente e esconde o racismo estrutural da economia dos EUA. Alegações de baixas taxas de desemprego – mesmo em comunidades negras – só fazem sentido ao supor que o grande número de pessoas na prisão realmente desapareceram e, portanto, não têm reivindicações legítimas em relação ao emprego, por exemplo. O número de homens negros e latinos atualmente encarcerados representa dois por cento da força de trabalho masculina de todo os EUA. De acordo com o criminologista David Downes, “[t] compreender o encarceramento como um tipo de desemprego oculto pode aumentar a taxa de desemprego para os homens por cerca de um terço, para 8 por cento. O efeito sobre a força de trabalho negra é ainda maior, elevando a taxa de desemprego [preta] do sexo masculino de 11 por cento para 19 por cento. ”

Hidden Agenda
Encarceramento em massa não é uma solução para o desemprego, nem é uma solução para a vasta gama de problemas sociais que estão escondidos em uma rede crescente de prisões e cadeias. No entanto, a grande maioria das pessoas têm sido levadas a acreditar na eficácia de prisão, mesmo que o registro histórico demonstre claramente que as prisões não funcionam. O racismo tem prejudicado nossa capacidade de criar um discurso popular crítico para contestar a trapaça ideológica que postula a prisão como a chave para a segurança pública. O foco da política do Estado está rapidamente mudando de bem-estar social para o controle social.

Preto, Latino, nativo americano, e muitos jovens asiáticos são retratados como os fornecedores de violência, os traficantes de drogas, e como invejos de uma vida que eles não têm o direito de possuir. Mulheres negras e latinas jovens são representadas como bebês, pobreza, sexualmente promíscuas e socialmente incapazes. Criminalidade e desvio são racializado. Vigilância é, portanto, focada em comunidades de cor, os imigrantes, os desempregados, os fora da escola, os sem-teto, e em geral sobre aqueles que têm uma reivindicação de diminuição de recursos sociais. O seu pedido de recursos sociais continua a diminuir em grande parte porque a aplicação da lei e medidas penais devora cada vez mais esses recursos. O complexo industrial da prisão criou assim um ciclo vicioso de punição que empobrece ainda mais aqueles cuja única saída é supostamente a magia da prisão.

Portanto, como a ênfase de mudanças nas políticas governamentais de bem-estar social para o controle da criminalidade, o racismo afunda mais profundamente as estruturas econômicas e ideológicas da sociedade norte-americana. Enquanto isso, os conservadores contra a ação afirmativa e educação bilíngüe proclamam o fim do racismo, e sugerem que os restos do racismo pode ser dissipado através do diálogo e conversação. Mas conversas sobre “relações raciais” dificilmente vão desmantelar um complexo industrial prisional que prospera em nutrir o racismo escondido dentro das estruturas profundas da nossa sociedade.

O surgimento de um complexo industrial prisional dos EUA dentro de um contexto de conservadorismo em cascata marca um novo momento histórico, cujos perigos são sem precedentes.Mas assim são as suas oportunidades. Considerando o número impressionante de projetos de base que continuam a resistir à expansão da indústria de punição, acredito que deve ser possível aumentar os esforços em conjunto para criar movimentos radicais e nacionalmente visíveis que podem legitimar as críticas anti-capitalistas do complexo industrial da prisão. Deve ser possível a construção de movimentos em defesa dos direitos e que persuasivamente argumentam que o que precisamos não é de novas prisões, mas novos cuidados de saúde, habitação, educação, programas de drogas, empregos e educação humanizada para os prisioneiros. Para salvaguardar um futuro democrático, é possível e necessário para tecer juntos as muitos, crescentes fios de resistência ao complexo industrial da prisão em um movimento poderoso para a transformação social.

*Angela Davis é um ex-prisioneiro político, ativista de longa data, educador e autor que dedicou sua vida à luta pela justiça social.

**Jaque Conceição é pedagoga, Mestre em Educação: História, Política, Sociedade pela PUC-SP, feminista, membro da comunidade tradicional dos povos de terreiro Ylê Asè Omo Oba Aganju, pesquisadora da Teoria Critica da Sociedade e Articuladora do Coletivo Di Jejê.

 

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Curso Kilombagem – Fanon; Vida e Obra, em Campinas

No dia 20 de julho Frantz Fanon completaria 90 anos.

Em reverência à sua trajetória, mas também, interessados/as em discutir a atualidade da sua obra para o entendimento do racismo na sociedade contemporânea, o Grupo Kilombagem oferecerá o Mini-curso Fanon: vida e obra.

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Objetivo

O Mini Curso se propõe a apresentar e discutir o legado político e teórico do autor enfatizando suas contribuições para a compreensão das relações raciais na sociedade contemporânea.

Provocador: Deivison Faustino (Nkosi) – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCAR e integrante do Grupo KILOMBAGEM

 

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Por que estudar Fanon?

Como psiquiatra, filósofo, cientista social e revolucionário, Frantz Fanon é sem dúvida um dos pensadores mais instigantes do século XX. Sua obra influenciou diversos movimentos políticos e teóricos na África e Diáspora Africana e segue reverberando em nossos dias como referência obrigatória nos os estudos culturais e pós-coloniais.

Sua trajetória política e teórica impressiona pela grandiosidade e o seu curto espaço de vida. Nasce em Forte de France, Martinica em 1925 no seio de uma família de classe média e patriota. Em 1944 se alista no exercito francês para lutar contra os alemães na segunda guerra mundial e posteriormente segue para Lyon para estudar medicina e psiquiatria. Neste período foi estudante ativo envolvido com a publicação periódica de um jornal mimeografado.

Em 1950 Frantz Fanon escreve o texto que seria a sua tese de douturado em psiquiatria: Peau noire, masques blancs(Peles Negras, Máscaras Brancas), mas a tese, por confrontar as correntes hegemônicas, foi recusada pela comissão julgadora o obrigando a escrever outra tese no ano seguinte em Lyon com o título de Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans l’hérédp-dégénération-spino-cérébelleuse – Um cas de maladie de Friereich avec délire de possession (Problemas mentais e sindromes psiquiatricas em degeneração espinocerebelar hereditária – Um caso de doença de Friereich com delírio de posse).

Em 1952 participa de diversos debates universitários e seminários em que se confronta ou converge com os pensadores franceses da época. Neste mesmo ano publica uma série de ensaios sobre a situação do negro na França, escreve um drama sobre os trabalhadores de Lyon (Les Mains parallèles) e publica o texto da sua primeira tese rejeitada: Peau noir, masques blancs (Peles negras, máscaras brancas) livro que marcaria a história dos estudos o racismo.

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Artista: Cena 7

Neste livro o autor discute os impactos do racismo e do colonialismo na psique (de colonizadores e colonizados) e mostra o quanto as alienações coloniais são incorporadas pelos colonizados, mesmo no contexto de elaboração do protesto negro.

O ano seguinte é marcado por um casamento e a sua mudança para a Argélia a fim de estudar mais profundamente os problemas enfrentados pelos imigrantes africanos na França. Segundo Oto (2003) estes momento foi fundamental para Fanon compreender os impactos do colonialismo na estrutura psíquica humana:

Ao tentar ampliar suas percepções sobre o problema dos pacientes em territórios coloniais, vinculando as enfermidade ao colonialismo, Fanon aceita neste mesmo ano o contrato com o Hospital Blida-Joinville na Argélia. Durante sua residência neste local os resultados de suas investigações o convenceram das dimensões assumiam o regime colonial e como este regime desarticula a estrutura psíquica das pessoas.( Oto 2003:219)

O ano seguinte foi marcante para o autor ao assistir o nascimento da revolução argelina e a violenta repressão francesa. É neste contexto que Fanon renuncia ao seu cargo no Hospital psiquiátrico para se filiar à Frente de libertação Nacional – FLN (Front de Liberation Nationale) onde contribuirá ativamente como escritor do jornal El Moudjahid, em Túnez.

Os anos seguintes foram marcados por intensa agitação política e participação nos fóruns internacionais dos movimentos de libertação no continente africano. Em 1959 publica L’an V de la Révolution Algérienne, sem publicação em português, e em 1961 se encontra com J. P. Sartre e S. Beauvoir. Neste mesmo ano, após escrever Les dammés de la terre, o ápice de sua atividade política e intelectual seria interrompido por um problema de saúde que levaria a morte.

Boa parte dos textos escritos por Fanon no jornal El Moudjahid foram reunidos por sua esposa e publicados postumamente no livro Pour la révolution africanie (1964), publicado em Portugal apenas em 1980 com o título Em defesa da revolução Africana.

A pesar de sua importância para a compreensão das relações raciais contemporâneas, 50 anos depois de sua morte, a Obra de Frantz Fanon ainda é pouco estudada no Brasil. Espera-se com esta atividade despertar o interesse da comunidade acadêmica como um todo para a discussão dos elementos apresentados pelo autor.

Programação

Encontro 01 – A alienação colonial (20/07/2015 – 14hs)

  • itinerário político de Frantz Fanon
  • Pele negra, máscaras brancas

(Leitura recomendadaPrefácio de Lewis Gordon – Baixe o arquivo! e  Capitulo V: Experiência vivida do negro – Baixe o arquivo! )

(Obra Completa para baixarPeles Negras Mascaras Brancas – Baixe a obra!)

 

Encontro 02– Racismo e cultura (20/07/2015 – 17:hs)

  • Em defesa da revolução africana
  • Os escritos de El Moudjahid

(Leitura recomendada: Racismo e Cultura – Baixe o arquivo!)

 

Encontro 03– A Argélia se desvela (21/07/2015 – 14hs)

  • Ano V da Revolução Argelina

(Leitura recomendada: Capitulo 1 : A Argélia se quito el velo – Baixe o arquivo!  – em espanhol)

( Obra Completa em espanhol: Sociología de una Revolución – Baixe a obra!)

 

Encontro 04– A libertação nacional (21/07/2015 – 17hs)

  • Os condenados da terra

(Leitura recomendada:  Cap. I Da violência – Baixe o arquivo!)

(Obra Completa: Os Condenados da Terra – Baixe a obra! )

 

 

Como chegar

Local: Casa de Cultura Tainã ( http://www.taina.org.br) Campinas – SP

Rua Inhambu, 645 – Vila Padre Manoel da Nóbrega, Campinas – SP, 13060-280
Quem vem de Onibus
Linhas 241, 24o e 249
perguntar pela Praça dos Trabalhadores ou Pinicão
A Tainã encontra-se dentro da Praça

 

 

 

A REDUÇÃO NÃO É A SOLUÇÃO!!!

 

 

 

 

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Pan-africanismo, marxismo e as encruzilhadas nossas de cada dia

Tempos difíceis os nossos: Em uma época marcada por conservadorismos dos mais variados o ato de demonizar o Marx sempre garante aplausos calorosos em qualquer plateia. Esta é uma verdade incontornável desde o fim da guerra fria.

Por outro lado, somente um cego não perceberia que os problemas enfrentados pelas(os) Pretas(os) são marjoritariamente secundarizados – para não dizer negligenciados – nas diversas agremiações político-teóricos de esquerda, centro ou direita. Somente um olhar inocente – ou muito mal intencionado – poderia atribuir à esquerda marxista a exclusividade desta postura lamentável. Para quem não havia percebido: Estamos em uma sociedade racista e por isso a palestra do Professor Carlos Moore oferece uma crítica necessária.

Isto posto é importante lembrar que mesmo com essas limitações “indisfarsáveis” a dita “Esquerda” vem sendo apropriada a mais de um século por  valorosas(os) guerreiras(os) pretas(os) como um espaço político/teórico/ideológico privilegiado para potencializar a luta contra o racismo e o colonialismo. A Luta Negra não nasceu e nem se encerra na Esquerda, mas é fato que historicamente esse encontro de forças possibilitou avanços teóricos e políticos importantes uma vez que as(os) negras(os), gostemos ou não, estão sujeitos às contradições da sociabilidade capitalista.  O outro lado da história é que esse encontro entre anti-capitalismo e anti-racismo também gerou uma série de equívocos catastróficos e a partir deles muitas(os)  líderes negras(os) optaram por romper com o Marxismo em busca de posições mais nacionalistas e/ou internacionalistas: Uma postura justificável que nas melhores situações contribuiu para enriquecer a forma de pensar o que é o Negra(o) e o anti-racismo e nas piores situações o que se seguiu foram embates fratricidas seguidos por Golpes de Estados sanguinários e necolonialistas.

É preciso dizer que o dito comunismo matou na Etiópia ou em Cuba… mas se dizemos isso e não dizemos em seguida que  o anticomunismo matou na Argélia, no Congo, em Angola; na Argélia, no Iran, na Alemanha, nos Estados Unidos, no Brasil, no Chile, e em todos os lugares em que os Estados Unidos pode influenciar, a história do século XX corre o risco de seguir drasticamente maquiada: A lista de líderes negros panafricanistas ou não assassinados com a ajuda da CIA é incrivelmente assustadora (inclusive dentro dos EUA).

A pergunta histórica que está posta para a nossa geração de intelectuais pretas(os) é: Conseguiremos estar suficientemente livres do maniqueísmo ocidental – que dizemos combater – a ponto de olhar criticamente para a tal do Ocidente e identificar no interior desta pseudo entidade os elementos que nos permitam confrontá-la? Ou estamos tão envoltos em seu suave veneno que acreditamos ser possível um pássaro voar sem a resistência do ar que o oprime?

Se é verdade que as particularidades histórico-sócio-culturais europeias nos foram falsamente apresentadas como universais a partir de sucessivas avalanches de roubo, saque, estupro e dominação, mas ao mesmo tempo, e exatamente por isso condenou a todos os povos do planeta a viver sob a lógica do deus mercado, conseguiremos negar a estas violências   ignorando que os pretos foram e são as maiores vítimas do capitalismo? Se queremos criticar radicalmente a tal da esquerda ou do marxismo, o faremos negando a suas contribuições teóricas para a crítica ao Capitalismo (que é essencialmente anti-negro?)? Se é verdade que a maioria esmagadora das agremiações de esquerda veem e tratam as(os) negras(os) apenas como “apêndice” dos processos políticos,  o caminho para superar esses limites é o anti-maxismo dogmático?

Não se trata aqui de defender o indefensável (veja a palestra histórica do Professor Carlos Moore), mas assusta perceber uma tentativa em curso de  tentar negar verbalmente a polarização esquerda/direita para substituí-la por  outras polarizações ainda mais empobrecedoras. É possível um pensamento negro que critique o tal do ocidente e seus deuses sem criar novos demônios?  Por qual “emancipação” lutamos:  “Mais Obama e Menos Cuba!”; “Menos Marx e mais…” o que? Nietzsche? Heidegger…?

“Entre Direita e Esquerda eu continuo Preto”, mas e daí, qual é o próximo passo?  Não seria eu Preta(o), Sujeito o suficiente para me posicionar neste jogo podre que não criei mas me influencia? Será mesmo que o tal do ocidente é tão presente em nós que mesmo em nossas críticas mais pretensamente profundas o máximo que conseguimos fazer é repetir o seu maniqueísmo tautológico barato: “O Marx era racista; eu sou anti-racista; logo, sou anti-marxista”? É isso mesmo, Produção? Joga-se fora então as contribuições de Marx para entender o capitalismo e posteriormente de todas(os) pretas(os) que se valeram mais ou menos desta tradição de pensamento – mesmo que seja para ir além dela –  para pensar as sociedades em que viviam?

 

É necessário entender que quando o Moore diz que deseja mais Obamas pelo mundo, não se refere ao imperialismo norteamericano, mas a ausência de líderes negros nos partidos e nos governos de direita e esquerda da América e Europa; mais negros nos espaços de poder. Essa é uma crítica muito pertinente que não deve ser descartada quando analisamos a história da esquerda mundial e a sua relação com os negros. Quando critica a dita política comunista implementada em Cuba e as perseguições que sofreu oferece-nos um importante relato pessoal a respeito da do que é a Política na sociedade moderna (informada por Maquiavel  e aprofundada por Fanon e Nkrumah).

O problema daí resultante é quando – seja por inocência ou por má fé – busca-se apresentar essa violência como exclusividade das experiências revolucionárias de orientação marxista. Teríamos que “voltar e apanhar o que ficou perdido” nas experiências europeias fascistas e nazistas bem como nos golpes de estado apoiados pela CIA na África- todos de orientação anti-marxista – para perceber o quanto qualquer transformação que não tenha o “povo” como ponto de partida e horizonteleva a caminhos assombrosos. Para alem disso, olhar para a “ditadura cubana” do pós-revolução ignorando os processos contra-revolucionários financiados pela direita cubana em  Maiami em sua relação carnal com os EUA é bastante complicado e só se explica no contexto ideológico de direita (gostemos ou não dessas classificações).

 

Não há nada mais ocidental do que o maniqueísmo e neste caso, a sabedoria das encruzilhadas tem mais a nos dizer do que a “caça as bruxas” ocidentais: Apesar do Obama ser negro, e as crianças da nossa geração terem nele um exemplo simbólico poderoso; apesar de Cuba – que  na da década de 70 foi o destino predileto de muitos líderes negros  mundiais importantes – cerceou o movimento negro interno a partir do mito da “cor cubana” que lembra muito o nosso maldito mito da democracia racial; apesar de tudo isso, diante do Ebola, Cuba manda médicos (a maioria negros) à Libéria e os Estados Unidos manda soldados (a maioria negros).  Enquanto essa mesma Cuba erradicou o analfabetismo  e durante o Mais Médicos vimos diante de nossos olhos milhares de médicos negros desembarcarem para ajudar o Brasil, os Estados Unidos tem uma maioria absoluta de negros entre os seus 2 milhões de pessoas encarceradas. O Episódio do Furacão Catrina  mostrou o que frágil são os avanços dessa sociedade que se acredita ter alçado à categoria de pós-racial só porque tem um presidente negro. Dito isto, fica a pergunta: Quem é meu inimigo neste caso? Será que o maniqueísmo (de direita de esquerda, de preto ou de branco) ajuda em alguma coisa?

 

Se olharmos a partir da Encruzilhada, a palestra do Professor Carlos Moore acaba de entrar para história como um marco na trajetória da luta negra brasileira ao oferecer subsídios para reflexões muito profundas e necessárias sobre o racismo e os espaços de poder, o ocidente, seus deuses e demônios. Mas se não “voltarmos atrás e apanhar o que ficou perdido” corremos o risco de atirar nos inimigos errados e desconsiderar uma parte da nossa própria trajetória “confusa mas real e intensa” (Racionais MCs).

Não nos esqueçamos que o ar que oferece resistência ao voo de um pássaro é o mesmo que garante o o seu planar… o segredo, para quem tem asas está em seu movimento adequado e na capacidade de mobilizar a seu favor aquilo que outrora poderia ser uma barreira. Há uma sutileza aqui que pode se perder durante o calor das emoções, mas não sejamos inocentes “entre direita e esquerda…” O Bolsonaro sabe muito bem quem ele é (e não vem só).

