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O Ornitorrinco – Chico de Oliveira

O Ornitorrinco*

Francisco de Oliveira

Ornitorrinco – s.m.(Do gr. ornis, ornithos. ave +Rhynkhos. bico.) Ornithorhynchus anatinus.

Mamífero monotremo, da subclasse dos prototérios, adaptado à vida aquática. Alcança 40cm de comprimento, tem bico córneo,

semelhante ao bico de pato, pés espalmados e rabo chato. É ovíparo.Ocorre na Austrália e na Tasmânia. (Família dos ornitorrinquídeos).

Encicl. O ornitorrinco vive em lagos e rios, nas margem dos quais escava tocas que se abrem dentro d‘água.

Os filhotes alimentam-selambendo o leite que escorre nos pêlos peitorais

da mãe, pois esta não apresenta mamas. O macho tem um esporão venenoso nas patas posteriores.

Este animal conserva certas características reptilianas, principalmente uma homeotermia imperfeita.

Grande Enciclópedia Larousse Cultural.vol.18, Ofa-Per, São Paulo, Nova Cultural, 1998.

*Foi na defesa de tese de doutoramento de Caico, amigão dos tempos sombrios, conhecido socialmente como Carlos Eduardo Fernandez da Silveira, de cuja banca honrosamente fazia parte no Instituto de Economia da Universidade de Campinas em 19/out/2001 que, de repente, deu-me um estalo: a sociedade e economia que ele descrevia, em seus impasses e combinações exdrúxulas, só podia ser um ornitorrinco. Devo-lhe mais essa, Caicão.

De Darwin a Prebisch/Furtado

A teoria do subdesenvolvimento, única elaboração original alternativa à teoria do crescimento de origem clássica, Smith e Ricardo, não é, decididamente, uma teoria evolucionista. Sabe-se que o evolucionismo influiu praticamente em todos os campos científicos, inclusive em Marx, que nutria grande admiração pelo cientista inglês que moldou um dos mais importantes paradigmas científicos de todos os tempos, cuja predominância hoje é quase absoluta. Mas tanto Marx quanto os teóricos do subdesenvolvimento não eram evolucionistas. O primeiro porque sua teoria trabalha com rupturas, com a tríade tese-antítese-síntese, e o motor da história são os interêsses concretos das classes, vale dizer a consciência, mesmo imperfeita, dos sujeitos constitutivos: “os homens fazem a história…” O evolucionismo não comporta “consciência”, mas uma seleção natural pela eliminação dos menos aptos, dentro do acaso. Já os cepalinos foram influenciados por Weber – e nas margens também por Marx – cujo paradigma é o da singularidade, que não é uma seleção mas uma ação com sentido: não se cogita, weberianamente, de uma “finalidade” que no evolucionismo aparece como sendo a da reprodução da espécie.

O subdesenvolvimento assim, não se inscrevia numa cadeia de evolução que começava no mundo primitivo até alcançar, através de estágios sucessivos, o pleno desenvolvimento. Antes, tratou-se de uma singularidade histórica, a forma do desenvolvimento capitalista nas ex-colônias transformadas em periferia, cuja função histórica esteve em fornecer elementos para a acumulação de capital no centro. Essa relação, que permaneceu apesar de intensas transformações, a impediu, precisamente de “evoluir” para estágios superiores da acumulação capitalista, vale dizer, para igualar-se ao centro dinâmico, conquanto lhe injetou reiteradamente elementos de atualização. O marxismo, dispondo do mais formidável arsenal de crítica à economia clássica, tem uma teoria do desenvolvimento capitalista na própria teoria da acumulação de capital, mas falhou em especificar-lhe as formas históricas concretas, sobretudo em relação à periferia. Quando o tentou, obteve alguns dos grandes resultados de caráter mais geral, com a “via prussiana” e a “revolução passiva”. Mas por muito tempo, um “evolucionismo” marxista esteve em larga voga, o que resultou numa raquítica teoria sobre a periferia capitalista, dentro das etapas de Stálin, do comunismo primitivo pré-classes ao comunismo pós-classes. No caso latinoamericano esse etapismo levou a equívocos de estratégia política, e a teoria do subdesenvolvimento era considerada “reformista” e aliada do imperialismo norteamericano.