 

Entre direita e esquerda eu sou preto, mas não cego! “pois sei fazer bem a diferenciação, sofro pela cor, pelo patrão e o padrão” (GOG)

“Se a esquerda não trata da questão racial, sejamos nós a esquerda” (Clovis Moura)

Só Exú Salva!!!

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Manifesto de Repúdio ao Racismo na PUC Campinas

O racismo é uma violência que mata, adoece, incapacita. É dever de toda instituição educacional não apenas entender mas garantir que o lugar do negro seja dentro da sala de aula como estudantes, professores e pesquisadores. Essa inclusão deve ser quantitativa e prezar pela qualidade, pela promoção de um ambiente seguro onde cada estudante negro possa desenvolver todo seu potencial acadêmico.

Negar o racismo é mais uma estratégia de manutenção do racismo. Num país como o nosso, onde o racismo é um elemento estruturante dessa sociedade, não se pode fechar os olhos para quando atitudes assim acontecem. O dever de uma instituição de ensino é promover o debate, fomentar a discussão e, acima de tudo, não ser conivente com tais práticas. Não pode incorrer em violentar duplamente quem está sendo a vítima.

Necessário e urgente perceber que a população negra vem sendo há séculos violentada e tendo seu acesso à cidadania negado por conta desse sistema ideológico que visa mantê-la à margem da sociedade. Logo, quando uma denúncia é feita, está se combatendo esse sistema e não pessoas. Pessoas que sentem ofendidas com determinadas denúncias são as mesmas que estão sendo privilegiadas há gerações por esse mesmo sistema. Questionar privilégios é o primeiro passo para se combater o racismo.

Como entender que uma instituição universitária que se diz compromissada com valores como solidariedade, compromisso social, pró atividade, responsabilidade com a formação integral da pessoa humana possa aceitar que atitudes racistas sejam repetidas vezes apresentadas por seus alunos? E, diante das denúncias deste racismo, argumentar cinicamente que aqueles que estão sendo denunciados estão se sentido prejudicados? Como essas pessoas podem se dizer ofendidas pelo fato de uma aluna negra denunciar o racismo que sofre? Por que se ofendem com a denúncia e não com o racismo que violenta? Estes são questionamentos necessários para quem diz querer combater esse mal.

Stephanie Ribeiro, mulher, negra, feminista, única estudante de Arquitetura e Urbanismo numa turma com outros 200 não negros teve sua liberdade de expressão cerceada quando seus comentários nas redes sociais sobre o racismo sofrido se tornaram conversas nos corredores da instituição. Logo em seguida, alguém e sentiu confortável o bastante para pixar em seu armário uma frase que em retrospecto parece profética – “Não ligamos para as bostas que você posta no Facebook”. Essa também tem sido a resposta própria PUC Campinas que, além de não verificar as denúncias sobre as violências a que tem sido submetida a estudante e providenciar a devida assistência agora compactua para a promoção do racismo ao retirar a jovem da sala de aula e submetê-la a uma reunião com diretores da instituição, onde foi informada de que Pais, Alunos e Professores estão se sentindo prejudicados por suas denúncias.

Racismo jamais é um mal entendido da parte de quem o sofre, a preocupação destas pessoas e da própria PUC Campinas deveria ser com a existência de tamanha violência dentro da instituição, ao invés de possuírem a necessidade de mascará-lo com o argumento de que somos todos humanos e desta forma tratados da mesma maneira.

Utilizar a desculpa de que somos todos humanos só encoberta a questão do racismo, não se pode invocar o conceito de igualdade abstrata quando na prática, o que se verifica é a desigualdade; a começar pelo número de estudantes negros e negras e do corpo docente. Apenas dizer “somos todos humanos”, é mais uma forma de manutenção de poder e das opressões, porque sabemos que socialmente uns são mais humanos do que outros. Que somos tratados desigualmente.

Negar o racismo é ser conivente com ele. Exigimos que as denúncias feitas sejam averiguadas e que Stephanie Ribeiro tenha salvaguardado seu direito de frequentar a universidade sem ser hostilizada e intimidada.

Repudiamos as atitudes racistas sofridas por Stephanie Ribeiro e consequentemente a inércia da instituição PUC Campinas ao não tomar uma atitude condizente com o enfrentamento do racismo, ser conivente com ele.

Não admitiremos que mais uma vítima seja silenciada, que mais um relato seja deslegitimado e que um crime seja tratado com a naturalidade de um sistema que cerceia direitos e violenta pessoas.  Não aceitaremos que a hegemonia branca atinja e prejudique nosso direito a uma educação digna. Exigimos que as denúncias de racismo sejam apuradas bem como a integridade física e psicológica da aluna seja garantida.

 

São Paulo, 09 de Maio de 2014

 

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O lugar do racismo na luta de classes brasileira. O dilema do proletariado preto.

Apresentamos um texto do companheiro Gas-Pa que, como o título indica, aborda a questão do racismo no Brasil, mas sob uma perspectiva mais ampla e profunda, situando o tema na perspectiva da luta de classes. Em tempos em que a tendência é limitar esse debate ao nível das chamadas “políticas afirmativas” (ser a favor ou contra cotas, por exemplo), uma contribuição como a de Gas-Pa é mais do que bem vinda. É fundamental tanto para avançar na luta contra o racismo quanto para a luta anticapitalista. Gas-Pa é rapper, militante social e político, membro do Coletivo Lutarmada, e desenvolve seu trabalho na periferia do Rio de Janeiro.

 

Publicado originalmente em  no site  socialismosemfronteiras.net

O Brasil é o país com a segunda maior população preta do mundo, ficando atrás somente da Nigéria. Esse contingente afro-descendente é resultado do comércio negreiro de maior volume da história, que importou cerca de 6 milhões de africanos. O desenrolar histórico dessa república capitalista que não fez sua revolução burguesa (nos moldes clássicos) impôs à nossa luta de classes uma dinâmica diferenciada no que tange à questão racial. E essa particularidade é ainda incógnita, ou embaçada, para o olhar de quem se organiza contra a exploração e a opressão. Pra uns a luta contra o racismo é fragmentária e, por isso mesmo, retarda o nosso triunfo sobre a burguesia, e a superação do racismo seria uma consequência inevitável e automática da revolução socialista. Pra outros o racismo é a contradição central da nossa sociedade, e deve ser combatido pelas suas vítimas sem a interferência de brancos que, no geral, se apresentam para conduzir a luta preta com pseudo-soluções – euro-centradas – como o socialismo, que não passaria de mais um projeto de supremacia branca. Há também aqueles que, divergindo dos dois outros grupos, admitem que as duas frentes de luta são na verdade uma só. Mas sem entender direito o porquê, não conseguem ir além de repetir frases de ícones dessa luta, como “racismo e capitalismo são duas faces da mesma moeda” (Steve Biko), ou “não há capitalismo sem racismo” (Malcolm X). O que faremos daqui pra frente é buscar a compreensão de porque essas duas lutas estão ligadas umbilicalmente, e que, por isso, nem o capitalismo e nem o racismo serão superados se combatidos separadamente.

Apesar do consenso de que só existe uma raça – a humana – iremos debater sobre um fenômeno que tem nome, e esse nome é “racismo”. Então, falaremos o tempo todo em raça, pra não tornar o texto burocrático, e pra não sermos obrigados a recorrer a termos como etnicismo, fenotipismo, melaninismo, ou outras bizarrices ainda piores. E, como no resto do mundo, nos referiremos aos africanos e seus descendentes como pretos, deixando o termonegro somente para nos referirmos aos pretos escravizados (exceto quando tratamos das organizações do povo preto. Ex. “movimento negro”). Da mesma forma, o que a historiografia oficial chamou de tráfico negreiro, aqui daremos outro tratamento. Até a Lei Euzébio de Queiroz, em 1850, o comércio de escravos era livre, legal, o que torna incoerente a utilização da palavra “tráfico”. Por isso, todo o comércio internacional de africanos anterior a essa lei, chamaremos de “importação”.

A nossa primeira classe trabalhadora.

A primeira classe trabalhadora deste país – que nos impuseram chamar de Brasil – foi a escrava, constituída por africanos, já que a tentativa de escravizar os povos nativos havia falhado. Por tanto, a existência de pretos e do racismo no Brasil tem a ver diretamente com a escravidão. Por isso mesmo é bom fazer uma distinção. Racismo e escravidão não estão necessariamente subordinados um ao outro. Escravidão existiu em sociedades antigas como Roma e Grécia, mas não como resultado de uma suposta superioridade de uma raça sobre a outra (até porque em ambos os casos tanto escravos e senhores eram brancos). As guerras entre povos africanos também geravam escravos, mas estes eram, num certo prazo e por várias vias diferentes, integrados à sociedade à qual serviam. Além disso, sua condição humana não lhe era negada e a escravidão não era um modo de produção. A novidade trazida pelo Século XVI é que no Novo Mundo, a escravidão, já como modo de produção, era justificada na origem do escravizado, que traria a reboque uma suposta inferioridade intelectual e cultural de um povo que tinha em comum o mesmo fenótipo, numa ponta, e na outra, a superioridade do branco.

Durante três séculos o principal incômodo causado ao escravismo brasileiro era a rebeldia de sua classe escrava, que se manifestava de várias formas, indo do suicídio, passando pelo assassinato de seus senhores, resvalando nas greves [1]chegando à quilombagem – com direito a resgate de escravos nas fazendas – ou, várias dessas formas combinadas. Dentre elas, a quilombagem foi a que mais contribuiu para enfraquecer o escravismo. Cada grupo de escravos – por menor que fosse – fugido das fazendas significava prejuízo ao seu senhor que havia pagado por cada um deles. Além disso, mais dinheiro era gasto pra se remunerar as milícias e custear as incursões nas matas para capturar os fugitivos e desarticular os quilombos. Cada escravo fugido era um escravo a menos produzindo para o sistema. E, dependendo do nível de organização de um determinado quilombo, ele produzia o suficiente para comercializar com o mundo branco, concorrendo com os senhores escravocratas. E assim a quilombagem contribuiu muitíssimo para desorganizar a economia escravista, tornando-se a primeira forma expressiva de organização combativa da classe trabalhadora brasileira. E já data dessa época a prática de negar ao preto rebelde o caráter de preso político. Por mais que sua ação organizada e coletiva tenha como fim a subversão de uma ordem, o preto subversivo sempre foi relegado ao status de bandido comum.

Porém, já na metade do Século XIX a resistência dos escravos não era a única preocupação dos escravistas do Brasil. A pressão da principal potência político-militar e econômica da época, criava muitos problemas para o futuro do escravismo brasileiro. Com sua revolução industrial realizada um século antes, a Inglaterra precisava expandir seu mercado. E essa expansão é impossível para regiões onde trabalhadores não recebem salário.

E os senhores são libertos de seus escravos.

No apagar das luzes do século XVIII a classe escrava do Haiti mostrou do que os negros eram capazes ao fazer sua revolução. Principalmente porque para isso eles tiveram que derrotar o poderoso exército napoleônico. O efeito desse importante feito – que, mesmo seguindo o rastro da Revolução Francesa não consta nos livros de história entre as grandes revoluções – foi que toda a classe senhorial do continente americano teve que começar a pensar na possibilidade de uma abolição sem o radicalismo com que ocorreu na pequena ilha caribenha. No que toca ao Brasil era importante redobrar os cuidados já que foi pra cá que o maior contingente de africanos havia sido importado desde o Século XVI. Só pra se ter uma idéia, em 1849 o Rio de Janeiro era a capital mais “africana” das Américas. O susto foi tamanho que o termo haitianismo passou a ser empregado a tudo que era considerado risco de uma rebelião escrava. A paranóia se agravou depois da Revolta dos Malês, em 1835, quando negros islamizados se valeram de seu domínio da escrita árabe para organizar, durante meses, um levante na província da Bahia.

Alguns setores da classe dominante ainda defendiam a manutenção do escravismo. Mas mesmo os que faziam campanha pela abolição foram se precavendo para que ela acontecesse sem sustos. Por isso, já a partir de 1850 legisladores começam a tomar suas providências e uma série de Projetos de Leis (PLs) foram criados no sentido da abolição gradual e controlada. Esses PLs tratavam da abolição dos castigos físicos, libertação dos filhos de mães escravas, o direito aos escravos de comprar sua alforria, libertação dos escravos pertencentes ao governo, proibição do trabalho escravo nas cidades, a proibição de se desfazer famílias de escravos no comércio interno, libertação de escravos com mais de sessenta anos… Entre outros. É desse ano tanto a primeira lei relevante abolicionista – a que proibia a importação de africanos – como a importante lei Nº 601, a Lei de Terras. Antes dela a aquisição de terras só era possível através da doação pelo Rei. Este concedia os lotes segundo alguns critérios, dentre os quais, serviços prestados à Coroa. A Lei de Terras altera essa relação que deixa de ser de concessão para ser de venda. A partir de então só seria proprietário de terra quem tivesse dinheiro pra comprá-la. Aos negros, que na África eram agricultores e aqui vieram pra trabalhar na agricultura, foi eliminada qualquer possibilidade de acesso à terra. Dinheiro pra comprar, por razões óbvias, não tinha. Agora também já não há chances de adquiri-las em função de seus serviços prestados à Coroa. Na possibilidade da libertação dos escravos, a esses o acesso às terras já estava blindado.

A queda no preço do açúcar cria grandes dificuldades para os fazendeiros do Nordeste. Quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea a província do Ceará já tinha abolido a escravidão, sendo seguida por outras. As vantagens de se pagar salários ao invés de comprar e manter escravos já apareciam com mais nitidez ante os olhos das elites brasileiras. As revoltas, as leis abolicionistas e a inviabilidade de alguns senhores manterem seus escravos, já tinham liberado a maior parte da mão de obra escrava antes de maio de 1888 (em 1887 a população brasileira passava dos 13 milhões, dos quais, pouco mais de 720 mil eram escravos). Não tardou para que os egressos das senzalas entendessem que a tal “libertação” na verdade era uma condenação à miséria. A última preocupação dessa lei foi com os negros. Tanto é verdade que a eles não foi dada nenhuma garantia de sustento, de manutenção das próprias vidas. A Lei Nº 601 impediu a aquisição de terra pelos pretos – que tantos serviços prestaram à Coroa – mas garantiu lotes para algumas famílias de europeus que imigravam pra cá à custa de fundos arrecadados pela venda dessas terras. Para se importar 6 milhões de africanos, foi preciso mais de trezentos anos. Mas bastaram algumas décadas entre o fim do Século XIX e o começo do XX para que cerca de quatro milhões de trabalhadores europeus entrassem no Brasil.

Com tanta gente liberada das senzalas, pra que trazer trabalhadores da Europa? Uma boa parte da nossa esquerda se esforça pra negar que tenha sido por racismo, mas o faz, até agora, com argumentos frágeis. Uma política de branqueamento do país entrou em curso a partir da segunda metade do século XIX. E foi essa mentalidade também que deu mais fôlego à campanha abolicionista, que refletiu o desejo de muitos brancos de se livrarem da “mancha negra”, dessa marca do atraso do país.

 Política de embranquecimento.

Alguns “materialistas” afirmam que essa sangria de trabalhadores europeus pra cá, ao invés de motivações racistas, se deveu ao fato de que mesmo lenta, a industrialização brasileira carecia do emprego de trabalhadores já habituados a lidar com o maquinário fabril. Só que a maior parte dos imigrantes não veio para trabalhar na indústria. Além disso, devemos considerar a reorganização da produção. Os artesãos transformados em trabalhadores assalariados dominavam o conhecimento de todas as fases do processo produtivo. Suas habilidades eram imprescindíveis ao patrão. Mas com a divisão do processo em várias operações distintas, e com um operário realizando cada uma delas, o aprendizado de cada tarefa se torna bem mais breve. Muito mais ainda com a introdução da máquina que veio dispensar as habilidades específicas do antigo artesão. Assim sendo, capacitar a força de trabalho liberada da escravidão seria bem mais plausível do que importar trabalhadores da Europa. Mas não para por aí. Para os africanos que aqui chegavam, os horrores do escravismo eram uma aberração nunca vista antes. Para eles rebelar-se era uma necessidade imperativa. Mas muitos dos escravos do ultimo período do Império nasceram no Brasil escravista e não tinham vivenciado a liberdade ainda. Para esses, o cativeiro era muito mais fácil de ser assimilado. Desde 1850 o parlamento produzia, debatia e aprovava leis abolicionistas. Isso criava nesses negros uma expectativa de serem libertados a qualquer momento por vias legais. Para isso as elites deliberantes não poderiam se sentir ameaçadas. Do contrário, a liberdade dos negros é que correria perigo. Não foi a toa que esses anos que se seguiram de 1850 até 1888 não registraram grandes rebeliões, ao contrário dos anteriores. O mesmo não se podia dizer dos europeus que vieram. Uma parte deles já atuava no movimento sindical de seus países e já havia criado muito problema para seus burgueses. Pra que então trocar o novo comportamento mais brando que vinha se verificando entre os negros pela já conhecida rebeldia dos trabalhadores do Velho Mundo? Atribui-se também essa política imigrantista à ideia de que para modernizar o Brasil era necessário romper os vínculos com o anacronismo da escravidão. E de fato o país estava tão atrasado que enquanto aqui ainda se discutia se libertava ou não os filhos de mães escravas, em Paris a classe operária já tomava o poder. Ora, se o Brasil foi condenado ao atraso por insistir no escravismo, o negro não pode ser responsabilizado por isso já que foi ele o principal e mais combativo inimigo desse modo de produção defendido pela elite branca com todas as armas possíveis e necessárias. Assim sendo, de acordo com essa tese que associa o atraso ao escravismo, era a classe senhorial a única e exclusiva responsável por este. Porém, como vimos, na decadência do modo de produção escravista, esse atraso era diretamente vinculado à figura do negro. Que nome damos a isso se não racismo? Lembremos que uma das funções da ideologia é naturalizar o que não é natural, alguma situação de exploração e opressão construída pela própria humanidade no decorrer de sua história. Trezentos anos de dominação senhorial são mais do que suficientes para naturalizar a “inferioridade do negro”. Mesmo movida por razões econômicas, a classe dominante não está isenta de ver o mundo distorcido pela ideologia que ela mesma criou e alimenta. Aliás, é pra isso que existe a ideologia. [2]Então, a política de imigração foi sim uma política racista. É importante sermos materialistas, ainda mais se também formos históricos e dialéticos.

Definitivamente o povo preto estava descartado dos planos da república que nascia em 1889. Em 1911 o Brasil envia para o Congresso Universal das Raças, em Londres, o médico João Batista Lacerda que, preconizando uma superioridade da raça branca, previu a extinção do preto no Brasil até o ano 2012. Sendo a preta uma raça mais fraca, no processo de miscigenação, já em curso desde o escravismo, um século bastaria para que a raça branca prevalecesse absoluta. Assim explicou João:
“A seleção sexual contínua aperfeiçoa sempre ao subjugar o atavismo e purga os descendentes de mestiços de todos os traços característicos do negro. Graças a este procedimento de redução étnica, é lógico supor que, no espaço de um novo século, os mestiços desaparecerão do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós”

E segue a profecia:

“A população mista do Brasil deverá então ter, dentro de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração européia, que aumentam a cada dia e em maior grau o elemento branco desta população, terminarão, ao fim de certo tempo, por sufocar os elementos dentro dos quais poderiam persistir ainda alguns traços do negro.”

A miscigenação sozinha não daria conta de tal façanha. Então nosso intelectual discorre sobre outros aspectos que nos levaria a essa “purificação” racial no país mais preto fora da África:

“Depois da abolição, o negro entregue a ele próprio começou por sair dos grandes centros civilizados, sem procurar melhorar, no entanto sua posição social, fugindo do movimento e do progresso ao qual não poderia se adaptar. Vivendo uma existência quase selvagem, sujeito a todas as causas de destruição, sem recursos suficientes para se manter, refratário a qualquer disciplina que seja, o negro se propaga pelas regiões pouco povoadas e tende a desaparecer de nosso território, como uma raça destinada à vida selvagem e rebelde à civilização.”

O interessante dessas últimas linhas é que, assim como se atribuiu ao ex-escravo o atraso do país resultante do escravismo mantido pelo branco, agora, de novo, o preto é responsabilizado por sua própria marginalização. Não foi que as portas do novo modo de produção lhes foram fechadas em favor do embranquecimento do Brasil que priorizou importação de força de trabalho européia. Ao invés disso, afirma o pseudo-cientista, o povo preto que, “sem procurar melhorar sua posição social”, optou por “uma existência quase selvagem, sujeito a todas as causas de destruição, sem recursos suficientes para se manter”

Já prestes a encerrar sua comunicação científica, um quase clamor:

“Suas [do Brasil] questões limítrofes estão resolvidas, e as leis votadas ultimamente em favor da imigração, a fim de assegurar os direitos dos estrangeiros diante dos tribunais da nação, são as melhores garantias dos capitais estrangeiros empregados nos trabalhos de utilidade nacional. Pode-se, portanto afirmar, sem medo de faltar à verdade, que o Brasil está pronto, nesse momento, para acolher em seu vasto seio o êxodo dos povos europeus.

Eles descobrirão, como fim à sua atividade, e para constituir a base da riqueza de suas famílias, as grandes culturas de café, de cana-de-açúcar, de cacau, a exploração de borracha, a cultura de frutas tropicais, da videira e do trigo, as indústrias de fabricações diversas, a cultura do bicho-da-seda, a exploração de minerais, a criação dos rebanhos de bois e cavalos, a indústria leiteira etc., fonte de riquezas as quais as leis do país prestam ainda mais seguros e assistência, pela concessão de terras e pela promessa de garantia em dinheiro.”

A participação do médico racista nesse encontro foi patrocinada pelo presidente marechal Hermes da Fonseca. O embranquecimento do Brasil não era uma teoria, mas sim um projeto.

Racismo. Um bom negócio.

A transição escravismo/capitalismo ao invés de uma ruptura revolucionária, fez manter de pé a hegemonia da oligarquia agrária. E essa hegemonia perdurou até a década de 1930. Só então, com a chamada Revolução de 30, se põe fim à “farra do café com leite” e os caminhos se abrem para a burguesia industrial, para a consolidação do capitalismo no Brasil. E isso vai mudar a cara do racismo brasileiro.

Para o capital a função do exército industrial de reserva é manter sempre favorável ao patrão a lei de oferta e procura da mercadoria força de trabalho. Mas o que acontece quando uma enorme massa encontra-se alijada até desse exército, e que nem na reserva está? Pois bem. Para além da delinquência e de outros recursos que não nos interessa agora, há poucas alternativas. Duas delas são disputar no mercado de trabalho aquelas funções de menores prestígio e remuneração, ou exercer as mesmas funções que os trabalhadores brancos, mas por um salário menor.[3] Ora. Já vimos que essa nova república que pretende se modernizar quer fazê-lo livre da presença repugnante do povo preto, cuja figura remete imediatamente ao atraso. Vimos que a situação de miséria à qual os pretos foram relegados era tão intensa que cientistas previam que essa raça não resistiria mais que um século a tamanhas adversidades. A existência contínua de uma grande e determinada parcela do proletariado que por tais condições é obrigada a vender sua força de trabalho por um preço abaixo do praticado com os trabalhadores brancos – quase que exclusivos no mercado – faz constante pressão pra baixo nos salários gerais. O trabalhador branco vive entre o baixo salário e a ameaça de ser substituído por um outro trabalhador disposto a ganhar menos do que ele. Se a razão de ser do capitalismo é cada vez maiores lucros, então o racismo não se encaixa perfeitamente aos seus objetivos? Pois é. Por mais que as esquerdas não tenham notado isso até hoje, para o capital não passou despercebido. E ele se utiliza do racismo para se fortalecer cada vez mais. Isso no campo econômico, mas e no político? A manutenção do racismo acirra disputas que não deveriam existir no interior da classe, deixando-a dividida (isso sim fragmenta a nossa classe), dificultando a identificação e ação unitária contra o inimigo comum.

democracia racial.

Um cenário como este não é compatível com a política de embranquecimento do país. Como as classes dominantes vão deixar que se extinga uma parcela da população que é peça fundamental de um mecanismo que fortalece sua dominação? Não foi a toa que na década de 1930 surgiu a farsa da democracia racial, que vinha substituir a política de embranquecimento[4]. A democracia racial deriva de uma corrente de pensamento que pretendeu vender ao mundo a imagem de perfeita harmonia na relação entre as raças no Brasil. Na base dessa invenção há o argumento de que, ao contrário da América protestante, a América católica era mais benevolente com seus escravos, permitindo uma convivência tão íntima que possibilitou que as raças se misturassem, miscigenando como em nenhum outro canto do mundo[5]. Portanto, num ambiente como esse, o racismo não encontraria terreno. A partir daí o Brasil passa a configurar como laboratório de relações raciais para o mundo. Todas as raças teriam iguais oportunidades, sendo de responsabilidade única de cada indivíduo seu sucesso ou o fracasso, não importando seu fenótipo. De acordo com essa ideologia a barreira entre o preto e sua dignidade seria o próprio preto. Tal farsa ecoou pelo exterior a ponto de a Unesco patrocinar uma pesquisa cujo resultado deveria servir de manual prático das boas relações raciais para o mundo. Assinado por Florestan Fernandes, Otavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e Roger Bastide, o estudo desvelou a verdadeira face racista do Brasil, contrariando a propaganda que se fazia das nossas “boas relações raciais”. Só que a pesquisa repercutiu muito menos do que a falácia que ela desmentiu. E assim o mito da democracia racial sobrevive até hoje, resistindo às estatísticas que são divulgadas anualmente no dia 20 de novembro, quando se evidencia o abismo que separa o “Brasil preto” do “Brasil branco” [6].

Opor a “América católica” a “América protestante”, dentro desse contexto, é opor Brasil aos EUA. Os defensores da falácia da democracia racial gostam dessa comparação por serem os Estados Unidos um país onde a legislação segregou pretos e brancos até a década de 1960. Na vigência dessas leis o preto estadunidense precisou criar seus próprios espaços de sociabilidade, assim como se submeter a outros que o Estado lhe reservava. Eram escolas pra pretos, igrejas pra pretos, clubes pra pretos, bebedouros pra pretos, bairros pra pretos, etc pra pretos. Essa segregação escancarada permitiu ao preto de lá preservar e fortalecer sua identidade racial. Isso propiciou uma unidade na luta que lhes proporcionou conquistas e avanços[7]. Aqui, com o racismo fantasiado de democracia racial, onde a segregação não tem respaldo jurídico, ele incide com muito mais força e eficácia na informalidade. O racismo brasileiro esconde o antes, o durante, e maquia o depois do seu processo, de forma que nem suas vítimas conseguem perceber que sua condição de precariedade – que atinge a um percentual maior da sua população e com maior intensidade que ao proletariado branco – tem ligação direta com algumas características físicas que elas herdaram de seus antepassados escravizados. E um dos fatores que dificultam essa percepção é justamente aquele que serviu de base pros defensores da democracia racial: A miscigenação. Ela fez da população brasileira um povo de muitas cores. E se nos EUA preto é preto e branco é branco, aqui essa diversidade responde por uma hierarquização cromática que coloca em pólos opostos o branco e o preto, mudando o tratamento que a sociedade vai dar aos indivíduos de acordo com a proximidade que cada qual tem com um dos pólos. Se o que a sociedade tem de pior está reservado pra quem tem a pele mais escura, logo, na medida em que a pessoa se distancia dessa tonalidade, menos incide nela a discriminação que se funda na origem racial. Mecanismos sociais simbólicos têm sido usados como recurso de fuga dessa realidade tão adversa. Por exemplo, no recenseamento de 1980, quando os pesquisadores do IBGE perguntavam pela cor, os entrevistados respondiam com muitos subterfúgios, que iam do “bege”, passando pelo “cinza”, resvalando no “morena bem chegada” indo até o “roxa”, totalizando 136 cores diferentes (e bem bizarras). Essa pesquisa mostra que miscigenação não iguala ninguém. Ao contrário, cria uma hierarquia que não tem mais tamanho. Se vivêssemos de fato numa democracia racial não haveria necessidade de ninguém querer escamotear sua verdadeira identidade buscando se aproximar o máximo possível de um modelo entendido como o certo, o belo, o limpo, o puro, o honesto, o inteligente… Em fim, o padrão (branco). E o pior de tudo é que, como são simbólicos, esses subterfúgios surtem pouco efeito na relação com o opressor, pois para o departamento pessoal das empresas, pro cano do fuzil do policial, pro elevador de serviço, pro poder judiciário, pro sistema penitenciário, etc., não existe “bege”, “melada”, “fogoió”, “cor de ouro”, “morena bem chegada”… Não. É tudo preto.

Se a oposição que fazemos ao Projeto Democrático Popular (e à sua variante, o Projeto Popular para o Brasil) nos impõe uma postura crítica à exaltação das identidades, a luta socialista, dialeticamente, nos exige batalhar pela aquisição e afirmação da identidade do proletário preto. Numa sociedade dividida em classes e com uma classe subalterna dividida em raças, a identidade racial é uma identidade grupal, que por sua vez é precondição para superação da alienação. Assim diz o professor da UFRJ, Mauro Iasi, no seu trabalhoEnsaios sobre consciência e emancipação:

“Quando uma pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas circunstâncias pode ver em outra pessoa sua própria contradição. Esse também é um mecanismo de identificação da primeira forma [de consciência], mas aqui a identidade com o outro produz um salto de qualidade.”

Mas como um afro-descendente vai ver num outro preto a sua própria contradição se ele nem se vê como tal, mas sim como um “fogoió”, um “cinza”, um “marrom bombom”, um “moreninho”, um “pardinho”, um “melado”…?[8] Num país com o histórico que o Brasil tem nas suas relações raciais, a luta contra o racismo perpassa por uma batalha extremamente árdua pela identidade racial. Identidade de um determinado grupo de pessoas que se assemelham em determinados traços físicos que lhes inferioriza perante o outro grupo que guarda as características físicas da classe dominante. E se o grupo é precondição para a superação da alienação rumo à consciência de classe para si, negligenciar a luta contra o racismo no país com o racismo mais eficaz do mundo, é frear o avanço da luta proletária contra o capital.

Conceitos como mais-valia, valor de uso, valor de troca, capital constante, capital variável, entre outros necessários para um entendimento básico de economia política ainda são caros às massas. São relações vividas cotidianamente por quem produz a riqueza desse país, mas impossível de serem vistas a “olhos nus”. Porém, a companhia indesejável dos seguranças dos shoppings e lojas de departamento; a demora pra ser atendido nesses mesmos espaços, assim como em restaurantes; a sua cor como sinônimo de ruim, feio, perigoso, sujo, sombrio, lúgubre, malévolo, impuro, etc.; as constantes revistas policiais e, nelas ter que fingir que é inocente mesmo sendo inocente; as piadas – nada inocentes, diga-se de passagem – referentes aos traços físicos; a maior precariedade no acesso à saúde[9]; o desemprego ou o trabalho precarizado; a baixa escolaridade… São todos incômodos sentidos na pele no dia-a-dia do trabalhador preto, mesmo que ele não perceba que há algo em comum entre ele e a grande maioria das vítimas dessas mazelas. Na ausência de uma esquerda que discuta e atue seriamente na questão racial com um recorte de classe, esses trabalhadores seguem na inércia política. E essa pode ser a melhor das hipóteses. Pior ainda é quando aos poucos eles vão sendo cooptados por um setor do Movimento Negro que nega a luta de classes e que prega contra o comunismo alegando que ele é uma proposta de luta eurocêntrica, que desconsidera o ethos negro, e que no fim das contas, não passa de mais um projeto de dominação branca. Além disso, acusam os militantes dos movimentos e partidos de esquerda de serem racistas – acusação que procede em muitos casos.

O racismo é uma das manifestações da luta de classes. Portanto, podemos afirmar que a luta anti-racismo não fragmenta a luta proletária. Mas, ao contrário, fragmentamos o proletariado quando deixamos de incorporar efetivamente a luta anti-racismo, pois assim deixamos de trazer pras nossas trincheiras parte da parcela maior da nossa classe. E ainda corremos o risco de empurrar muitos trabalhadores pretos pra dentro de organizações que atuam no sentido de integrá-los na sociedade burguesa, inverter os pólos de opressão e exploração, e que elegeram a nós comunistas inimigos preferenciais.

 O racismo da nossa esquerda.

“Muitos são racistas e dizem não ser
Talvez você seja mesmo sem você saber”
Consciência Urbana

Somos uma ilha de democracia racial, cercada de racistas por todos os lados. O preconceito é tão abominável que até os preconceituosos o condenam (pelo menos teoricamente). Uma pesquisa organizada pela antropóloga Lilia Moritz Schwarcz perguntou aos entrevistados se “você tem preconceito?”. A essa pergunta 96% responderam que não. Agora é que vem o absurdo. A segunda pergunta era: “Você conhece alguém que tenha preconceito?”. Curiosamente 99% das pessoas responderam que sim (!). O preconceito – e no caso do objeto do nosso debate, o racismo – é sempre um defeito “do outro”, mas nunca “meu”.

Como já foi dito antes, uma das funções da ideologia é naturalizar a opressão e a exploração. Como somos formados dentro de uma sociedade racista é quase inevitável a reprodução de atitudes e discursos racistas, sem que eles sejam percebidos como tal. Assim sendo, o racismo é praticado por inúmeros militantes que o condenam. Combater o racismo não pode ser entendido simplesmente como reconhecer sua existência, se posicionar contra ele e exibir como troféu um preto que ocupe cargo de direção dentro do seu partido, sindicato, movimento ou instrumento de organização e luta da nossa classe.

Para essas pessoas um importante primeiro passo é reconhecer – sem culpa – os privilégios que a sociedade lhes reserva, com relação à parcela preta do proletariado. Pra quem se enxerga no cume da consciência revolucionária, isso vai parecer constrangedor. Porém, pra quem deseja sinceramente a superação de uma sociedade que explora/oprime, esse é um movimento necessário. É catártico. É libertador. Reconhecidos esses privilégios, eles podem, inclusive, serem colocados a serviço do fim dos próprios privilégios. Basta o comprometimento com a luta revolucionária.

A simbologia é um campo também fértil para o nosso debate. A esquerda não abre mão de vestir vermelho, por exemplo, sendo fiel a uma simbologia própria da nossa luta. Assim é também com o hino d’A Internacional (cada vez menos freqüente nos nossos espaços, é verdade), e também com um linguajar que é comum somente no nosso meio. Isso prova que não estamos, em setor algum da nossa sociedade, imune ao poder dos símbolos. Porém, se tratando das palavras – sejam elas faladas ou escritas – no nosso meio muitas vezes vêm carregadas de conteúdo racista. O problema é que a ideologia dominante tratou de naturalizar essas expressões de tal forma que seu potencial ofensivo é artificialmente minimizado. Não podemos perder de vista que a violência simbólica é a que justifica a violência física. A violência com a qual a mídia burguesa trata as favelas prepara o terreno para a violência física do Estado nessas comunidades. Ela produz nos moradores “do asfalto” um alto nível de aprovação das operações policiais que aniquilam favelados – pretos, em sua maioria. Do mesmo modo a violência simbólica das expressões, dos termos, das piadas racistas, reforça a naturalização de uma inferioridade que legitima a violência física praticada contra o proletário preto. Por isso em pesquisa recente 55,8% dos entrevistados afirmaram que a morte de jovens “negros” choca menos do que a de jovens brancos. São números que refletem situações já conhecidas, como a do jovem preto, acusado de roubo, espancado e preso pelo pescoço a um poste – como seus antepassados escravos presos no pelourinho – na mesma capital onde um jovem branco que passa com seu carro importando por cima de um ciclista preto, matando-o, é condenado a prestar dois anos de serviços comunitários.

É provável que os companheiros brancos se surpreendam e se incomodem com as queixas dos militantes pretos com relação às práticas racistas verificadas nos espaços comuns de militância. Onde a questão racial não é devidamente discutida é perfeitamente compreensível tanto as denúncias feitas pelos pretos quanto o incômodo dos brancos com as denúncias. Essa é a hora em que o companheirismo deve prevalecer, assim como a confiança política dos militantes brancos naqueles companheiros que sentem na pele os efeitos nocivos de todo o preconceito produzido e propagado contra os africanos e descendentes nesses 500 anos de história.

Materialistas que somos, não cremos na superação do racismo simplesmente monitorando as palavras usadas no nosso cotidiano. Mas como nossa luta também se dá no campo das ideias (caso contrário não perderíamos tempo com cursos de formação política, e produzindo material de propaganda), é prudente ser vigilante com as próprias palavras pra não reproduzir o discurso racial da classe dominante, poupando o companheiro preto que poderá canalizar suas energias militantes somente contra o inimigo comum.

Sem teoria revolucionária não há ação revolucionária, dizia o camarada Lenin. Por isso os estudos são tarefa imperativa para melhor qualificar a luta contra o capital. Porém, é mister compreender o tempo do revolucionário preto no cumprimento dessa tarefa. Por uma nítida opção, aos brancos basta a produção teórica de seus pares. Mas, além de se apropriar das mesmas fontes que os camaradas brancos, aos pretos é necessária ainda a apreensão do que já foi produzido pelos autores da diáspora africana. E como na maioria das vezes essa produção teórica dos pretos não leva em consideração o fator “classe”, ainda recai sobre o militante preto produzir combinando esses vários legados. Mas não termina aí. Aos militantes pretos cabe ainda a tarefa de ler o que setores do Movimento Negro escrevem contra o marxismo, pra poder tecer a crítica sobre essas obras. Não é fácil!