O subdesenvolvimento poderia se inscrever como um caso da “revolução passiva”, que é a opção interpretativa de Carlos Nelson Coutinho e Luis Jorge Werneck Vianna1, mas de qualquer modo falta-lhes, para se igualar à teorização do subdesenvolvimento, as específicas condições latinoamericanas, vale dizer, o estatuto de ex-colônias, que lhe dá especificidade política, e o estatuto rebaixado da questão da força de trabalho, escravismo e “encomiendas”, que lhe confere especificidade social . Florestan Fernandes aproximou-se de uma interpretação na mesma linha em A Revolução Burguesa no Brasil, mas deve-se reconhecer sua dívida para com a originalidade cepalina-furtadiana. Todos, de alguma forma, incluindo-se Furtado, são devedores, na interpretação do Brasil, dos clássicos dos anos trinta, que se esmeraram em marcar a originalidade da colônia, da sociabilidade forjada pela summa da herança ibérica com as condições da exploração colonial fundada no escravismo.

Como singularidade e não elo na cadeia do desenvolvimento, e pela “consciência”, o subdesenvolvimento não era, exatamente, uma evolução truncada, mas uma produção da dependência pela conjunção de lugar na divisão internacional do trabalho capitalista e articulação dos interêsses internos. Por isso mesmo, havia uma abertura a partir da luta interna das classes, articulada com uma mudança na divisão internacional do trabalho capitalista. Algo que, no Brasil, ganhou contornos desde a Revolução de 1930 e adquiriu consistência com a chamada industrialização por substituição de importações. Celso Furtado, em Formação Econômica do Brasil, fornece a chave dessa conjunção: crise mundial de Trinta e revolução interna, uma espécie de 18 de Brumário brasileiro, em que a industrialização surge como projeto de dominação por outras formas da divisão social do trabalho, mesmo às custas do derrocamento da burguesia cafeicultora do seu lugar central O termo sub-desenvolvimento não é neutro: ele revela, pelo prefixo “sub”, que a formação periférica assim constituída tinha lugar numa divisão internacional do trabalho capitalista, portanto hierarquizada, sem o que o próprio conceito não faria sentido. Mas não é etapista tanto no sentido estalinista quanto evolucionista.

A Crítica à Razão Dualista tenta apanhar esses caminhos cruzados: como “crítica” ela pertence ao campo marxista, e como especificidade, ao campo cepalino. Embora arroubos do tempo tenham inscrito nela invectivas contra os cepalinos, eu já me penintenciei desses equívocos, a forma tôsca de ajudar a introduzir novos elementos na construção da especificidade da forma brasileira do subdesenvolvimento. Uma espécie de dívida do vício à virtude. Ela é cepalina e marxista no sentido de mostrar como a articulação das formas econômicas subdesenvolvidas incluía a política, não como externalidade, mas como estruturante: Furtado havia tratado disso quando interpretou a resolução da crise de superprodução de café nos anos da grande crise de 30, mas depois abandonou essa grande abertura, e o 18 de Brumário já havia ensinado aos marxistas que a política não é externa aos movimentos de classe, isto é, a classe se faz na luta de classes, mas eles também desaprenderam a lição. Retomei essas duas perspectivas para tentar entender como e porque lideranças como Vargas e suas criaturas, o PTB – Partido Trabalhista Brasileiro e o Partido Social-Democrático, o lendário PSD, haviam presidido a industrialização brasileira, arrancando especificamente de bases rurais: o moderno, a indústria, alimentando-se do atrasado, a economia de subsistência.

Três pontos receberam atenção, para completar a forma específica do subdesenvolvimento brasileiro. O primeiro deles dizia respeito à função da agricultura de subsistência para a acumulação interna de capital. Aqui, a Cepal, Prebisch e Furtado2, haviam empacado com a tese do setor atrasado como obstáculo ao desenvolvimento, tese aliás que esteve muito em moda na teorização contemporânea, como a de Arthur Lewis sobre a formação do salário em condições de excesso de mão-de-obra. Tal tese não encontrava sustentação histórica, posto que a economia brasileira experimentou uma taxa secular de crescimento desde o século XIX, que não encontra paralelo em qualquer outra economia capitalista no mundo.3 E os estudos sobre o café mostraram que o modo inicial de sua expansão utilizou a agricultura de subsistência dos colonos, intercalada com o café, para prover-lhes o sustento, o que depois era incorporado pela cultura do café. Benfeitorias como “acumulação primitiva”. Aliás, o próprio Furtado, ao estudar as culturas de subsistência tanto no Nordeste quanto em Minas, viu sua “função” na formação do fundo de acumulação e na expansão dos mercados a partir de São Paulo. Sustentei, então, que a agricultura atrasada financiava a agricultura moderna e a industrialização.

Aliás, o nascimento do moderno sistema bancário brasileiro, que teve em Minas um de seus principais pontos de emergência, mostrava essa relação entre as formas de subsistência e o setor mais avançado do capital, tema aliás presente em Marx n’As Guerras Civis na França. Apontei, então, que as culturas de subsistência tanto ajudavam a baixar o custo de reprodução da força de trabalho nas cidades, o que facilitava a acumulação de capital industrial, quanto produzia um excedente não-reinvertível nela mesma, que se escoava para financiar a acumulação urbana. Um trabalho de Francisco Sá Jr., que apareceu à mesma época, explorava esse insight para as específicas condições da agricultura de subsistência do Nordeste. Consegui publicá-lo na Estudos Cebrap4, mas nunca mais meu xará Chico voltou ao assunto, e o seu clássico estudo não voltou a ser frequentado. E Chico mesmo desapareceu, com sua figura de andarilho quase Conselheiro, logo êle um carioca da gema, da velha cêpa dos Sá, desde Estácio, que foi colonizador antes de ser estação do melhor samba carioca.

Esse conjunto de imbricações entre agricultura de subsistência, sistema bancário, financiamento da acumulação industrial e barateamento da reprodução da força de trabalho nas cidades constituía o fulcro do processo de expansão capitalista, que havia deixado de ser percebido pela teorização cepalino-furtadiana, em que pese seu elevado teor heurístico. Tive que entrar em forte discordância com as teorias do atraso na agricultura como fator impeditivo, com a do “inchaço” das cidades como marginalidade, com a da incompatibilidade da legislação do salário-mínimo com a acumulação de capital, o que não quer dizer que as considerasse fundamentos sólidos para a expansão capitalista; ao contrário, sua debilidade residia e reside ainda precisamente na má distribuição de renda que estrutura, que constituirá sério empecilho para a futura acumulação.

Daí derivou uma explicação para o papel do “exército de reserva” nas cidades, ocupado em atividades informais, que para a maior parte dos teóricos era apenas consumidor de excedente ou simplesmente lumpen, e para mim fazia parte também dos expedientes de rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho urbana. O caso da autoconstrução e dos mutirões passou a ser explicativo do paradoxo de que os pobres, incluindo necessariamente os operários, são proprietários de suas residências – se é que se pode chamar assim o horror das favelas – com o que reduzem o custo monetário de sua própria reprodução.5

Nada disso é uma adaptação darwinista às condições rurais e urbanas do processo da expansão capitalista no Brasil, nem “estratégias de sobrevivência”, para uma certa antropologia, mas basicamente as formas irresolutas da questão da terra e do estatuto da força de trabalho, a subordinação da nova classe social urbana, o proletariado, ao Estado, e o “transformismo” brasileiro, forma da modernização conservadora, ou de uma revolução produtiva sem revolução burguesa. Ao rejeitar o dualismo cepalino, acentuava-se que o específico da revolução produtiva sem revolução burguesa era o caráter “produtivo” do atraso como condômino da expansão capitalista. O subdesenvolvimento viria a ser, portanto, a forma da exceção permanente do sistema capitalista na sua periferia. Como disse Walter Benjamin, os oprimidos sabem do que se trata. O subdesenvolvimento finalmente é a exceção sobre os oprimidos: o mutirão é a autoconstrução como exceção da cidade, o trabalho informal como exceção da mercadoria, o patrimonialismo como exceção da concorrência entre os capitais, a coerção estatal como exceção da acumulação privada, keynesianismo avant la lettre. De resto, esta última característica também está presente nos “capitalismos tardios”6. O caráter internacional do subdesenvolvimento, na exceção, se reafirma com a coerção estatal, utilizada não apenas nos “capitalismos tardios” mas de forma reiterada e estruturante no pós-depressão de Trinta.

A singularidade do subdesenvolvimento poderia ser resolvida não-evolucionisticamente a partir de suas próprias contradições, à condição que a vontade das classes soubesse aproveitar a “riqueza da iniquidade” de ser periferia. A inserção na divisão internacional do trabalho capitalista, reiterado por cada ciclo de modernização, propiciaria os meios técnicos modernos, capazes de fazer “queimar etapas”, como os períodos Vargas e Kubistchek mostraram. O crescimento da organizãção dos trabalhadores poderia levar à liquidação da alta exploração propiciada pelo custo rebaixado da força de trabalho. A reforma agrária poderia liquidar tanto com a fonte fornecedora do “exército de reserva” das cidades, quanto com o poder patrimonialista. Mas faltou o outro lado, isto é, que o projeto emancipador fôsse compartilhado pela burguesia nacional, o que não se deu. Ao contrário, esta voltou as costas à aliança com as classes subordinadas, ela mesma já bastante enfraquecida pela invasão de seu reduto de poder de classe pela crescente internacionalização da propriedade industrial, sobretudo nos ramos novíssimos.7 O golpe de estado de 1964, contemporâneo dos outros na maioria dos paises latinoamericanos, derrotou a possibilidade aberta.