Dado o quadro das relações entre as raças no Brasil, o simples fato de desestimular o debate, os estudos e a ação sobre as questões específicas do proletário preto, já se configura em postura racista. É importante a compreensão de que, com base em tudo que foi escrito acima, o fortalecimento da identidade preta, quando conduzido por quem está comprometido com o socialismo, ao contrário de enfraquecer, só fortalece a identidade de classe. Por isso é importante evitar o paternalismo e, ao mesmo tempo, entender que a formação de núcleos de militantes pretos em nossos partidos, instrumentos e movimentos não significa a construção de guetos internos. Ao invés disso, é certo enxergá-los como espaços de elaboração de táticas que, considerando nossas especificidades na luta de classes, buscará uma maior adesão da população preta proletária, com um nível de comprometimento e de consciência revolucionária cada vez maior.

Cada vez mais vermelho, sem deixar de ser preto,                                                        Gas-PA

09-03-2014

[1] Mesmo antes da chegada dos imigrantes, os negros já realizavam seus movimentos paredistas.

[2] “Até agora os homens formaram sempre ideias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são ou deveriam ser (…). Os filhos de suas cabeças cresceram-lhes acima da cabeça. Curvaram-se, eles que são os criadores, diante das suas criaturas.” (Marx e Engels, no prefácio de A Ideologia Alemã.)

[3] Ainda hoje a diferença entre o salário do trabalhador branco para o trabalhador preto orbita entre os 45%

[4] Isso não significa que estejamos, por exemplo, negando um processo de extermínio da população preta (de acordo com Karl Marx nenhuma transformação social ocorre sem que as forças produtivas se desenvolvam a ponto de se chocarem com as relações de produção existentes. Quando isso acontece apresenta-se um período revolucionário. Para tentar impedir a revolução, cabe à classe dominante barrar a evolução das forças produtivas, destruindo-as. Segundo a socióloga Vera Malaguti Batista estima-se que 20% da força de trabalho hoje existente deem conta de mover a economia no mundo. Os 80% restante são um percentual exagerado pra ser comportado dentro do exército industrial de reserva. Então, o que fazer com o que sobra? Pesquisa divulgada em 2013 revela que aqui se mata 139% a mais de pretos do que de pessoas brancas. No Brasil coube ao afro descendente o papel de excedente do exército industrial de reserva. A força de trabalho preta é parte significativa das forças produtivas que o inimigo aniquila para impedir o choque delas com as relações de produção capitalista). O que negamos, então, é que qualquer política racista corrente tenha como finalidade a extinção do preto no Brasil capitalista, assim como o Brasil escravista não podia abrir mão de seus negros, ainda que os massacrasse.

[5] A partir de 1908 essa miscigenação ganha mais um elemento com a imigração japonesa.

[6] Em 2005 o Brasil era o 63º no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Analisando dados de então, o economista Marcelo Paixão revelou que se dividíssemos o Brasil em dois, um preto e um branco, e comparássemos ambos os IDHs com os dos outros países, o Brasil branco subiria para 47ª posição, enquanto o Brasil preto cairia para 92º.

[7] Vejamo o que diz Darcy Ribeiro, no seu clássico O povo brasileiro: ´´É preciso reconhecer, entretanto, que o apartheid tem conteúdos de tolerância que aqui se ignora. Quem afasta o alterno (diferente) e o põe à distância maior possível, admite que ele conserve, lá longe, sua identidade, continuando a ser ele mesmo. Em consequência, induz à profunda solidariedade interna do grupo discriminado, o que o capacita a lutar claramente por seus direitos sem admitir paternalismos.´´

[8] Ainda no mesmo parágrafo da obra citada na nota anterior: ´´Nas conjunturas assimilacionistas, ao contrário, se dilui a negritude numa vasta escala de graduações, que quebra s solidariedade, reduz a combatividade (…)´´. (Só para ilustrar, o então jogador Ronaldo (fenômeno), em entrevista sobre o racismo na Europa, disse que até ele que não é negro (sic) se sente profundamente incomodado e solidário ao problema de seus companheiros vítimas do preconceito racial. Tal declaração foi condenada publicamente por seu pai, um “negro” assumido.)

[9] Por exemplo, pesquisa da Fiocruz que entrevistou 10 mil mulheres, conclui que 11,1% das pretas não receberam anestesia no parto. Mais que o dobre do percentual de mulheres brancas (5,1%)

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Sobre Cláudias e Adelaides: se “uma piada é só uma piada” por que ninguém ri do tombo da própria mãe?

Sobre Cláudias e Adelaides: se “uma piada é só uma piada” por que ninguém ri do tombo da própria mãe? [1]

in: http://kamugere.wordpress.com/tag/claudia/

Por: Deivison Mendes Faustino (Deivison Nkosi)[1]

“Muito engraçado a bandida sendo arrastada. Lembrei do camarada fazendo isso com um cachorro esses tempos atras…kkkkkkkkkkkkkkkkkkk”[2].

“Atenção, não é a intenção do site formar aqui atitudes preconceituosas e nem ser preconceituoso. São apenas piadas, assim como existe sobre loiras, machismo, portugueses, japoneses, gordos, gagos, bêbados, entre outros temas.[3]

No dia 16 de março, um caso desastroso toma conta dos noticiários: policiais militares sobem o Morro de Madureira para mais uma incursão bélica, e ao atirarem aleatoriamente, atingem gravemente uma mulher e dois jovens. Ao perceberem se tratar de  uma mulher de meia idade – perfil tipológico de difícil enquadramento nos estereótipos reservados aos jovens vitimados por policiais nos morros – os policiais “pegam” a mulher ferida e a jogam no porta-malas da viatura policial. A pesar do protesto de familiares e vizinhos, a viatura segue em alta velocidade pelas ruas do Rio de Janeiro num trajeto que segundo os moradores da Região não é o mais rápido para o Pronto-Socorro… durante a viagem – como se fosse um filme antigo de comédia –  o porta-malas da viatura se abre deixando a vítima cair no asfalto como um saco de batatas. Como se não bastasse, a sua roupa se enrosca no para-choque traseiro da viatura, enquanto a viatura policial a arrastou por 350 metros, dilacerando sua carne no asfalto.

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Seria cômico…

Se não estivéssemos falando de um ser humano ou alguma outra forma de vida que merecesse o nosso sentimento de alteridade. Aparentemente aqui, o que se viu foi o tratamento reservado a qualquer outra coisa ontologicamente distinta de nós, o suficiente para não despertar em nenhum momento a pergunta: e se fosse a minha mãe?

Entretanto, ao assistir à tragédia – instantaneamente filmada e projetada pelas novas mídias espetaculares –   em um site de notícias, um internauta que provavelmente não sabia de quem se tratava, mas de porte dos estereótipos ao qual os(as) negros(as) são frequentemente representados, escreve: “Muito engraçado a bandida sendo arrastada. Lembrei do camarada fazendo isso com um cachorro esses tempos atras…kkkkkkkkkkkkkkkkkkk” (Sic).

Em outro local,  em um site de piadas, vemos um aviso  logo abaixo da barra de menu   informando que as anedotas contidas na página “Piada de preto” não tem intensão de formar “atitudes preconceituosas e nem ser preconceituoso”, pois se trata apenas de piadas “assim como existe sobre loiras, machismo, portugueses, japoneses, gordos, gagos, bêbados, entre outros temas”.

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A reflexão sobre esses dois comentários virtuais nos levantam as seguintes perguntas: Existe riso inocente? Pode um simples riso ser recriminado ( “POLITICAMENTE POLICIADO”) ou ter o mesmo status político de um tapa ou um tiro? Supondo que sim, que o riso assuma dimensões políticas, a busca por uma convivência solidária entre os seres humanos justificaria a sua interdição ou “censura”? Existem temas sob o qual não se deve rir? Ou o riso tem licença poética para ignorar ou transgredir (auto)censuras impostas pelas diversas coerções sócio individuais que se colocam a frente daquilo que realmente desejamos, sentimos e pensamos? Não seria “forçar a barra”, trazer a reflexão do riso para o campo político, atribuindo-lhe causas e consequências sociais?

Em um texto intitulado Ensaio sobre a significação do cômico, Henri Bergson (2004) afirma que o riso é sempre um dado social. Independente de suas reações fisiológicas,  há que se entender que é apenas em sociedade que ele surge e é possível. O riso para ele assume a dimensão de uma sanção social, na medida em que apenas o que é considerado um desvio ou uma coisa negativa  pode ser ridicularizado. O cômico é sempre o que foge a ordem e isso significa que o riso é uma punição social que visa, em ultima instância reestabelecer a ordem social.

Pressupõe-se neste sentido que a pessoa alvo do riso ficará envergonhada e voltará à ordem normal. Não é a mudança brusca da ordem que causa o riso, mas o involuntário da mudança: tropeçar, por exemplo, é não conseguir acompanhar a fluidez da vida pela rigidez do seu corpo, como o tombo de alguém pulou do ônibus em movimento.  A rigidez é socialmente suspeita e a  deformidade (do corpo ou da mente), risível por que deforma a norma, desviando a nossa atenção para além daquilo que conhecemos. Rimos sempre de uma coisa que se parece humana, ou de uma pessoa que aparente ser outra coisa que não humana, e é neste aspecto a questão racial se torna relevante à nossa análise, pois nem sempre uma pessoa negra é considerada uma pessoa. Para o padrão eurocêntrico de ser humano, o Branco (europeu, ocidental) é a única expressão possível de homem e mulher e o Negro, por vezes é representado como se fosse uma pessoa branca, comicamente pintada de negra.

Em  1579 o médico francês Laurent Joubert vai escrever um tratado sobre o riso, sustentando essa sua dimensão eminentemente política (ALBERTI, 1995). Segundo ele, nós rimos antes de qualquer coisa, daquilo que é feio e impróprio e não merece compaixão. O ridículo é aquele que se torna alvo do riso dos outros. Para Elias (1993), o “processo civilizador” característico da modernidade destaca-se por sua busca de controle do corpo e ridicularização daqueles sujeitos que “não conseguiam se controlar”. O indivíduo que não se controlava ou aparenta estar fora dos critérios de controle socialmente descritos, será alvo de uma distinção hierarquizada que o desvaloriza diante dos outros, ridicularizando-se.

O ato de ridicularizar alguém, seja pelas normas de etiquetas ou por outros atributos socialmente desvalorizados, vai assumindo na modernidade a mesma importância que os embates físicos e podiam ter como consequência a exclusão social da pessoa alvo do riso. Aquele que fosse ridicularizado poderia perder suas formas de sustento.  Na França pré-revolução, por exemplo, o pecado não tem nenhum valor, mas a ridicularização poderia levar um indivíduo à morte.

Assim, a dimensão política do riso é destacada por autores diversos, como é o caso de George Minois (2003) quando nos explica em seu estudo sobre os Bobos da Corte que o seu papel era expressar verdades que ferem.  O Bobo tinha autorização social para falar de forma risível aquilo que ninguém mais tinha coragem de dizer, alertando a corte de seus limites e equívocos, conformando-se numa figura bastante importante para a manutenção da ordem. A piada, ou outras formas de se fazer rir, aparecem aqui como uma forma de falar a verdade, ou pelo menos, de se falar o que se realmente pensa, e não pode ser dito.

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É sempre de alguém ou de alguma coisa que rimos, e neste sentido, a piada aparece como um entre outros meios de se fazer rir.  Em sua ultima peça, intitulada Doente imaginário (2003), Moliére descreve uma estória que revela a perspectiva da corte em relação à (já concorrente) burguesia ascendente. Na peça, o autor conta a história da filha de um rico e avarento burguês, que se apaixona a contragosto de seu pai por um rapaz, enquanto o pai deseja que ela se case com um médico, a fim de ganhar consultas gratuitas. Dessa forma o autor ridicularizava os burgueses que queriam adquirir hábitos corteses, mostrando como os médicos vão se aproveitar de sua inocência para ganhar poder. O riso assume aqui a dimensão do confronto entre a nobreza ameaçada, onde se posicionava Moliére, e a burguesia ascendente, colocando-a como expressão do ridículo.

No mesmo sentido, mas por outros caminhos, Baktin (1987) afirmará que o riso faz parte de uma visão de mundo. Em sua pesquisa ele mostra como que o riso pode representar a rebelião contra o tom sério e solene das instituições oficiais e os seus aparatos de repressão bélica e ideológica.  Assim, analisa o carnaval medieval como momento em que a ordem se inverte. O Carnaval é visto como uma festa dos loucos; um momento profano em que se pode inclusive criticar o sagrado, ou pelo menos, aquilo que se impõe oficialmente como sagrado.  Ele fala do quanto essas festas populares são uma critica a essa oficialidade. Em consonância com essa reflexão o professor Jorge Leite nos relembra em suas aulas que não foi a toa que durante a ditadura no Brasil, a Pornochanchada foi o gênero estético mais fértil. Enquanto o Estado  a partir dos militares e dos grandes empresários dizia: o Brasil é feito por nós a pornochanchada devolvia toda uma produção que dizia implícita ou explicitamente o Brasil é feito pornôs,romantizando as pessoas  que não queriam trabalhar e preferiam ficar a cortejando garotas para o sexo.

O ponto onde quero chegar é que o riso exprimido por pessoas, ou indivíduos, que estão sempre e inescapavelmente relacionados ao seu tempo, cultura, história e dilemas políticos de toda ordem e em todas as suas dimensões de poder.  Se a política é a guerra empreendida por outros meios, como diria o filósofo francês Michael Foucault, qual é o lugar do riso em sua dimensão política, em uma sociedade marcada pela negação radical da humanidade daqueles que se  consideram “outros”?  Ao me deparar com o comentário alocado no inicio deste texto sou obrigado a questionar:  quem é passível de ser ridicularizado e o que essa ridicularização tem em comum com a recusa de enxergar no “Outro” (ou pelo menos em alguns tipos de outros) um humano como “eu”.

“Ninguém ri do tombo da própria mãe”

O provérbio africano que nomeia esse capítulo é aqui retomado para introduzir o seguinte questionamento: até que ponto o inocente ato de rir de (ou fazer) uma piada racista sustenta ou expressa uma negação racializada da humanidade daqueles que são objeto do riso?   Não pretendo com isso dizer que o riso é sempre repudiável e muito menos que existam temas-tabus (acima da piada do bem e do mal), mas refletir como muitas vezes o humor desavisado (ou muito bem direcionado) se coloca a serviço da negação da humanidade do “outro”.

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O filme Bamboozled, de Spike Lee, oferece um cenário inquietante para pensarmos essas questões: Em um mundo nada diferente do nosso, produtores televisivos discutem como alavancar a audiência de sua programação, até que um dos profissionais – não por acaso um homem negro – tem a ideia de recuperar os já socialmente repudiados personagens Black Face[4], de forma que fosse possível reconfigurar o seu teor originalmente racista e ao mesmo tempo, dialogar com o imaginário estadunidense a cerca dos estereótipos relacionados ao Negro. Entretanto, dado às pressões econômicas pela audiência, os jogos de poder a ela relacionados e os caminhos escolhidos pelos indivíduos envolvidos, vê-se o surgimento de um programa que retoma e atualiza os preconceitos raciais mais profundos naquele país, recuperando e atualizando as características essencializantes atribuídas aos negros – muito corpo e pouco cérebro –  para leva-las ao limite em uma expressão caricaturadamente risível.

O nome do filme[5] se torna inteligível quando os personagens negros percebem que suas criações estéticas  têm o poder de voltar-se contra eles próprios, na medida em que o riso provocado, em sua dimensão eminentemente política, não é algo que se faz com eles, mas contra eles, legitimando a sua própria negação. A pergunta que proponho lançar é a seguinte: por que diabos, o negro precisa ser considerado ridículo? Se ridículo é sempre a mãe dos “Outros”, e nunca a “nossa”, como se produz esse processo de outrificação do Negro, a ponto de os não-negros (e muitas vezes os negros socializados nessa forma de ver o mundo) não se ofenderem, ou pior, não visualizarem nenhuma ofensa nesse processo de outrificação? Ou se quisermos colocar a pergunta de outra forma, até que ponto a piada de negro não esconderia, e de certa forma legitimaria, a mesma indiferença que autoriza a rir de uma mãe sendo arrastada viva[6] por uma viatura policial em plena via pública?

Frantz Fanon, importante pensador martinicano do racismo, oferece um importante aporte para pensar essa questão. Para ele a sociedade racista nos relega ao seguinte esquema de interpretação: ser Negro é estar distante do Branco e, portanto, distante de toda concepção de humanidade. O extranhamento em relação à humanidade do Negro surge exatamente quando o Branco não o reconhece como igual, mas como Outro:

“Preto sujo!” Ou simplesmente: “Olhe, um preto!”

Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio a outros objetos. Enclausurado nesta objetividade esmagadora, implorei ao outro. Seu olhar libertador, percorrendo meu corpo subitamente livre de asperezas, me devolveu uma leveza que eu pensava perdida e, extraindo-me do mundo, me entregou ao mundo. Mas, no novo mundo, logo me choquei com a outra vertente, e o outro, através de gestos, atitudes, olhares, fixou-me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei furioso, exigi explicações… Não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos reunidos por um outro eu. (FANON, 2008, p.103. Grifos nossos.)

“É o Branco que cria o Negro” (FANON, 1968) na medida em que desconsidera sua humanidade, tornando-o “objeto em meio a outros objetos”, aprisionando-o naqueles referenciaisfetichizados que deixou de reconhecer em si. Espera-se assim que o Negro (o Outro) seja sempre emotivo, sensual, viril, lúdico, colorido, infantil, banal; o mais próximo possível da natureza (animal) e distante da civilização.  Estas imagens criadas no seio da situação colonial tinham a função de desarticular os sistemas de referência do povo colonizado para que suas “linhas de força” não atuassem contra a imposição de uma forma específica de relação de produção, útil a determinadas fases de acumulação capitalista.

No universo cômico, espera-se que o negro seja sempre um Mussum alcólotra e inocente, umTião Macalé desdentado e risível[7], porque aqui, se há alguma valorização do “outro”, ela se faz pela mistificação fantasmagórica de seus atributos, de forma a confirmar, mesmo que pela valorização reificada a superioridade do branco. O negro só pode ser sublime na medida em que se revele o mais grotesco possível diante de uma razão, beleza e  verdade brancas. De sublime na verdade só resta o prazer do riso que a sua imagem jocosa proporciona ao  espectador informado pelos estereótipos que ele personifica e reforça. Se o grotesco é aquilo está confinado às grutas quaresmáticas do processo civilizador, resta ao Negro esperar o carnaval para surgir em público e lembrar ao ocidente o seu eu negado, antes que a quarta-feira de cinzas o relegue novamente às sobras da humanidade ocidental.

O Negro é suspeito “nato” até que se prove o contrário, pois “espia” para dentro de grutas imaginárias aquilo que o ocidente trás de mais selvagem, sádico e desumano.  É a figura que permite à sociedade carioca, algumas poucas décadas depois da ditatura, dormir sossegada com a notícia de ocupação das ruas (das favelas) por tanques de guerra militares. É a figura animalizada que reforça o quão humano, belo, bom e verdadeiro é todo aquele que se afasta deste referencial macaqueado. O Negro é o outro e, portanto, o riso do tombo de sua mãe, ou dos seus filhos  não exige grandes conflitos éticos: não se trata de um ser humano como eu, mas um Outro, radicalmente oposto ao Nós, “cidadãos de bem”.