A longa ditadura militar de 1964 a 1984 prosseguiu, agora nitidamente, com a “via prussiana”: fortíssima repressão política, mão de ferro sobre os sindicatos, coerção estatal no mais alto grau, aumentando o grau de presença de empresas estatais numa proporção que nenhum nacionalista do período anterior havia sonhado, abertura ao capital estrangeiro, industrialização a marcha forçada – a expressão é de Antonio Barros de Castro – , e nenhum esforço para liquidar com o patrimonialismo nem resolver o agudo problema do financiamento interno da expansão do capital, que já havia se mostrado como o “calcanhar de Aquiles” da anterior configuração de forças. O endividamento externo apareceu então como a “solução” e por esse lado abriu as portas à financeirização da economia e das contas do Estado brasileiro, que ficou patente no último governo militar da ditadura, sob o mesmo czar das finanças que havia imperado no período do “milagre brasileiro” que, talvez por ter Antonio no nome fosse considerado milagreiro. Revelou-se um enorme farsante.

Sob o signo de Darwin: O Ornitorrinco

Como é o ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução industrial completo, avançando, tatibitate, pela terceira revolução, a molecular-digital ou informática. Uma estrutura de serviços muito diversificada numa ponta, quando ligados aos estratos de altas rendas, a rigor, mais ostensivamente perdulário que sofisticado; noutra, extremamente primitivo, ligado exatamente ao consumo dos estratos pobres. Um sistema bancário ainda atrofiado, embora acapare uma alta parte do PIB – % -, quando se o compara internacionalmente. Em termos da PEA ocupada, fraca e declinante participação da PEA rural, força de trabalho industrial que chegou ao auge na década de setenta do século passado, mas decrescente também, e explosão continuada do emprego nos serviços. Mas esta é a descrição de um animal cuja “evolução” seguiu todos os passos da família! Como primata ele já é quase homo sapiens !

Parece dispôr de “consciência”, pois democratizou-se há já quase três décadas. Falta-lhe, ainda, produzir conhecimento, ciência e técnica: basicamente segue copiando, mas a decifração do genoma da xylella fastidiosa8 mostra que pode não estar muito longe de certos avanços fundamentais no campo da biogenética; espera-se apenas que não resolva autoclonar-se, perpetuando o ornitorrinco. Onde é que está falhando a “evolução” ? Na circulação sanguínea: a alta proporção da dívida externa sobre o PIB demonstra que sem o dinheiro externo, a economia não se move. É um adiantamento formidável: em 2001 o total da dívida externa sobre o PIB alcançou alarmantes 41% e o mero serviço dela, juros sobre o PIB, 9,1 % . Há poucas economias capitalistas assim; talvez os Estados Unidos acusem uma proporção tão grande, com uma diferença radical: o sangue, o dólar, que circula internacionalmente e volta ao USA é seu próprio sangue, já que é o país emissor. Desse ponto de vista, a “evolução” regrediu: não se trata mais do subdesenvolvimento, mas de algo parecido apenas com a situação pré-crise de 30, quando o serviço da dívida , vale dizer, o pagamento dos juros mais as amortizações do principal, comiam toda a receita de exportação !9 Mas há uma diferença fundamental: se no pré-30 as exportações de café eram toda a economia brasileira, agora trata-se de uma economia industrial, voltando-se, no entanto, à mesma situação de subordinação financeira.10 Essa dependência financeira externa cria, também, uma dívida financeira interna igualmente espantosa, como a política capaz de enxugar a liquidez interna produzida exatamente pelo ingresso de capitais especulativos. Mas é também um adiantamento sobre a produção futura, de modo que somando-se dívida interna e externa chega-se à conclusão de que para produzir um PIB anual é preciso endividar-se na mesma proporção. Esta é a reiteração da financeirização da economia.

No passado, no subdesenvolvimento, o “informal” poderia ser uma situação passageira, a transição para a formalização completa das relações salariais, o que chegou a mostrar-se nos últimos anos da década de setenta11; na minha própria interpretação, tratava-se de uma forma que combinava uma acumulação insuficiente com o privilegiamento da acumulação propriamente industrial. Em termos teóricos, tratava-se de uma forma aquém do valor, isto é, utilizava-se a própria mão-de-obra criada pelo movimento em direção às cidades – e não de uma reserva pré-capitalista – para prover de serviços as cidades que se industrializavam.

Avassalada pela terceira revolução industrial, ou molecular-digital, em combinação com o movimento da mundialização do capital, a produtividade do trabalho dá um salto mortal em direção à plenitude do trabalho abstrato. Em sua dupla constituição, as formas concretas e a “essência” abstrata, o consumo das forças de trabalho vivas encontrava obstáculos , a porosidade entre o tempo de trabalho total e o tempo de trabalho da produção. Todo o crescimento da produtividade do trabalho é a luta do capital para encurtar a distância entre essas duas grandezas. Teoricamente, trata-se de transformar todo o tempo de trabalho em trabalho não-pago; parece coisa de feitiçaria, e é o fetiche em sua máxima expressão. Aqui, quase se fundem mais-valia absoluta e relativa: absoluta porque o capital usa o trabalhador quando necessita dele, relativa porque isso é possível somente devido à enorme produtividade. A contradição: a jornada da mais-valia relativa deveria ser de diminuição do trabalho não-pago, mas é o seu contrário. Então, graças à produtividade do trabalho, desaparecem os tempos de não-trabalho: todo o tempo de trabalho é tempo de produção. Os serviços são o lugar da divisão social do trabalho onde essa ruptura já aparece com clareza. Cria-se uma espécie de “trabalho abstrato virtual”. As formas “exóticas” desse trabalho abstrato virtual estão ali onde o trabalho aparece como diversão, entretenimento, comunidade entre trabalhadores e consumidores: nos shoppings centers. Mas é na informação que reside o trabalho abstrato virtual. O trabalho mais pesado, mais primitivo, é também lugar do trabalho abstrato virtual. Sua forma, uma fantasmagoria, um não-lugar, um não-tempo, que é igual a tempo total. Pense-se em alguém em sua casa, acessando sua conta bancária pelo seu computador, fazendo o trabalho que antes cabia a um bancário: de que trabalho se trata ? Por isso, conceitos como formal e informal já não têm força explicativa. O subdesenvolvimento pareceria ser uma evolução às avessas: as classes dominantes, inseridas numa divisão do trabalho que opunha produtores de matérias-primas a produtores de bens de capital, optavam por uma forma da divisão de trabalho interna que preservasse a dominação: “consciência” e não acaso. Ficava aberta a porta da transformação.

Hoje, o ornitorrinco perdeu a capacidade de escolha, de “seleção”, e por isso é uma evolução truncada: como sugere a literatura da economia da tecnologia, o progresso técnico é incremental; tal literatura é evolucionista, neoschumpeteriana.12 Sendo incremental, ele depende fundamentalmente da acumulação científico-tecnológica anterior. Enquanto o progresso técnico da Segunda Revolução Industrial permitia saltar à frente, operando por rupturas sem prévia acumulação técnico-científica, por se tratar de conhecimento difuso e universal, o novo conhecimento técnico-científico está trancado nas patentes, e não está disponível nas prateleiras do supermercado das inovações. E ele é descartável, efêmero, como sugere Derrida, apud Laymert Garcia dos Santos.13 Essa combinação de descartabilidade, efemeridade e progresso incremental corta o passo às economias e sociedades que permanecem na rabeira do conhecimento técnico-científico. Assim, a decifração do genoma da xilella fastidiosa tem tudo para ser apenas um ornamento, a exibição orgulhosa da capacidade dos pesquisadores brasileiros, de um nicho muito especial, mas não a regra da produção do conhecimento.

A revolução molecular-digital anula a fronteira entre ciência e tecnologia: as duas são trabalhadas agora num mesmo processo, numa mesma unidade teórico-metodológica. Faz-se ciência fazendo tecnologia e vice-versa. Isto implica em que não há produtos tecnológicos disponíveis , à parte, que possam ser utilizados sem a ciência que os produziu. E o inverso: não se pode fazer conhecimento científico sem a tecnologia adequada: a fabricação das bombas atômica e de hidrogênio e as correspondentes produções de energia nuclear- a de fusão ainda não lograda completamente – já indicavam essa anulação, essa ultrapassagem. A revolução molecular-digital deleta – para usar um termo informático – definitivamente essa barreira. O que sobra como produtos tecnológicos são apenas bens de consumo.