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A política é a guerra feita por outros meios, e neste sentido, sou obrigado a concluir que o diretor do Zorra Total e o policial que arrastou Cláudia Silva Ferreira pelo asfalto de Madureira têm muito em comum porque ambos, embora por meios distintos anulam, cada um com sua arma, a possibilidade efetiva de nos vermos e fazermos uns nos outros como humanos. A causa-morte de Cláudia deve ser compreendida para além do asfalto que lhe consumiu a carne em frente das câmeras portáteis; deve ser compreendida para além dos tiros que interromperam violentamente o seu trajeto de casa à padaria, para ser explicada em cadaMussum, Adelaide, Tião Macalé e tantas outras representações animalizadas ou coisificadoras que autorizaram, direta ou indiretamente, um tratamento aos moradores da favela que despreze qualquer sentimento de alteridade.

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Morro com Claudia em sua agonia de dor contra o asfalto cinza do Rio de Janeiro… Morro, mas de uma morte que não se inicia com o tiro perpetrado pelo policial, mas a cada piada desferida quase sempre contra a humanidade do “Outro”, seja ele(a) lá quem for.

Referências

Alberti, Verena. “O riso, as paixões e as faculdades da alma”. Textos de História. Revista da Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Brasília, UnB, v.3, n.1, 1995, p.5-25.

BAKHTIN, Mikhail, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, São Paulo, Hucitec/ UNB, 1987

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. São Paulo: Martins  Fontes, 2004.

ELIAS, N. O processo civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro:  Jorge Zahar Ed., 1993, v. II.

 FANON. F. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Editora Fator, 1983.

_______. Sociologia dúne révolution. «L’an V de la Revólution algerienne ». François Maspero. París. 1968 (petite collection maspero)

MINOIS, Georges, O riso sensato do bobo da corte in História do riso e do  escárnio, São Paulo, Unesp, 2003

Molière. Jean-Baptiste Pocquelin Le Malade maginaire. Paris: Bordas. 2003.

Filmes utilizados: 

Bamboozled. Diretor: Spike Lee. Roteiro: Spike Lee  Ano: 2000. Disponível emhttps://www.youtube.com/watch?v=VnCkHKlwFnA. Acesso em 23 de fevereiro de 2014.

O riso dos outros. Diretor: Pedro Arantez. Ano 200. Disponível emhttps://www.youtube.com/watch?v=uVyKY_qgd54. Acesso em 20 de fevereiro de 2014.

[1] Grupo KILOMBAGEM.

[2] Comentários escritos por um leitor do jornal G1.Globo a respeito das imagens de auxiliar de limpeza Cláudia Silva Ferreira sendo arrastada pelo asfalto por uma viatura policial no Rio de Janeiro. http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/arrastada-por-carro-da-pm-do-rio-foi-morta-por-tiro-diz-atestado.html. Acesso em 17 de março de 2013.

[3] Anuncio de destaque na página PIADA DE PRETO, de um site de piadas “temáticas” escolhidas por tópicos: http://selecaodepiadas.webnode.com.br/piadas-de-pretos/.

[4] A Black Face é uma performance teatral estadunidense que se apropriava dos estereótipos racistas para representar os negros. Ver nesse sentido:http://en.wikipedia.org/wiki/Blackface.

[5] A palavra bamboozled pode ser traduzida como “AHH! PEGADINHA DO MALANDRO!!!!”,

[6] O caso em questão gerou muita polêmica e em resposta, foi divulgado um atestado de óbito aferindo os tiros anteriormente recebidos como verdadeira causa da morte de Claudia. O laudo no entanto, não comenta, e nem poderia ser diferente diante da repercussão negativa que o caso assumiu, se o fato de a mulher ter sido arrastada antecipou sua morte por ferimento a bala ou se ela já estava morta no momento em que o seu corpo rola dentro do porta-malas da viatura em movimento em direção ao asfalto. Por um caminho ou por outro, “a trapalhada” policial não resultou apenas na interrupção de uma vida, mas na anulação de sua dignidade.

[7] Referencia a dois personagens bastantes presentes no imaginário social brasileiro: o primeiro interpretado pelo ator de Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994) representa o Musum, uma das personagens do programa Os Trapalhões, veiculado pela Rede Globo. E o segundo, o Tião Macalé, interpretado pelo ator Augusto Temístocles da Silva Costa (1926-1993).

[1] Texto apresentado como trabalho de conclusão de curso para a disciplina Sociologia do Riso, com o Prof. Dr. Jorge Leite – UFSCAR 2014

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Contra o Racismo deve estar a nossa Localidade Afrocentrada

Nea Onnim No Sua A, Ohu "Quem não sabe pode estar aprendendo", símbolo do conhecimento, da aprendizagem permanente e da busca contínua do saber. (Adinkras  - ideogramas que incorporam e transmitem história, filosofia, ciência, valores, dos povos da Gana).
Nea Onnim No Sua A, Ohu “Quem não sabe pode estar aprendendo”, símbolo do conhecimento, da aprendizagem permanente e da busca contínua do saber. (Adinkras – ideogramas que incorporam e transmitem história, filosofia, ciência, valores, dos povos da Gana).

O Racismo segue se manifestando, mostrando que esta mais forte do que nunca e a humanidade perdida no limbo das mentes colonizadas frente as expressões racistas que surgem diariamente. Eu não vou me prestar a essa idiotização, mesmo para contestar a expressão debiloide de que somos macacos.

Os aparelhos do Estado que deveriam mover mecanismos de jurisprudência sobre estas questões que ameaçam o senso global do que vem a ser o conceito “humanidade”, nem se manifestam; o governo brasileiro na figura da presidente e demais políticos se limitam a postar seus comentários idiotas no twitter e no facebook, e pior, muitos postando fotos segurando bananas.

Enquanto isso a polícia (corporação policial) segue matando pessoas pretas e cometendo todo o tipo de injustiça social e abusos, sofisticando a violência racista que, desde o sistema de escravidão, organiza os sistemas de valores, crenças, medos, gostos, ética, educação, saúde, política, economia, governos, e, por que não, o esporte.

Quando entende-se que o racismo se “complexificou”, e que temos que entender suas redes ‘neurais’ cerebrais e também suas interconexões com a mente humana, significa dizer também que temos que começar a fazer um forte exercício de apropriação da nossa história, e de localização da nossa centralidade africana. É preciso para de agir em resposta das demandas para encontrarmos a África em nós, que nos dará poder através de nossa ciência, historicamente acumulada ao longo da história da humanidade, e recentemente roubada, violentada, escamoteada, ressignificada, pelas sociedades que financiaram as grandes guerras mundiais, e a enorme violência aos países ao sul.

O futebol é hoje o campo por onde o racismo está manifestando com bastante força justamente porque devido aos pequenos (porém significativos) avanços nos direitos humanos contra o racismo, o racismo enquanto mecanismo complexo e criativo – que cria, ele próprio redes e interconexões não-locais, e descontínuas – por meio das emoções humanas, das paixões e frustrações intensamente vividas no contexto esportivo, encontrou terreno fértil de afirmação e adaptação.

Daniel Alves comendo a banana atirada em campo por torcedores racistas, na partida entre o Barcelona e Villarreal.
Daniel Alves comendo a banana atirada em campo por torcedores racistas, na partida entre o Barcelona e Villarreal.

No contexto do esporte, e em especial no futebol, o xingamento sempre foi autorizado, e o racismo nunca foi um absurdo porque, afinal de contas, é a cultura do futebol. Ali se xinga, mas não se perde a amizade porque as desavenças ficam no campo. Chama-se de macaco porque se estava nervoso, e quem não entende paixão de futebol? Lógico que o esporte também é terreno de luta política, mas os casos de manifestações de racismo e outros mecanismos de desigualdades são muito mais numerosos do que os casos onde estes mecanismos são problematizados e questionados.

É da criatividade enegrecida que encontraremos caminhos de luta e superação do racismo. A criatividade enegrecida, de localidade afrocentrada, capaz de repensar a sociedade e propor um projeto social verdadeiramente humanizado não se dará se não fizermos o exercício (inclusive físico, de dispêndio energético mesmo) de solidariedade e sincronia quântica das nossas mentes para a busca de uma orientação coerente dadas as regras do jogo social em que estamos submetidos.

Ubuntu é uma ética ou ideologia do idioma banto Ngúni. É uma filosofia africana que existe em vários países de África que foca nas alianças e relacionamento das pessoas umas com as outras. A palavra vem das línguas dos povos Bantos; na África do Sul nas línguas Zulu e Xhosa. Ubuntu é tido como um conceito tradicional africano, que remete ao complexo entendimento de "humanidade para com os outros", ou "a crença no compartilhamento que conecta toda a humanidade", e ainda "Sou o que sou pelo que nós somos". Portanto, um profundo e complexo comprometimento o ser humano com a humanidade de que ele é produtor e produto, em relação recíproca de causa dinâmica.
Ubuntu é uma ética ou ideologia do idioma banto Ngúni. É uma filosofia africana que existe em vários países de África que foca nas alianças e relacionamento das pessoas umas com as outras. A palavra vem das línguas dos povos Bantos; na África do Sul nas línguas Zulu e Xhosa. Ubuntu é tido como um conceito tradicional africano, que remete ao complexo entendimento de “humanidade para com os outros”, ou “a crença no compartilhamento que conecta toda a humanidade”, e ainda “Sou o que sou pelo que nós somos”. Portanto, um profundo e complexo comprometimento o ser humano com a humanidade de que ele é produtor e produto, em relação recíproca de causa dinâmica.

Jévaristo

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INTELECTUAIS NEGRAS – Bell Hooks

 O texto fala da importância política da teoria e aponta para a necessidade de se estimular homens negros e ( sobretudo) as mulheres negras à produção teórica comprometida com transformações sociais radicais.

O texto denuncia as visões que reduzem os(as) negros(as) ao corpo (animalizado) e discute os diversos processos que os desestimulam a atividade intelectual, enfatizando um cruzamento perverso entre contradições de raça,classe e gênero, associados a uma equivocada desvalorização do trabalho intelectual nos espaços negros militantes.

O espaço intelectual, tradicionalmente reservado aos homens brancos, torna-se ainda mais inacessível às mulheres negras que aos homens negros, na medida em que não encontram estímulos durante o seu processo de socialização para tal empreitada.

O texto oferece uma ótima oportunidade para se refletir sobre a as intersecções entre gênero, raça e classe e, e principalmente, sobre a importância de se reforçar o estímulo junto a população negra (sobretudo as mulheres negras) à atividade intelectual.

“Entre os grupos de mulheres assassinadas como bruxas na sociedade colonial americana as negras têm sido historicamente vistas como encarnação de uma perigosa natureza feminina que deve ser governada. Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade AS NEGRAS TÊM SIDO CONSIDERADAS SOMENTE COMO CORPO SEM MENTE A utilização de corpos femininos negros na escravidão como incubadoras para a geração de outros escravos era a exemplificação pratica da ideia de que as mulheres desregradas deviam ser controladas. Para justificara exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representa-las como ALTAMENTE DOTADAS DE SEXO, A PERFEITA ENCARNAÇÃO DE UM EROTISMO PRIMITIVO E DESENFREADO. Essas representações incutiram na consciência de todos A IDEIA DE QUE AS NEGRAS ERAM SÓ CORPO SEM MENTE A aceitação cultural dessas representações continua a informar a maneira como as negras são encaradas. Vistos como simbolo sexual os corpos femininos negros são postos numa categoria em termos culturais tida como bastante distante da vida mental. Dentro das hierarquias de sexo/raça/classe dos Estados Unidos as negras sempre estiveram no nível mais baixo O status inferior nessa cultura e reservado aos julgados incapazes de mobilidade social por serem vistos em termos sexistas racistas e classistas como deficientes incompetentes e inferiores”

Confira o texto na íntegra:

http://gpsufrb.files.wordpress.com/2012/04/intelectuais-negras.pdf

 

Nucle de Estudos Afrikanidades: Grupo KILOMBAGEM

 

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Nota Pública sobre Perseguições e Ameaças Contra Militantes do Comitê Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica de São Paulo.

“Os moradores dos morros, desde o fim da escravidão, criaram inúmeros grupos que se organizavam em vários níveis, objetivando fins diversos. Dentro da situação social concreta em que se encontrava, que era o da marginalidade, o negro do morro, favelado, tinha de organizar-se para que, dentro da situação que lhe impuseram, pudesse sobreviver e praticar uma série de atividades que o preservariam de um estado de anomia total.” Clovis Moura, in Sociologia do Negro Brasileiro

Tornamos público através desta, ameaças e perseguições sofridas nos últimos meses contra militantes que compõem o Comitê Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica de São Paulo, uma frente ampla de denúncia contra a violência do Estado dirigida a população negra pobre e periférica, composta por diversas organizações, movimentos populares e movimento negro. O aumento da violência contra a população preta, sobretudo no ano de 2012, onde mais de cinco mil pessoas foram mortas (executadas), é reflexo do projeto Genocida do Estado brasileiro, que historicamente condenou essa população. Sabemos que a repressão aos movimentos sociais e a seus militantes faz parte desse processo e é por isso que nós militantes que diariamente convivemos com a violência instaurada pelo Estado nas periferias, viemos tornar público ameaças e perseguições pelas quais alguns de nós estamos passando.

No dia 22 de agosto, realizamos em São Paulo a versão regional da Marcha Nacional Contra o Genocídio da População Negra, cujo foco foi denunciar o alto índice de mortes letais (genocídio) da juventude preta e se posicionar contra a militarização dos órgãos públicos da cidade como, por exemplo, a Câmara Municipal, que abriga parlamentares ligados ao universo militar. Durante a concentração do ato, em frente ao Teatro Municipal – região central da cidade, nos deparamos com vários policiais portando máquinas fotográficas e câmeras digitais, registrando imagens dos participantes. Notamos que a partir desta ocasião, alguns dos militantes do Comitê passaram a perceber ameaças. Na mesma noite do ato, um jovem negro que seguia sozinho para metrô (morador de periferia e integrante do movimento Hip- Hop) foi abordado por dois policiais após a dispersão da Marcha. Durante a abordagem policial, ele quase foi atropelado por uma viatura da guarnição.

Outro episódio aconteceu no mês de setembro, na Câmara Municipal de São Paulo, em que militantes do Comitê se posicionaram contra a entrega da homenagem “Salva de Prata”, à ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), criado durante a Ditadura Militar para reprimir a guerrilha urbana e mais tarde os cidadãos moradores das periferias.

Durante a sessão, um dos policiais presentes na Casa Legislativa anotou o número de telefone e o endereço residencial de um dos militantes em papel a parte e o guardou dentro do próprio bolso, sendo esse um procedimento inadequado, segundo alguns vereadores da casa.

Na última semana, mais uma família passou por uma assustadora violência: desta vez, foi uma tentativa de homicídio (não se sabe se a vítima foi confundida com outra pessoa). Entretanto, o que sabemos é que dois homens em uma moto seguiram e dispararam contra um carro guiado por um casal negro, atingindo o braço da mulher (mãe de um jovem negro de 15 anos). O referido casal é parente de um dos militantes do Comitê.

Recentemente três militantes ligados a organizações que compõem o Comitê foram alvos de racismo, sendo hostilizados, com ataques verbais e ameaças também vindas de agentes policiais.

Infelizmente tais fatos não são episódios isolados. Militantes ligados a movimentos sociais e sobretudo ao movimento negro em todo pais estão sofrendo diariamente com retaliações, perseguições, ameaças e atentados à vida, inclusive tendo suas casas invadidas pela polícia, sem mandado, no meio a madrugada – como ocorreu recentemente com um militante em Salvador.

Diante de tudo isso, percebemos a necessidade de expor e tornar público os fatos para que todos tenham conhecimento da covarde política de criminalização dos movimentos sociais, movimentos negros e seus militantes. Já encaminhamos denúncias formais aos departamentos competentes, seguiremos nossa prática de denúncia da violência e de cobrança do papel ao qual o próprio Estado, em nossa Carta Magna se reserva: a proteção e o bem estar dos cidadãos.

Comitê Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica
Apoiam: | Ação Comunitária | Adunesp (Sindicato dos Docentes da Unesp) – Seção Sindical Marília | Agentes de Pastoral Negros do Brasil – APNs | Amparar – Associação de Amigos e Familiares de Presos | Ana Karla Moreira Silva – Estudante de Serviço Social – PUC/SP | ANEL | Associação de Favelas de São José dos Campos | Associação de Mulheres Negras Acotirene | Blog – Sp Que Vc Não Vê|  Bruna Lasevicius Carreira – Estudante de Direito – FMU/SP | Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto| Carlos Latuff| CEDECA Interlagos | CEN – Coletivo de Entidades Negras | Centro de Memória do Grande ABC | Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada| COADE (Coletivo Advogados para a Democracia) | Coletivo Anarcafeminista Marãna | Coletivo de Mulheres Negras Louva Deusas| Coletivo Práxis| Comitê pela Desmilitarização | Comitê Popular da Copa SP | Comuna Aurora Negra | Coordenação Nacional de Estudantes de Psicologia – CONEP | CONEN | Escola de Governo | Federação Nacional dos Advogados| Fórum de Hip Hop MSP| Fórum Latino Americano de Combate a Discriminação Racial | Fórum Nacional 13 de Maio | Fórum Nacional de Mulheres Negras | Fórum Sindical dos Trabalhadores-SP | Frente da Feminista USP | Grupo de Mulheres Negras Nzinga Mbandi | Grupo Margens Clínicas| Grupo Tortura Nunca Mais – SP| Instituto Práxis de Direitos Humanos| Intersindical – SP | Juventude às Ruas | Juventude da CONEN| Kilombagem | Mães de Maio | Maçãs Podres | MAP-SP Movimento Anarcopunk de São Paulo | Movimento Terra Livre | Movimento Negro Unificado | MSP – Movimento Pela Saúde dos Povos – Brasil | Nucleo Anarco-Rap | Núcleo de Consciência Negra da USP | Pão e Rosas | Periferia Ativa | Profa Joana Aparecida Coutinho – UFMA | Profa. Laura Camargo Macruz Feuerwerker FSP/USP | Profa. Maria Fernanda| Prof. José Henrique Viégas Lemos – Biólogo da Rede Pública Municipal e Estadual de Educação | Prof. Milton Pinheiro – UNEB | Quilombo Raça e Classe | Quilombo Xis | Rede 2 de Outubro| Rede Lai Lai Apejo Soweto Organização Negra| TRIBUNAL POPULAR:O Estado Brasileiro no Banco dos Réus| UJS – SP | UNEafro-Brasil |

ADESÕES DE ASSINATURAS EM APOIO À NOTA FAVOR ENVIAR PARA: c.genocidiojppp@gmail.com

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Colonialismo, racismo e luta de classes: a atualidade de Frantz Fanon

Artigo publicado em  GEPAL – Grupo de Estudos da Política da América Latina – Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina  “Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro”  ISSN 2177-9503  10 a 13/09/2013 – GT 1. Lutas camponesas e indígenas na América Latina 216 (pp. 216-232).