Do ponto de vista da acumulação de capital, isto tem fundas consequências. A primeira e mais óbvia é que os países ou sistemas capitalistas subnacionais periféricos podem apenas copiar o descartável, mas não copiar a matriz da unidade técnico-científica. Uma espécie de eterna corrida contra o relógio. A segunda, menos óbvia, é que a acumulação que se realiza em termos de cópia do descartável, também entra em obsolescência acelerada, e nada sobra dela, ao contrário da acumulação baseada na Segunda Revolução Industrial. Isto exige um esforço de investimento sempre além do limite das forças internas de acumulação, o que reitera os mecanismos de dependência financeira externa. Mas o resultado fica sempre aquém do esforço: as taxas de acumulação, medidas pelo coeficiente da inversão sobre o PIB, são declinantes, e declinantes também as taxas de crescimento14. Em termos bastante utilizados pelos cepalinos, a relação produto-capital se deteriora: para obter cada vez menos produto, faz-se necessário cada vez mais capital.15 E a contradição se agudiza porque a mundialização introduz aumento da produtividade do trabalho sem acumulação de capital, justamente pelo caráter divisivel da forma técnica molecular-digital, do que resulta a permanência da má distribuição da renda: exemplificando mais uma vez, os vendedores de refrigerantes às portas dos estádios viram sua produtividade aumentada graças ao just in time dos fabricantes e distribuidores de bebidas, mas para realizar o valor de tais mercadorias, a forma do trabalho dos vendedores é a mais primitiva. Combinam-se, pois, acumulação molecular-digital com o puro uso da força de trabalho.

A superação da descartabilidade/efemeridade imporia um esforço descomunal de pesquisa científico-tecnológica, aumentando-se o coeficiente de P&D ou C&T sobre o PIB em algumas vezes, para saltar à frente da produção científico-tecnológica. Ainda segundo Carlos Fernandez da Silveira – o responsável pelo ornitorrinco – o coeficiente brasileiro para 1997 era de meros 1,5%. A acumulação de capital para realizar um salto dessas proporções significaria elevar muito o coeficiente de inversão sobre o PIB em período longo ,a partir da base atual, que era de quase 18% em 1999, e sobretudo mudar o mix da inversão, com maior proporção de C&D.16 Em alguns períodos da história, diversos subsistemas econômicos nacionais realizaram tal façanha, às custas de uma enorme repressão política, de uma economia de monge franciscano, com total irrelevância da produção de bens de consumo. Foi o caso japonês, por exemplo, que de tanto sua população acostumar-se a poupar, o Japão dispõe hoje de uma enorme poupança que não se transforma em investimento; mesmo o consumo de todos os gadgets eletrônicos – cuja produção já foi deslocada até para a China – não consegue gastar a renda dos nipões ; o segundo foi o caso da União Soviética, em que a produção de bens de consumo foi totalmente desprezada, gerando a incapacidade da agricultura soviética que, nos últimos anos do regime socialista , já significava fome. No caso soviético, a forma técnica da acumulação de capital da Segunda Revolução Industrial permitiu o extraordinário avanço ocorrido mas, por sua indivisibilidade, não permitiu sua utilização na produção de bens-salário: equipamento para siderurgia não produz pães.17 O paradoxo é que a acumulação de capital nas formas da Segunda Revolução Industrial podia avançar utilizando o conhecimento técnico-científico disponível, mas elas – as formas – eram indivisiveis; na revolução molecular-digital, as formas são divisíveis, mas o conhecimento técnico-científico é indivisível na unidade C & D.

Não parece ser o caso do Brasil, onde nos melhores anos kubistchekianos chegou-se aos 22% de investimento sobre o PIB; a ditadura militar, para elevar o coeficiente de investimento se financiou externamente gerando a enorme dívida , que se transformou em fator de coerção do crescimento e de subordinação financeira internacional. Como a acumulação incremental tem que realizar-se permanentemente, não havendo um day after quando já não se precisaria de altas taxas de investimento, não parece algo à mão para um país que acaba de criar um programa de Fome Zero pelas mui prosaicas e terríveis razões de uma distribuição de renda incomensuravelmente desigualitária.

Aterrizando na periferia, o efeito desse espantoso aumento da produtividade do trabalho, desse trabalho abstrato virtual, não pode ser menos que devastador. Aproveitando a enorme reserva criada pela própria industrialização, como “informal”, a acumulação molecular-digital não necessitou desfazer drasticamente as formas concreto-abstratas do trabalho, senão em seus reduzidos nichos fordistas. Realiza, então, o trabalho de extração de mais-valia sem nenhuma resistência, sem nenhuma das porosidades que entravavam a completa exploração.

A tendência à formalização das relações salariais estancou nos anos oitenta, e expandiu-se o que ainda é impropriamente chamado de trabalho informal. Entroncando com a chamada reestruturação produtiva, assiste-se ao que Castel chama a “desfiliação”, isto é, à desconstrução da relação salarial.18 Que se dá em todos os níveis e setores. Terceirização, precarização, flexibilização, desemprego às taxas de quase 30% na Grande São Paulo e 25% em Salvador, e não tão contraditoriamente como se pensa, ocupação – e não mais emprego –: grupos de jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa e lavando-sujando vidros de carros, ambulantes por todos os lugares – os leitos das tradicionais e bancárias e banqueiras ruas Quinze e Bôa Vista em São Paulo transformaram-se em tapetes de quinquilharias -, o entorno do formoso e iluminadíssimo Teatro Municipal de São Paulo – não mais formoso que o Municipal do Rio, anote-se – exibe o teatro de uma sociedade derrotada, um bazar multiforme onde a cópia pobre do bem de consumo de alto nível é horrivelmente kitsch, milhares de vendedores de coca-cola, guaraná, cerveja, água mineral, nas portas dos estádios duas vezes por semana. Pasmemos teoricamente: trata-se de trabalho abstrato virtual. Políticas piedosas tentam “treinar” e “qualificar” essa mão-de-obra, num “trabalho de Sísifo”, jogando água em cesto, acreditando que o velho e bom trabalho com carteira voltará quando o ciclo de negócios se reativar.19. Será o contrário: quando se reativar, e isto ocorrerá de forma intermitente, sem sustentabilidade previsível, então em cada novo período de crescimento o trabalho abstrato virtual se instalará mais fundamente.

O ornitorrinco é uma das sociedades capitalistas mais desigualitárias, mais mesmo que as economias mais pobres da África que, a rigor, não podem ser tomadas como economias capitalistas, apesar de ter experimentado as taxas de crescimento mais expressivas em período longo20 – sou tentado a dizer com a elegância francesa, et pour cause . As determinações mais evidentes dessa contradição residem na combinação do estatuto rebaixado da força de trabalho com dependência externa. A primeira sustentou uma forma de acumulação que financiou a expansão, isto é, o subdesenvolvimento, conforme interpretado na Crítica à Razão Dualista, mas combinando-se com a segunda produziu um mercado interno apto apenas a consumir cópias, dando como resultado uma reiteração não-virtuosa.

Com a revolução molecular-digital como forma técnica principal da acumulação de capital, o fatiamento digital do mercado pode prosseguir sem que dê lugar a crises de realização, derivadas de uma super acumulação; estas ocorrem apenas quando a espantosa concentração de renda se desacelera; do ponto de vista do consumo popular, apesar das críticas bem intencionadas, não se chega a crises de realização: o fatiamento digital é capaz de descer aos infernos da má distribuição da renda. Crises de super acumulação podem ocorrer tão somente como problemas da concorrência oligopolística , como hoje com as telecomunicações, depois das grandes privatizações. Para ganhar o filet mignon das telecomunicações, as gigantes mundiais da telecomunicação lançaram-se a uma concorrência predatória, instalando sistemas de telefonia móvel e rebaixando o preço dos telefones celulares – e aumentando as importações – mas logo se depararam com o obstáculo da distribuição da renda das camadas mais pobres. Todas as formas dos produtos da revolução molecular-digital podem chegar até os estratos mais baixos de renda, como bens de consumo duráveis: as florestas de antenas, inclusive parabólicas, sobre os barracos das favelas é sua melhor ilustração. Falta dizer, ao modo frankfurtiano, que essa capacidade de levar o consumo até os setores mais pobres da sociedade, é ela mesma o mais poderoso narcótico social. Celso Furtado já havia advertido para isso, mas a meu ver pôs o acento na importação de padrões de consumo predatórios, ao invés de ver na distribuição de renda o motor determinante.21Seu último pequeno grande livro corrigiu para melhor sua advertência.22

A organização dos trabalhadores poderia operar a transformação da estrutura desigualitária da distribuição da renda, tal como ocorreu nos subsistemas nacionais europeus do Welfare State. A expansão das relações assalariadas seria o vetor por onde ganharia materialidade a organização, o que de fato ocorreu precariamente até os anos setenta. Já a crise do golpe militar de 1964 anunciava que as organizações de trabalhadores já não eram simples “correias de transmissão” da dominação chamada “populista” pela literatura sociológica-política.23 A eclosão dos grandes movimentos sindicais nos anos setenta, de que resultou , em grande medida, o Partido dos Trabalhadores, parecia indicar um caminho “europeu”24; medindo-se as proporções do salário e do lucro na renda nacional, a divisão funcional da renda, anotava-se uma melhoria na distribuição, e a vocação de universalizador das demandas do mundo do trabalho que passou a ser exercida pelos sindicatos “autênticos” – ABC, petroleiros, bancários – parecia ter tudo para expandir a relação salarial e seus correlatos, na Seguridade Social e nas formas do salário indireto. As empresas estatais adiantaram-se sob esse aspecto – importa não esquecer que os petroleiros eram uma categoria também de “funcionários públicos” inserida na produção de mercadorias – de que resultaram os grandes fundos de pensão.