Deivison Mendes Faustino (Deivison Nkosi) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFSCAR; Núcleo de pesquisa Afrikanidades (Grupo KILOMBAGEM)

Sdeivison@hotmail.com

Versão em pdf disponível em: http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/v16_deivison_GI.pdf

Resumo:

A presente comunicação apresenta a vida e obra de Frantz Fanon  enfatizando a atualidade de seu pensamento para pensar as relações entre racismo,  colonialismo e luta de classes. O autor seleciona algumas categorias discutidas por  Fanon, e as discute a luz de sua trajetória de vida, observando como o mesmo  respondeu às perguntas colocadas por seu tempo. Ao revisitar os escritos fanoninanos o autor identifica e problematiza as categorias: alienação colonial, narcisismo, sociogênese, luta de classes, práxis revolucionária, terceiro-mundismo, negritude, libertação nacional e emancipação. O autor encerra o texto questionando se ainda há espaço para Fanon na sociedade contemporânea, aproximando-se das concepções de Gibson (2007 e 2011), Wallerstein (2008), Rabaka (2011) ao concluir que a atualização do racismo sob a lógica das novas necessidades de acumulação capitalistas tornam os escritos de Fanon leitura obrigatória.

Palavras-chave: Frantz Fanon; Colonialismo; Racismo; Luta de classes.

Todas as vezes em que um homem fizer triunfar a dignidade do espírito, todas as vezes em que um homem disser não a qualquer tentativa de opressão do seu  semelhante, sinto-me solidário com seu ato.

Frantz Fanon

Introdução

Passados mais de cinquenta anos após a morte precoce de Frantz Fanon em 1961, quando tinha 36 anos, o pensamento do autor ainda é discutido por acadêmicos e ativistas políticos em diferentes línguas e regiões. Entretanto, essa presença no cenário atual é acompanhada por intensos debates sobre o que se considera como estatuto central de sua obra, e principalmente, quais categorias apresentadas por ele podem ser apropriadas como elementos relevantes para a compreensão da sociedade contemporânea (MBEMBE, 2011 e GORDON, SHARPLEY-WHITING E WHITE, 2000).

Os chamados estudos culturais ou pós-coloniais, embasados em uma perspectiva pós-estruturalista, têm retomado a leitura fanoniana a partir de uma leitura do colonialismo como “discurso” (ou paradigma) implícito à sociedade moderna, promotora de experiências racializadas. A contribuição central de Fanon, segundo esta corrente, seria a ruptura com uma noção essencialista de identidade (hegeliana) rumo a uma noção aberta aos jogos fluidos – como contraposição a ontológicos – da identificação (HALL, 1996 e 2009; APPIAH, 1997 e ÁLVARES, 2000).

Outra linha de estudos um pouco diversa desta anterior é uma corrente originalmente surgida na América Latina, autodenominada pensamiento decolonial. Esta vertente, também conhecida como proyecto decolonial ou proyecto de la modernidad/colonialidad, visualiza em Fanon a possibilidade de analisar o capitalismo (Sistema-Mundo) contemporâneo a partir de uma “perspectiva do Sul”. Pautadas em uma crítica ao pós−modernismo e o pós−estruturalismo, pelo que atribuem ser uma demasiada vinculação desses estudos à “matrizes de poder colonial”, esta corrente difere dos Estudos Pós-Coloniais ao divergir da ideia de superação do colonialismo que o termo “Pós” atribui.

Além disso, identifica nos estudos pós-coloniais uma subestimação dos aspectos econômicos da realidade social, em detrimento das dimensões culturais e subjetivas. Propõe nesse sentido, a noção de Heterarquia – relação entre as várias esferas sem uma atribuição prévia de hierarquia – entre economia, cultura, subjetividade e política (DUSSEL, 1977; MINGOLO 2000; MALDONADO-TORRES, 2005 e QUIJANO 1991, 1998, 2000).

Já entre os autores classificados como marxistas também é possível observar apreensões diversas em relação ao que se considera atual no pensamento fanoniano. Em Zizek (2011) a problematização fanoniana da dialética do senhor e do escravo, elaborada por Hegel é retomada em contraposição a uma abordagem multiculturalista para enfatizar uma perspectiva humanista que recoloque o debate sobre a relação entre indivíduo e generalidade humana, na medida em que o individuo se veja e se coloque na disputa pela definição do universal.

Para Gibson, a atualidade de Fanon estaria na ferramentas conceituais que oferece para compreender a renitência da violência colonial na sociedade contemporânea. As manifestações indígenas contra a privatização da água da Bolívia; o os conflitos na palestina e os acontecimentos em torno da chamada Primavera Árabe; as massivas manifestações em Atenas; Chipre e Espanha bem como a persistência da barreira de cor na África do Sul pós-apartheid seriam segundo ele elementos que colocam as preocupações de Fanon na ordem do dia. (GIBSON, 2007 e 2011)

Já Rabaka visualiza no que ele classifica como fanonismo revolucionário, a possibilidade de atualizar o marxismo a partir da abordagem as relações contemporâneas entre capitalismo e colonialismo. A constante subestimação do racismo – “narcisismo obsceno – pela esquerda convencional e a dificuldade desta em elaborar projetos políticos condizentes com as particularidades históricas e culturais dos povos colonizados devem ser enfrentados pela esquerda marxista conforme propõe, segundo ele a dialética Sankofiana de Fanon rumo a a libertação do ser a um nível mais elevado da vida humana (RABAKA, 2011).

Em Wallestain, Fanon é apropriado para discutir vários assuntos atuais, mas em um artigo intitulado Ler Fanon no século XXI, destaca-se a ideia de que a atualidade de Fanon está, para além de apontar o caráter intrinsicamente violento do colonialismo e os impactos dessa violência na subjetividade dos povos colonizados, está no questionamento às lutas identitárias como caminho emancipador quando estas não se dirigem à perspectiva da emancipação humana. A luta de classes é uma realidade que não se restringe ao universo europeu e deve ser observada em suas particularidades históricas, no contexto colonial (Wallestain, 2008).

Em estreita relação com esse debate, mas, sobretudo, visando à compreensão das categorias fanonianas à luz de seu contexto sócio-histórico, pretende-se apresentar alguns temas discutidos pelo autor  relacionando-os à sua trajetória.

“Nossos pais, os Gauleses”

Frantz Omar Fanon nasceu em Julho em 20 de julho de 1925, no seio de uma família de classe média em Forte de France, Martinica, região francesa no Caribe. A Martinica ainda hoje é considerada um departamento ultramarino insular francês, e os seus habitantes – a grande maioria composta por negros que se sentem franceses – aprendiam nas escolas assimiladas, frequentadas por Fanon, que os “pais de sua Pátria” eram os Gauleses. Em 1944, quando a França estava invadida pela Alemanha nazista, Fanon alistou-se no exercito francês para lutar contra a invasão, mas lá no front de guerra, junto aos franceses brancos nascidos na metrópole, percebeu que a sua cor o impedia de ser visto como igual pelos seus “compatriotas”. Por mais que pensava, sentia ou desejasse o contrário, em face do Branco era visto apenas como Preto:

Subjetivamente, intelectualmente, o antilhano se comporta como um branco. Ora, ele é um preto. E só o perceberá quando estiver na Europa; e quando por lá alguém falar de preto, ele saberá que está se referindo tanto a ele quanto ao senegalês. (FANON, 2008:132)

A percepção deste não-reconhecimento em face do branco francês exerceu grande influência em Fanon impactando os seus futuros escritos e prática política.

Em 1946 Fanon iniciou o seu curso de medicina em Lyon (França metropolitana) e neste período, participou de diversos seminários e debates universitários, onde entrou em contato com renomados pensadores discutidos na França nesta época como Sartre, Jaspers, Lacan, Marx, Hegel, Nietzsche entre outros. Em 1952, quando termina o seu curso, Fanon escreve a primeira versão da sua tese doutorado em psiquiatria, mas esta foi rejeitada por confrontar as correntes positivistas então hegemônicas na área. Decepcionado, escreve então uma segunda tese que nomeou como: Transtornos mentais e síndromes psiquiátricas em degeneração espino-cerebelar-hereditária. Um caso de doença de Friedereich com delírio de possessão[1]. Depois de intensos e acalorados debates com a banca examinadora, seu trabalho foi aprovado, e ele enfim, pôde exercer sua profissão.

Após doutorar-se, conhece François Tosquelles (1912-1994)[2] e segue para Saint Alban para estudar e trabalhar com ele, tornando-se seu aprendiz e amigo:

Durante dois anos, Fanon trabalhou em estreita relação com Tosquelles e publicou três trabalhos de investigação diretamente com o professor e outros tantos com outro discípulo. Os programas de reforma médica que (Fanon) introduzi(rá futuramente) nos hospitais em Blida, Argélia, e de Manuba, na Tunísia, foram o resultado de sua educação em Saint Alban (GUEISMAR, 1972:64).

Neste mesmo ano, Fanon publicou uma série de ensaios sobre a situação do negro na França e escreveu um drama sobre os trabalhadores de Lyon (FANON, 1950). Os estudos de Tosquelles marcaram profundamente a concepção de Fanon sobre a profissão psiquiátrica, e luta política como estratégia para superar as alienações psíquicas provocadas pelo colonialismo.

Neste momento, já avisado pelas circunstâncias históricas de que os “seus pais, os Gauleses” não o reconhecia como filho legítimo, o jovem antilhano inicia a revisão do texto de sua primeira tese, outrora rejeitada no doutorado, para discutir as alienações psíquicas vividas pelo negro.

A alienação colonial

A revisão de sua tese rejeitada dará origem ao célebre Peau noire, masques blancs:[3] livro que marcaria a história dos estudos sobre o racismo ao ser retomado por autores ingleses na década de 80 na chamada virada pós-colonial[4].

Neste livro Fanon apropria-se dos clássicos da psicologia, filosofia, sociologia e mesmo da literatura, buscando, nas relações sociais a explicação para alienações psíquicas. Vale ressaltar que a alienação para Fanon não se resumia, como ocorre no senso comum, a uma falta de conhecimento sobre algo ou sobre si, mas sim, a uma perda de si ou da capacidade – implicada em situações sociais concretas – se autodeterminar como indivíduo ou grupo social, subordinado ao colonialismo.

E possível cogitar neste ponto que a proximidade de Fanon com Hegel seja maior do que se presume. Num artigo intitulado o reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière, Theresa Calvet de Magalhães (2009) explica que para Hegel, diferentemente do que fazem supor algumas traduções latinas de Fenomenologia do Espírito, a Auto-consciência (Selbstbewusstsein) não pode ser resumida a um conhecimento subjetivo de si ou de determinada realidade. A alienação seria perda – objetiva – de si, da capacidade de estar em pé por si, ou se autodeterminar.

Essa perspectiva abre caminho no pensamento fanoniano para relacionar os complexos coloniais – enquanto efeitos psíquicos da situação colonial – com a estruturação da sociedade, de modo que sua superação depende não apenas de uma revisão paradigmática, mas antes de qualquer coisa da transformação radical da sociedade:

Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século XIX, Freud, através da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é só uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. De certo modo, para responder à exigência de Leconte e Damey, digamos que o que pretendemos aqui é estabelecer um sócio-diagnóstico.

Qual o prognóstico?

A Sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa a influência humana. É pelo homem que a sociedade chega ao ser. O prognóstico está nas mãos daqueles que quiserem sacudir as raízes contaminadas do edifício (FANON, 2008:28)

Neste livro Fanon avisa que a alienação colonial, como forma específica de exploração capitalista, marca indiscutivelmente a configuração da sociedade moderna fazendo com que brancos (colonizadores) e negros (colonizados), vivenciem cada qual a seu modo, a negação de sua humanidade. A criação e racialização do Outro, bem como o estranhamento daí resultante, retiram do colonizado a possibilidade de ser visto (e, consequentemente, de se ver) como expressão universal do gênero humano.

É o colonialismo que cria (inventa) o Homem Negro, extraindo-lhe a possibilidade de reconhecer-se simplesmente como Humano:

“Olhe, um preto!” Era um stimulus externo, me futucando quando eu passava. Eu esboçava um sorriso.

“Olhe, um preto!” É verdade, eu me divertia.

“Olhe, um preto!” O círculo fechava-se pouco a pouco. Eu me divertia abertamente.

“Mamãe, olhe o preto, estou com medo!” Medo! Medo! E começavam a me temer. Quis gargalhar até sufocar, mas isso tornou-se impossível.

Eu não aguentava mais, já sabia que existiam lendas, histórias, a história e, sobretudo, a historicidade que Jaspers havia me ensinado.

Então o esquema corporal, atacado em vários pontos, desmoronou, cedendo lugar a um esquema epidérmico racial. No movimento, não se tratava mais de um conhecimento de meu corpo na terceira pessoa, mas em tripla pessoa. Ia ao encontro do outro… e o outro, evanescente, hostil mas não opaco, transparente, ausente, desaparecia. A náusea… (FANON, 2008: 105)

O colonizado, negado em sua humanidade genérica, é reduzido ao estatuto de Negro, entendido como o Outro: o específico, sempre contraposto ao Europeu afirmado como expressão do ser humano universal. É possível pensar em música indígena, cabelo afro, cosmovisão africana, cultura negra, mas nunca em música branca, cultura branca. O branco, a cultura branca, ou ocidental, ganham status de universalidade e não precisam ser especificadas. Uma pessoa considerada culta é alguém que domina a “norma culta”: a saber, alguém que detém os conhecimentos referentes à cultura europeia, sejam eles estéticos, filosóficos ou teóricos.

Esta reificação colonial mistifica o europeu, tomando-o como símbolo universal do humano, e aprisiona o colonizado naqueles referenciais fetichizados que se criaram para o Negro, esperando sempre deste que seja emotivo, sensual, viril, lúdico, colorido, infantil, banal… O mais próximo possível da natureza e distante da civilização. Quando não é exótico, ou inexistente em relação àquilo que se entende por Humano, o negro é apresentado apenas como expressão de tudo o que é ruim.

Estas imagens, alerta Fanon em um artigo publicado em 1956 (FANON, 1969), são criadas no seio da situação colonial, e tinham a função de desarticular os sistemas de referência do povo colonizado para que suas “linhas de força” não atuassem contra a imposição de uma forma específica de relação de produção, útil a determinadas fases de acumulação capitalista.

Como médico psiquiatra, Fanon não deixa de enfatizar que a reificação colonial tem efeitos devastadores na subjetividade do negro provocando-lhe impasses que lhe ocasionam um “desmoronamento do ego”:

(…) o negro vive uma ambigüidade extraordinariamente neurótica. Com vinte anos, isto é, no momento em que o inconsciente coletivo é mais ou menos perdido, ou pelo menos difícil de ser mantido no nível consciente, o antilhano percebe que vive no erro. Por quê? Apenas porque, e isso é muito importante, o antilhano se reconheceu como preto, mas, por uma derrapagem ética, percebeu (inconsciente coletivo) que era preto apenas na medida em que era ruim, indolente, malvado, instintivo. Tudo o que se opunha a esse modo de ser preto, era branco. Deve-se ver nisso a origem da negrofobia do antilhano. No inconsciente coletivo, negro = feio, pecado, trevas, imoral. Dito de outra maneira: preto é aquele que é imoral. Se, na minha vida, me comporto como um homem moral, não sou preto. Daí se origina o hábito de se dizer na Martinica, do branco que não presta, que ele tem uma alma de preto. A cor não é nada, nem mesmo a vejo, só reconheço uma coisa, a pureza da minha consciência e a brancura da minha alma. (P.162)

Por outro lado, avisa Fanon, que se o colonialismo reserva ao Negro um complexo de inferioridade, reserva ao Branco de igual maneira, um complexo de superioridade, fazendo com que, cada qual a partir de sua neurose, vivencie a alienação da sua humanidade. A subjetividade do Branco também é neuroticamente marcada pelo racismo, fazendo com que ele transfira ao Negro (ou Outro) àqueles tributos – considerados inferiores ou indesejáveis – próprios de todas as sociedades, mas que a sociedade ocidental quer negar em si própria.

É neste contexto que o Branco desenvolve uma fobia em relação ao negro. Este Outro amaldiçoado e inferiorizado assombra e atrai o imaginário racista com seus atributos –exatamente àqueles que o deixa de ver em si – exageradamente mistificados e animalizados. A sensualidade inata da mulata fogosa; o enorme pênis do negão comedor hiper-viril; a habilidade natural dos negros para atividades lúdicas, emotivas e corporais[5] em geral, assusta e atrai, justamente por corresponder àquilo que passou a faltar ao Branco, no processo de alienação colonial.

O branco está convencido de que o negro é um animal; se não for o comprimento do pênis, é a potência sexual que o impressiona. Ele tem necessidade de se defender deste “diferente”, isto é, de caracterizar o Outro. O Outro será o suporte de suas preocupações e de seus desejos. (FANON, 2008147)

O livro segue enigmaticamente poético até o final, suscitando mais dúvidas do que certezas[6], mas ao mesmo tempo, deixa precisas sobre sua propositura. Se o colonialismo ou a alienação colonial não podem ser resumidos a um estado mental, e mesmo a subjetividade individual só é inteligível no contexto social em que emerge… a desalienação só seria possível mediante a superação das condições sociais alienadoras: veremos que uma outra solução é possível. Ela implica uma reestruturação do mundo.” (FANON, 2008:82)

Termina o livro – depois de afirmar a necessidade de um novo humanismo amparado na defesa de uma sociedade em que não haja mais exploração do homem pelo homem – com uma frase provocadora: “ó meu corpo faça sempre de mim um homem que questiona” (FANON, 2008:191)

*

Em 1953, depois de trabalhar como Chef de service em um hospital psiquiátrico localizado em uma cidade pequena e chuvosa em Pontorson, no interior da França, Frantz Fanon se muda para Argélia para assumir a direção de um hospital psiquiátrico na cidade de Blida, a trinta milhas de distância da capital Argel. Segundo Alejandro Oto (2003) esta nova fase foi fundamental para Fanon compreender os impactos do colonialismo na estrutura psíquica humana, pois se depara com diversos pacientes franceses e argelinos com transtornos mentais provocados pela violência vivida na luta anticolonial que se desenvolvia no país.

A presença centenária do colonialismo fazia-se sentir também na área da saúde. As pessoas vítimas de doenças psíquicas, segundo o conhecimento da época, eram isoladas e abandonadas em hospitais psiquiátricos, presas a camisas de força. No entanto, como era de se esperar em uma sociedade assumidamente colonial, o hospital era dividido em asilos diferenciados para franceses e Nativos. Frantz Fanon, inspirado nos ensinamentos de Toscquelles mudou radicalmente esta relação e introduziu reformas estruturais extraordinárias neste hospital. (GEISMAR, 1972:73)

Este lado profissional de Fanon ainda é pouco explorado pela literatura especializada, mas o insere, à inspiração de seu mentor, nos primórdios dos movimento de reforma psiquiátrica[7].

A práxis revolucionária

Em 1952, ao revisar o texto de Pele Negra, máscaras brancas para a publicação, Fanon escrevera a seguinte frase:

Não levamos a ingenuidade até o ponto de acreditar que os apelos à razão ou ao respeito pelo homem possam mudar a realidade. Para o preto que trabalha nas plantações de cana em Robert só há uma solução, a luta. E essa luta, ele a empreenderá e a conduzirá não após uma análise marxista ou idealista, mas porque, simplesmente, ele só poderá conceber sua existência através de um combate contra a exploração, a miséria e a fome. (p.185-6)

Posteriormente, já em sua estadia em Blida estas aspirações revolucionárias vão encontrar guarida na realidade concreta que se apresentou com o desenvolvimento da guerra de libertação (GIBSON, 2011). Com o desenvolvimento das lutas anticoloniais logo após a chegada de Fanon ao país e a intensa repressão que seguiu, a situação ficou bastante tensa, e se refletiu no hospital psiquiátrico, colocando Fanon em uma situação desconfortável. De um lado Fanon passava a atender, como diretor de um hospital público, os torturadores franceses que ficavam atordoados com o sofrimento que infringiam aos Nativos, e do outro, atendia as vítimas da tortura, e de forma clandestina e sigilosa, atendia também aos membros da Front de Liberation Nationale – FLN (GIBSON, 2011).

Há longos meses que a minha consciência é palco de debates imperdoáveis. E a conclusão que chego é a vontade de não desesperar (desésperér) do homem, isto é, de mim próprio. (FANON, 1980:59)

Em 1956 a situação de Fanon já estava politicamente insustentável e a polícia começou a vigiá-lo. Ele que já mantinha contatos com Randame Abane, líder cabila do FLN, provavelmente para não ser preso, se desliga oficialmente do hospital para aderir oficialmente à revolução. É neste momento que escreve uma carta pública ao Ministro Residente, uma espécie de representante administrativo do colonialismo Frances na Argélia, que remonta mais uma vez às suas origens tosquellianas:

A loucura é um dos meios que o homem tem de perder a sua liberdade. E posso dizer que, colocado nesta intersecção, medi com horror a amplitude da alienação dos habitantes deste país.

Se a psiquiatria é a técnica médica que se propõe permitir ao home deixar de ser estranho ao que o rodeia, devo afirmar que o Árabe, alienado permanentemente no seu país, vive num estado de despersonalização absoluta. (FANON, 1980:58)

Após de desligar do Hospital em Blida, Fanon muda clandestinamente com a família para a Tunísia, onde continua trabalho como psiquiatra, mas focará a sua atuação política nos esforços para o fim daquilo, que segundo ele na carta acima, seria a raiz do sofrimento psíquico da Argélia, o Colonialismo. Neste período Fanon se torna correspondente do principal instrumento de propaganda ideológica da FLN, o Jornal El Moudjahid[8].

Os anos seguintes foram marcados por intensa agitação política e participação em fóruns internacionais organizados pelos movimentos de libertação no continente africano. Neste momento Fanon se converte num revolucionário, militante clandestino da FLN, e seu representante internacional no diálogo com os demais países africanos. Em 1959 publica L’ an V de La Révolution Algérienne (O quinto ano da Revolução Argelina). Neste livro, também conhecido como Sociologia de uma revolução, Fanon faz uma descrição fantástica do processo de mobilização social em curso na Argélia.

Discute os dilemas e conflitos vividos em processo de libertação nacional. Afirma que o colonialismo, para ser economicamente viável necessitava negar todos os elementos culturais dos povos subsumidos, a fim de destruir os seus sistemas de referências. Neste cenário a resistência sócio-cultural deve ter em vista não a simples preservação da cultura (negada pelo colonialismo), mas a libertação do povo. Resistir ao colonialismo exige, em determinadas situações concretas, contrapor-se á cultura colonial, sem desconsiderar nela os elementos universais que possam contribuir para o “progresso da nação”.

Os meios de comunicação, os saberes médicos ocidentais, a língua e os valores culturais europeus, outrora instrumentos de opressão colonial, podem se apropriados e (desde que) re-significados pelos povos em luta, possibilitando-os avançar em sua luta por emancipação:

A rádio, o aparato receptor perde seu coeficiente de hostilidade, se despoja de seu caráter estranho e se organiza na ordem coerente da nação em luta. Na psicose alucinatória, depois de 1956, as vozes radiofônicas se converterem em protetoras e cúmplices. Os insultos e as acusações desaparecem e cedem seu lugar às palavras de estímulo e fôlego. A técnica estrangeira, “digerida” pela de luta nacional, se converteu em um instrumento de combate para o povo e em um órgão protetor contra a angústia (FANON, 1968:73. Tradução própria).

O fato de observar-se durante o colonialismo a negação ontológica da cultura dos povos colonizados, não significa que estas culturas não devam por outro lado, serem questionadas, criticadas e reinventadas pelos povos em luta, tendo em vista e emancipação humana.

O véu utilizado pela mulher argelina, segundo Fanon é uma indumentária que reflete a visão de mundo patriarcal árabe, na medida em que é ao mesmo tempo a proteção, isolamento e privação da mulher em relação ao mundo público, entendo como espaço dos homens. Em determinadas situações ele pode ser converter em fator de resistência, mas em outras situações é justamente a sua retirada que permite o avanço da luta. Era resistência nas situações em que foi perseguido pelo colonialismo francês, principalmente quando a mulher argelina passou a fazer parte do processo revolucionário.

Nas ocasiões em que era preciso despistar os agentes repressivos, e se infiltrar entre a população francesa para empreender a luta armada, retirar o véu e fingir assimilar a cultura francesa passa a ser taticamente necessário. Entretanto, alerta Fanon: esta mulher que retira o próprio véu (dévoile) para passar despercebida com uma submetralhadora na bolsa, terá que vivenciar emoções que transformarão irreversivelmente a sua personalidade.

Estas transformações são comemoradas por Fanon, na medida em que esta tradição, embora originalmente negada pelo colonialismo, também se voltava contra as mulheres, limitando a sua vivência enquanto ser humano. Resistir socialmente não implica necessariamente a preservação da cultura inicialmente negada pelo colonialismo. O fato é que para Fanon não havia outra escolha para os povos colonizados, que não seja a via revolucionária:

De facto, a Revolução Argelina restitui à existência nacional os seus direitos. De facto, é testemunho da vontade do povo. Mas o interesse e o valor da nossa Revolução residem na mensagem de que é portadora (…)A Revolução Argelina, propondo-se a libertação do território nacional, visa não só à morte deste conjunto, como à elaboração de uma sociedade nova. A independência da Argélia não é apenas fim do colonialismo, mas desaparecimento, nesta parte do mundo, de um gérmem de gangrena e de uma fonte de epidemia. A libertação do território nacional argelino é uma derrota para o racismo e para a exploração do homem; inaugura o reino incondicional da justiça. (El Moudjahid, n. 10; in FANON1980:72)

E seria este processo revolucionário – ato consciente e arriscadaao negro da Martinica quando Fanon escreve o Pele Negra, máscaras brancas – promovido pelo colonizado é o único que teria o poder de derrubar o colonialismo, tanto na mente do colonizado, quanto nas relações sociais objetivamente postas. Como consequência, possibilitaria ao colonizado, ascender do status de objeto a sujeito histórico de sua própria história.

Se é verdade, como afirma Walter D. Mignolo (2007) que ainda não se pode dizer que estamos em uma época pós-colonial na América Latina, ainda presa aos pressupostos econômicos, culturais e epistêmicos do colonialismo, a pergunta que fica é: quais são as nossas tarefas históricas, para usar um termo cunhado por Fanon, rumo a uma efetiva emancipação?

O terceiro-mundismo e a luta de classes

Em dezembro de 1960, depois de circular por várias partes do continente africano fomentando a necessidade de expandir a guerra de libertação a outros países, no auge de sua atuação política, Fanon inicia a escrita de um livro que problematizaria a relação da revolução argelina com outros povos do Continente. No entanto, para a sua surpresa é diagnosticado é diagnisticado com leucemia, e percebe, mediante aos estágios a medicina se encontra nesta época, que lhe resta pouco tempo de via.

Inicia assim a escrita apressada do que sabidamente seria o seu livro, alterando o curso da escrita de forma a sintetizar seus acúmulos teóricos antes que seu tempo esgote. É neste contexto, que será escrito em questão de meses o famoso Les damnés de la terre[9] . Enquanto escrevia o livro e revisava os trechos, chegou a voar para Itália a fim de encontrar Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, para encomendar a Sartre o Prefácio do seu livro.

O livro trata, entre outros assuntos, dos conflitos implícitos ao colonialismo e à luta anticolonial. Alerta que a violência é parte fundante da sociedade colonial, estando presente em todas as suas expressões materiais e simbólicas. Constata ainda que a superação da lógica colonial só seria viável náquelas situações em que os colonizados empreendessem força material proporcionalmente capaz de abalas as forças sociais a ponto de fazer surgir um homem novo:

A descolonização se propõe a mudar a ordem do mundo, é, como se vê, um programa de desordem abosoluta(…)é um processo histórico: isto é, ela só pode ser compreendida, só tem inteligibilidade, só se torna translúcida para si mesma na exata medida em que discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas, que têm precisamente a sua origem nessa espécie de substancialização que a situação colonial excreta e alimenta. (…) a descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual ela se liberta. (FANON, 2010:52-3)

Num diálogo constante com os movimentos internacionais ligados ao terceiro-mundismo, Frantz Fanon alerta que mesmo na África, o processo de revolução nacional não podem ignorar as especificidades de entificação da capitalismo, a composição das diferentes de classes sociais e seus interesses. Os países coloniais são economicamente mente mortal, tal como descreve Hegel em sua metáfora do senhorio e do servo, e que parecia impossível atrasados e subdesenvolvidos a partir da relação histórica com suas metrópoles sanguessugas. Esta realidade relega as colônias uma produção de bens primários voltados à exportação, uma classe operária insipiente, um campesinato palperizado e analfabeto e uma burguesia local subordinada à interesses externos.

Estas burguesias, forjada no processo colonial, mesmo quando apoiam a independência, tendem a trair sua “vocação” de classe – como se assistiu nos séculos anteriores na Europa – e não assumirem a frente do processo produtivo de forma a acumular o excedente de produção no próprio país. Contenta-se, voltando-se contra os interesses de toda a nação, a se colocar como (nova) dos interesses imperialistas e a continuidade dos processos de hiper-exploração da força de trabalho. O capítulo III Desventuras da consciência nacional, antecipa que a superação do colonialismo não depende apenas da eleição de lideres africanos, mas sim, de uma reorganização das relações de produção, orientada para e com o povo. Do contrario, todo o esforço dos movimentos de libertação se veriam afogados no neocolonialismo:

Essa burguesia que se afasta cada vez mais do povo em geral nem consegue arrancar do Ocidente concessões espetaculares: investimentos interessantes para a economia do país, instalações de certas indústrias. Em contrapartida, as fábricas de montagem se multiplicam, consagrando assim o tipo neocolonialista no qual se debate a economia nacional. Assim, não se deve dizer que a burguesia nacional retarda a evolução do país, que lhe faz perder tempo ou que ele pode conduzir a nação para caminhos sem saída. Efetivamente, a fase burguesa na história dos países subdesenvolvidos é uma fase inútil. Quando essa casta for suprimida, devorada por suas próprias contradições, nós percebemos que nada aconteceu depois da independência, que é preciso retomar tudo, partir outra vez do zero. A reconversão não será operada no nível das estruturas instaladas pela burguesia durante o seu reino, pois essa casta não fez outra coisa senão tomar, sem mudança, a herança da economia, de pensamento e das instituições coloniais .(FANON, 2010:204-5).

Fanon não seria adepto das teorias que advogam que a luta de classes não diz respeito ao continente africano. Pelo contrário, é exatamente pela sua centralidade, que a realidade particular dos países africanos deve se consideradas, sob o risco de se ver fracassar qualquer projeto político, econômico e social alternativo. Neste sentido, Fanon não poupara críticas aos partidos de esquerda europeus e mesmo russos, bem como os seus braços políticos presente nos países subdesenvolvidos, que presos a “modelos prontos” de luta social, impõe aos africanos lógicas que não dialogam que as reais particularidades históricas, culturais e econômicas destes povos, procurando o sujeito revolucionário entre os operários, num país onde 98% da classe trabalhadora é composta por camponeses hiper-explorados.

A crítica à Negritude

Os povos colonizados, não seguiram inertes à colonização e buscaram desenvolver estratégias diversas de resistência e emancipação. É o Branco que cria o Negro, mas é, por outro lado “o negro que cria a negritude” (FANON, 1968:20), afirmando-se na luta por um reconhecimento objetivo.

A pesar de reconhecer a legitimidade histórica da luta anti-racista e dos movimentos de afirmação cultural (FANON, 2010:244), na medida em que promovem o questionamento dos valores racistas europeus, Fano alerta que muitas vezes a luta anti-racista[10] – classificada por ele como “racismo anti-racista” – ou de afirmação cultural não consegue superar os limites e contradições históricas que a forjaram.

O “conceito de negritude” admite, “é a antítese afetiva, senão lógica, desse insulto que o homem branco fazia á humanidade”. E completa: “Essa negritude lançada contra o desprezo do branco se revelou, em certos setores, como o único fator capaz de derrubar interdições e maldições” (FANON, 2010:246). No entanto, essa contraposição, historicamente necessária, levou o movimento a um impasse: “ à afirmação incondicional da cultura europeia sucedeu a afirmação incondicional da cultura africana” (Idem).

Se o colonialismo definiu como essencialmente negro a emoção, o corpo, a virilidade, ludicidade, mas, sobretudo, classificou hierarquicamente estes elementos como inferiores, frente à não menos fetichizada (e ilusória) imagem criada para o Europeu – Razão, civilização, cultura, universalidade -, o movimento de negritude, sem romper com estes fetichismos, apenas inverteu os polos da hierarquia, passando a considerar como positivo àquilo que o colonialismo classificou como inferior.

Assim a inocência, musicalidade, o ritmo “nato” do africano, passam a ser afirmados pelos movimentos anti-racistas como elementos essencialmente africanos, mas agora, vistos como superiores e desejáveis frente à frieza tecnicista ocidental (SENGHOR, 1939). As “almas da gente negra”[11] passam a ser classificadas como essências metafísicas, ou no mínimo históricas, que precisariam ser resgatas e afirmadas para que o negro se reencontre consigo próprio.

Para Fanon, está aí uma armadilha que o movimento de negritude – e talvez o conjunto do movimento negro contemporâneo – corria o risco de ficar preso. Esta “essência negra” que se busca restaurar ou libertar, é na verdade uma invenção do racismo colonial, a serviço da desumanização do africano escravizado nas Américas e aceitá-la, é afirmar retoricamente a rejeição aos pressupostos coloniais, sem rejeitá-los de fato. (FANON, 2010:253)

Os seres humanos são o que fazem e como fazem, mas ter como objetivo último a preservação ou resgate cultural é inverter a ordem de prioridade do mundo, tomando o secundário como primário, valorizando o produto em detrimento do produtor. Esta postura, inicialmente legítima, poderia segundo Fanon levar os movimentos anti-racistas a alguns impasses perigosos, tais como: meter todos os negros no mesmo saco; busca por um passado glorioso em detrimento de uma realidade objetivamente desumanizadora; valorização acrítica e apaixonada de “tudo que for africano”, acompanhada por uma negação quase religiosa de tudo que for “ocidental”; aceitação do pressuposto racista de que a cultura negra é estática e fechada, portanto morta; valorização cultural tomada por central.

Para Fanon seria necessário ir além da – e não se limitar à – afirmação das especificidades culturais historicamente negadas, mas não se limitar a ela. Não é a cultura – historicamente negada – que deve resistir mas sim as pessoas que a produzem, a partir de seus referenciais que estão em constante transformação. É certo que o colonialismo nega ao colonizado a possibilidade de entificação de uma cultura autêntica, e por isto, a emancipação cultural, passa pela emancipação das pessoas que produzem e se produzem pela cultura. É o colonialismo em seu ato negador e reificador que atribui uma ausência de movimento histórico à cultura colonizada, engessando-a em catálogos antropológicos, vendo-as e tratando-as como elementos mortos…

Agir pelo resgate de uma pretensa cultura passada, originalmente negada é secundarizar a emancipação dos indivíduos produtores da cultura. É o combate pelo fim mim material, cultural e epistêmico do colonialismo – e Fanon não nega a importância da afirmação cultural neste processo – que pode promover o surgimento de uma cultura autêntica. Ao invés de se lançar apaixonadamente sobre uma cultura engessada pelo colonialismo, “o dito combatente, o colonizado, depois de tentar perder-se no povo, com o povo, vai, ao contrário, sacudir o povo. Ao invés de privilegiar a letargia do povo, ele se transforma em despertador do povo” (FANON, 2010:256). Trata-se, portanto, não de preservar culturas, mas ressignificá-las, na luta, em busca da emancipação:

O homem de cultura, ao invés de partir à procura dessa substância, deixa-se hipnotizar por esses farrapos mumificados que, estabilizados, significam, pelo contrário, a negação, a superação, a invenção. A cultura nunca tem a translucidez do costume. A cultura foge, eminentemente, de toda simplificação. Na sua essência, ela está no oposto ao costume, que é sempre uma deterioração da cultura. Querer colar na tradição ou reatualizar as tradições abandonadas, é não ir apenas contra a história, mas contra o povo. Quando um povo apoia uma luta armada ou mesmo política contra um colonialismo implacável, a tradição muda de significado. O que era técnica de resistência passiva, pode ser nesse período radicalmente condenado. Num país subdesenvolvido em fase de luta, as tradições são fundamentalmente instáveis e sulcadas por correntes centrífugas. (FANON, 2010:258)

Outro ponto destacado por Fanon é que o movimento de negritude, muitas vezes, assume a posição colonial segundo o qual o Branco/europeu é universal e o Negro/africano específico. O movimento de negritude, preso a um presente desesperançado, sem perspectiva no futuro segue afirmando um passado específico ao invés de atuar para desmistificar a ilusão colonial que exclui os africanos e seus descendentes da possibilidade de serem reconhecidos (e se reconhecerem) como universalidade.

Nas palavras de Fanon, devemos ao contrário, trabalhar para “a dissolução total deste complexo mórbido (alienação colonial). Estimamos que o indivíduo deva tender ao universalismo inerente à condição humana” (FANON, 2008:28).

Sair dos impasses criados pelo colonialismo exigir-nos-ia, como afirma Fanon, descer aos “verdadeiros infernos”, indo além da mera afirmação da identidade historicamente negada em direção ao humano-genérico. A desalienação é possível mediante a reestruturação do mundo.

Eu, homem de cor, só quero uma coisa:

Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre. (FANON, 2008:190)

Fanon almejava a revolução social como possibilidade histórica, e principalmente, como condição para superação das alienações psico-sociais. Mas sabia que as lutas sociais não poderiam ter êxito sem terem como ponto de partida, a realidade concreta em que surgem.

Em setembro de 1961, alguns meses depois de escrever seu ultimo livro, o seu estado de saúde de Fanon volta a ficar crítico. Ele então aceita a contragosto um convite para se tratar em Washington. Sabia que sua doença não tinha cura, mas esperava que o tratamento por La prolongasse mais algum tempo os seus dias de vida. Ao ver sua saúde cada vez mais debilitada, escreve uma carta a um amigo afirmando que o que mais o entristecia não será saber que estava morrendo, mas morrer de Leucemia em Washington quando poderia estar fora do front de batalha. (GEISMAR, 1972:181)

Aos 6 de dezembro de 1961 morre bastante debilitado, algumas semanas depois ter tido uma aparente melhora no quadro de saúde e visto os primeiros exemplares de Os condenados da terra impressos.

Há espaço para Fanon no século XXI?

Recuperar Fanon na atualidade é como afirma Wallerstein (2008:11), apostar numa “luta cujo desfecho é completamente incerto”. Muitos acontecimentos históricos posteriores à morte de Fanon nos levantam o questionamento de como ele analisaria ou confrontaria o colonialismo no século XXI? Os retrocessos políticos observados na Argélia com a islamização do Estado após a independência; as diversas e sucessivas ditaduras e decapitação de lideres anti-imperialistas nos países africanos recém-libertos; a queda do Muro de Berlin e o surgimento de uma geração para o qual a perspectiva de futuro está ausente; as conquistas democráticas ( relativas) obtidas sem violência nos países subdesenvolvidos; e mesmo as drásticas alterações na sociedade moderna, provocada pela reestruturação produtiva e sua crescente financeirização da economia e readequação das fronteiras nacionais; o surgimento dos Novos Movimentos Sociais, suas viradas paradigmáticas e o próprio Neoliberalismo. Todos estes novos conflitos e contradições, impensáveis à época de Fanon levantam o questionamento se o autor estaria ultrapassado.

Por outro lado, um olhar mais atento tanto sobre sua produção quanto sobre a realidade presente sugerir exatamente o contrário. O “caráter constante, renovado e transformado” que o racismo adquire fez com que a racialização se tornasse uma realidade global na sociedade contemporânea (SILVÉRIO, 1999). Do genocídio perpetrado pelo Estado de Israel aos palestinos à Erupção da Primavera Árabe; do alto e desproporcional índice de mortalidade materna das mulheres negras no Brasil, em relação às mulheres brancas às políticas higienistas de faxina urbana, tirando de circulação a força usuários de drogas e moradores de rua indigestos à especulação imobiliária de determinadas áreas; da persistência do racismo no Brasil ao atual e violento processo de extermínio vivenciado pela juventude negra no Brasil; da manutenção atualizada da “exploração do homem pelo homem”, reconfigurada e ressignificada não para se desfazer, mas para se intensificar… Em todos estes e outros problemas sociais presentes e latentes, colocam-nos diante de dilemas para os quais Frantz Fanon tenha muito a dizer.

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ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo. BOITEMPO EDITORIAL, 2011


[1] O título original é: Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans l’hérédo-dégénération-spino-cérébelleuse: Um cas de maladie de Friereich avec délire de possession

[2] O psiquiatra espanhol François Tosquelles nasceu na Catalunia e chegou a participar da Guerra Civil Espanhola. Fugido do franquismo, instala-se na França onde inicia diversos estudos alternativos de psiquiatria em Saint Alban, onde Fanon Fanon trabalhou. Visionário e anticolonialista, Tosquelles criou a psicoterapia institucional, que poderia ser traduzido como terapia comunitária. A partir da influência de Freud, Reich, Politzer e Marx, pensava a loucura – alienação psiquica – ou o sofrimento psíquico em sua relação com o meio social em que o doente está inserido. Num outro polo, a desalienação psíquica dependeria da reorganização da sociedade, e portanto, as terapias de tratamento introduziam experimentos alternativos como assembleias democráticas entre profissionais e pacientes, trabalhos comunitários etc. (RODRIGUES, 2007)

[3] Publicado em Língua Portuguesa pela EDUBA sob o título: Pele negra, máscaras brancas. (2008).

[4] Os Estudos Pós-Coloniais configuram-se como uma corrente contemporânea interdisciplinar, fortemente inspirada nos estudos de Frantz Fanon e influenciada pelas áreas da Filosofia, Historiografia, Estudos Literários, Sociologia, Antropologia e Ciências Políticas. De acordo com Álvares (2000:222) “ Os teóricos pós-coloniais distinguem-se pela tentativa constante de repensar a estrutura epistemológica das ciências humanas, estrutura essa que terá sido moldada de acordo com padrões ocidentais que se tornaram globalmente hegemônicos devido ao facto histórico do colonialismo. (…) Pela ênfase colocada na temática da alteridade, a Teoria Pós-Colonial tende a transcender as conseqüências do colonialismo, servindo como frente de combate a qualquer grupo que se sinta discriminado em relação à norma prevalecente – seja esta étnica, social ou sexual -, e que procure implementar uma política de identidade através da afirmação da diferença.”. Entre os seus principais expoentes, destacam-se Said (2004), Brah (1996), Hall (1996 e 2009), Bhabha (1998) entre outros.

[5] Ver neste sentido a brilhante descrição A mitose originária de E. Cleaver (1971)

[6] Para uma análise bem mais detalhada de Pele negra, máscaras brancas, principalmente no que concerne às neuroses provocadas pelo colonialismo, ver: SAPEDE (S/data) .

[7] Na literatura de língua Francesa, destaca-se a psiquiatra psicanalista Alice Cherki, que busca, a partir da convivência que teve com Fanon, recuperar o seu legado como psicanalista, bem como desmistificar as distorções que foram criadas em seu nome (CHERKI, 2006).

[8] Uma tradução possível do árabe argelino para o português seria “guerreiro santo”. Estes artigos foram posteriormente reunidos a outros escritos de Fanon e publicados no livro Pour La révolution africaine – écrits politiques-. François Maspero. 1964. Há uma versão traduzida para o português de Portugal por Isabel Pascoal: Em defesa da Revolução Africana. In: Fanon (1980).

[9] O título original do livro Les damnés de La terre (Os condenados da terra) é visivelmente inspirado na primeira estrofe da versão francesa de A Internacinal, hino do movimento comunista internacional, que inicia da seguinte forma: “Debout les damnés de la terre/ Debout les forçats de la faim/ La raison tonne en son cratère/ C’est l’éruption de la fin.” Ver: http://letras.mus.br/ogeret-marc/1246295/. Acesso em 02 de Dezembro de 2012.

[10] Fanon toma como exemplo o movimento de negritude cultural, do qual ele mesmo foi em grande parte influenciadao, encabeçado por Aimé Cesaire, Leopold S. Sengor, Alaine Diop etc a partir da década de 30 nas colônias francesas.

[11] Título em português do livro The Souls of Black Filk de William Edward Burghardt Du Bois, publicado no Brasil como As almas da gente negra (DU BOIS, 1999).

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Provocação e masturbação cognitiva: sobre corporeidade

 José Evaristo Silvério Netto

Gosto da idéia de ressignificar o termo exercício físico, trazendo-o para um entendimento somatopsíquico do movimento corporal (produção cultural de sentidos do corpo que se movimenta) contextualizado na dinâmica cultural e ao momento histórico.

Neste sentido, penso que é importante exercitarmo-nos fisicamente, sendo este exercício formado de ações que nos eduquem para a construção de uma realidade que nos seja saudável, favorável. As ações físico-motrizes trazem expressões afetivas e emocionais do espírito humano, além de sentidos e sentimentos, de modo que o movimento nunca se encerra nele mesmo. Daí a importância de fazer do corpo em movimento um instrumento de educação e fortalecimento holístico (caminho somatopsíquico).

Questiono-me: de que maneira lidamos com nossos sentimentos, com nossas necessidades afetivas e emocionais, com nossas intenções, vontades, desejos, com nossos projetos e esquemas para os cursos de ação das nossas vidas, quando estamos interagindo com outra pessoa na complexidade de uma relação em construção? Somos honestos conosco, com o que sentimos? Somos honestos com a outra pessoa, somos verdadeiros na exposição das nossas intenções, do que pretendemos ou desejamos? Este é apenas um ponto. A outra pessoa esta sendo sincera conosco, e com os seus próprios projetos, sentidos e sentimentos? Será que esta é uma relação profunda – entendendo a profundidade como ‘honestidade de se mostrar em sentidos e intenções verdadeiras’ – ou uma relação rasa, mesmo sendo duradoura, onde as pessoas fingem sentimentos, e não expressam aquilo que para elas faz sentido? Este é outro ponto.

Pensar o exercício físico nesta seara seria entendê-lo como um meio pedagógico para uma educação emocional e moral, um recurso pedagógico da envergadura de uma educação integral. E o corpo enquanto veículo de divulgação e expressão do nosso espírito e consciência, por meio do movimento, do exercício físico de se expressar, dialogando com a realidade à sua volta e lutando contra a imposição dos estígmas e estereótipos racistas implementaria esta educação de corpo inteiro, integral e “práxica”.

Adinkra que trás o significado de resistência, desafio às dificuldades, perseverança.

Faz-se também importante conceber o corpo enquanto instrumento de luta para emancipação das estruturas de opressão, um território de luta de proporções gigantescas. O corpo negro trás consigo as estruturas socioculturais, sentidos, ciência, história, lembranças, espiritualidade e magnetismos, acumulados historicamente, que dão sentido ao conceito de Ancestralidade. Corpos Africanos que, corroborando com a ancestralidade, não se dissociam da consciência indivisível do indivíduo, mas vivem em uma sociedade que tem como valor positivo o corpo subjulgado por uma entidade consciente, a mente, como se corpo e mente não fossem a mesma estrutura, no limite do mínimo, consciência.

Daqui sai um entendimento curioso: até que ponto é possível pensarmos em pessoas conscientes, se seus corpos estão separados de suas mentes, dissociados? Isso é possível? Trago o debate de que o corpo é a mente, o corpo é a consciência, não há como entendermos o corpo dissociado da mente. Isso é a morte. O corpo sem consciência é um amontoado de tecido em processo de decomposição, sem possibilidades de diálogo com a realidade circunscrita, sem possibilidades de causar colapsos na realidade. Sendo mais enfático para marcar o sentido e enviesar propositalmente o debate, o corpo sem consciência não é mais corpo (Corpo Vivo) é tão somente material orgânico.

Dialogando e construindo entendimento do mundo pelo movimento significativo, que é consciente e consciência porque é do corpo em movimento que brota a ciência..

É ou não interessante pensar o exercício físico nestes meandros, entendendo que a prática de atitudes e condutas físico-motrizes imbuídas de intenção política e emoção podem operar mudanças nas nossas estruturas cognitivas, afetivas e emocionais? Este é o mote epistemológico. Começo meus estudos recentes (bem recentes mesmo!) trazendo uma ressignificação do termo exercício físico, transgredindo a lógica cartesiana de dissociação mente-corpo, e entendendo o corpo como consciência, assim como a mente, sendo corpo e mente a mesma estrutura, a mesma consciência, desconstruindo a subjugação de um pelo outro. As implicações deste entendimento de corpo, corporeidade (produção corporal – cultura corporal), e exercício físico, são de tal ordem importante que poderia provocar uma enxurrada de novas proposituras e teses sobre vários temas espinhosos como conscientização, sensibilização e educação antirracista.

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Apropriação Privada do Conhecimento e outras histórias

José Evaristo Silvério Netto

Nos encontramos em um momento na história da humanidade onde a crise nos setores da sociedade é evidente. O colapso no setor educacional, considerando os aparelhos públicos de escolarização, estão expressos na luta dos professores e demais profissionais da educação por melhores condições de trabalho e de vida. Não só o setor educacional, mas quando pensamos na sociedade como um todo, percebemos vários processos de ruptura da nefanda ordem social.

Protesto dos professores em São Paulo.

Entendo que o capitalismo e o racismo estrangulam as sociedades exploradas do planeta, e nesta conjuntura ampliando e intensificando a exploração e a geração de riquezas para compensar a crise mundial do sistema monetário. A exploração se dá de forma muito ampla e complexa, por meio dos diversos aparelhos de controle social do Estado e das industrias que detêm o controle dos processos políticos e sociais da humanidade. Uma face importante desta exploração se dá através apropriação privada do conhecimento humano, onde a lógica do capital tenta se vestir de leis da natureza, de modo que o senso comum perceba as expressões do racismo e do capitalismo como fatos naturais na história da humanidade. Assim, todos os aparelhos “oficiais” de produção de cultura e conhecimento em alguma medida dialogam com esta lógica, produzindo e reproduzindo o racismo e suas desigualdades, dentro do processo já mencionado acima, descrito por Roberto da Silva, quando discutindo sobre as bases científicas da Pedagogia Social (consultar livro: Pedagogia Social – Roberto da Silva, João Clemente de Souza Neto, Rogério Adolfo de Moura (orgs.). — São Paulo : Expressão e Arte Editora, vol. 1. 2ª edição, 2011).

De certa forma, a Apropriação Privada do Conhecimento trata do modo como as industrias constroem a realidade (a nossa realidade – como uma “matrix”) a partir dos produtos que vendem, de modo a não permitir aos explorados SER (expressão livre do espírito em comunhão com as identidades étnicas e humanas, por exemplo) sem possuir estes produtos. Tão forte é a penetração desta lógica nos nossos espíritos, que mesmo as teorias que problematizam o racismo e a lógica do capital, ainda assim continuamos presos à necessidade de comprar, de possuir estes produtos. A lógica do capital, o racismo, e seus resíduos valorativos e judicativos se imbricam na nossa estrutura afetivo-emocional; orientam a construção da nossa estrutura cognitiva, e tornam-se lócus interno da percepção da causalidade da nossa motivação e ação.

As industrias do setor alimentício forjam a realidade e a verdade que pretendem para nós a partir da manipulação dos nossos sentidos gustativos desde quando nascemos, ou até antes disso, “normatizando” e ajustando-nos para entender a realidade a partir do que oferecem de estímulos, de parâmetros valorativos, e de conhecimento sobre o mundo, transformando-nos finalmente em consumidores vitalícios. Da mesma forma, as industrias do olfato, do tato, da visão e audição, que se apropriam das nossas possibilidades de compreensão da realidade para, uma vez nos fazendo consumidores programados, manterem a lógica da exploração e do poder. Somos vítimas deste processo antes de tomarmos consciência do mundo que nos rodeia, e, talvez por isso seja tão difícil descortinar este esquema do qual somos peças fundamentais. Aqui, os conceitos de REVOLUÇÃO e de EMANCIPAÇÃO têm muita importância, mas sobre estes cabe outro texto, com outra orientação. (Neste texto, busco opinar, dentro das minhas possibilidades, sobre a condição de explorados pelo processo de Apropriação Privada do Conhecimento perpetrada pelas industrias e os aparelhos ideológicos do Estado).

A grande responsável pela sedimentação e consolidação deste processo perverso de Apropriação do Conhecimento pelo Capital, nas figuras das industrias que privatizam os sentidos Humanos, são as mídias televisivas. Estas industrias utilizam predominantemente os estímulos audiovisuais, e a LINGUAGEM (ai cabe outra discussão, sobre o papel da linguagem e da língua para a dominação e colonização), para introjetar a ideologia das elites mundiais de modo a estabelecer o controle social necessário para administrar a miséria e gestão do sistema de exploração. As propagandas, os programas de auditório e de outros gêneros, os programas de noticias, as novelas, os filmes, os desenhos, e outras tantas tecnologias desta industria geram uma gigantesca inércia de introjeção ideológica à serviço da lógica do capital e do racismo, dando ares de verdade universal ao conhecimento forjado desde o nosso nascimento (ou antes) pelos estímulos das industrias do palato, do tato, da audição, da visão e do olfato.

Penso que é necessário uma ruptura profunda do tecido social para gerar uma conjuntura social que seja solo fértil para a organização revolucionária do povo. Segundo Roberto da Silva (2011), houve no Brasil uma ruptura que provocou o processo de redemocratização do país, localizando a constituição de 88 como marco normativo. Porém, o professor afirma que esta Constituição Cidadã não significou uma ruptura de carácter revolucionário. Pelo contrário, representou a volta do Estado de Direito, antes fora interrompido pelo golpe militar de 64.

Abaixo faço uma pequena proposição de algo que ainda quero me apropriar.

Uma vez que o racismo tenha sido o motor do capitalismo, e dadas as demandas atuais gravíssimas – genocídio da juventude negra, redução da maioridade penal, racismo institucional, resistência e descaracterização de políticas de ação afirmativa, desapropriações criminosas de comunidades periféricas, crimes do Estado Brasileiro contra comunidades Quilombolas, entre tantas demandas – acredito que a ruptura do tecido social se dará a partir das desigualdades raciais das classes sociais para uma mudança da ordem estrutural da sociedade. O protagonismo dos explorados no processo de radicalização e endurecimento da luta de emancipação deverá levar em conta um projeto político de sociedade que contemple uma outra estrutura de sociedade, onde será possível inclusive implementar outras tecnologias educacionais e, onde a Lei 10639/03 poderá ser encaminhada na práxis, para além do papel.

Campanha Contra o Genocídio da Juventude Negra

Termino aqui esta opinião, mas sinalizando para o que penso ser um caminho interessante (pretendo escrever sobre isso): que a educação precisa passar por um processo de desconstrução dos seus sustentáculos estruturais historicamente forjados pelas demandas das classe dominante, para que seja possível implantar uma educação social – apoiada na Pedagogia Social – que tenha uma orientação política em acordo com a lei 10639/03, uma perspectiva afrocentrada de análise da realidade, e outras fontes de mudanças construturais para a reconfiguração da mente colonizada que possuímos.

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O Racismo como arma de dominação – Clóvis Moura

Ao longo da história, o racismo foi a justificação dos privilégios das elites e dos infortúnios das classes subalternas. Agora ele se renova como instrumento de dominação

Sobre o racismo um dos temas mais polêmicos, instigantes e inesgotáveis do mundo moderno, concentram-se opiniões contraditórias, que discutem em vários níveis, as consequências de sua prática. A discussão sobre as diversas formas de sua atuação, significado e função vem sempre acompanhada de uma carga emocional, o que demonstra como a polêmica que se monta em torno de seu significado transcende em muito as questões acadêmicas, para atingir um significado mais abrangente, da ideologia de dominação. Somente admitindo o papel social, ideológico e político do racismo poderemos compreender sua força permanente e seu significado polimórfico e ambivalente…

veja o texto na íntegra:

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