Esse movimento deteve-se nos anos oitenta e entrou em franca regressão a partir dali. As forças do trabalho já não têm “força” social, erosionada pela reestruturação produtiva e pelo trabalho abstrato-virtual e “força” política, posto que dificilmente tais mudanças na base técnico-material da produção deixariam de repercutir na formação da classe. Embora na linha thompsoniana trabalhador não seja apenas um lugar na produção, inegavelmente há que concordar com Perry Anderson: sem esse lugar, ninguém é trabalhador, operário. A representação de classe perdeu sua base e o poder político a partir dela estiolou-se. Nas específicas condições brasileiras, tal perda tem um enorme significado: não está à vista a ruptura com a longa “via passiva” brasileira, mas já não é mais o subdesenvolvimento.

A estrutura de classes também foi truncada ou modificada: as capas mais altas do antigo proletariado converteram-se, em parte, no que Robert Reich chamou de “analistas simbólicos”25: são administradores de fundos de previdência complementar, oriundos das antigas empresas estatais , dos quais o mais poderoso é o Previ, dos funcionários do Banco do Brasil, ainda estatal; fazem parte de conselhos de administração, como o do BNDES, a título de representantes dos trabalhadores. A última floração do Welfare brasileiro, que se organizou basicamente nas estatais, produziu tais fundos, e a Constituição de 1988 instituiu o FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador que é o maior financiador de capital de longo prazo no país, justamente operando no BNDES.26 Tal simulacro produziu o que Robert Kurz chamou de “sujeitos monetários”27: trabalhadores que ascendem a essas funções28 estão preocupados com a rentabilidade de tais fundos, que ao mesmo tempo financiam a reestruturação produtiva que produz desemprego. Sindicatos de trabalhadores do setor privado também já estão organizando seus próprios fundos de previdência complementar, na esteira daqueles das estatais. Ironicamente, foi assim que a Força Sindical conquistou o sindicato da então Siderúrgica Nacional, que era ligado à CUT, formando um “clube de investimento” para financiar a privatização da empresa; ninguém perguntou depois o que aconteceu com as ações dos trabalhadores, que ou viraram pó ou foram açambarcadas pelo grupo Vicunha, que controla a Siderúrgica. É isso que explica recentes convergências pragmáticas entre o PT e o PSDB, o aparente paradoxo de que o governo de Lula realiza o programa de FHC, radicalizando-o: não se trata de equívoco, mas de uma verdadeira nova classe social, que se estrutura sobre , de um lado, técnicos e intelectuais doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB , e operários transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT29. A identidade dos dois casos reside no contrôle do acesso aos fundos públicos, no conhecimento do “mapa da mina”30.

A questão da formação dessa nova classe no capitalismo globalizado na periferia – embora Reich teorize principalmente sobre os fenômenos no centro dinâmico do sistema – deve ser mais perscrutada. De fato, tanto há um novo lugar da nova classe no sistema, sobretudo no sistema financeiro e suas mediações estatais, o que satisfaz um critério de classe de extração marxista, quanto há uma nova “experiência” de classe, nos termos de Thompson: o caso da comemoração do aniversário de ex-tesoureiro da CUT mostra que essa “experiência” lhe é exclusiva, e não pode ser estendida aos trabalhadores em geral; de fato já não são mais trabalhadores. Seria os novos pubs , lugar de frequentação da nova classe. Se nessa frequentação ela se mistura com as burguesias e seus executivos, isto não deve levar a confundí-los: seu “lugar na produção” é o contrôle do acesso ao fundo público, que não é o “lugar” da burguesia. Em termos gramscianos também a nova classe satisfaz as exigências teóricas: ela se forma exatamente num novo consenso sobre Estado e mercado, e por último, é a luta de classes que faz a classe: vale dizer, seu movimento se dá na apropriação de parcelas importantes do fundo público, e sua especificidade se marca exatamente aqui: não se trata de apropriar os lucros do setor privado, mas o lugar onde se forma parte desse lucro, vale dizer o fundo público. Uma démarche de inspiração weberiana veria a nova classe como se formando numa “ação com sentido racional”, que é , em última análise, a forma de sua consciência.31

Olhando de outro ângulo, o ornitorrinco apresenta a peculiariedade de que os principais fundos de inversão e investimento são propriedades de trabalhadores. É o socialismo, exclamaria alguém que ressuscitasse das primeiras décadas do século XX. Mas ao contrário das esperanças de Juarez Guimarães, o ornitorrinco está privado do momento ético-político32, pela combinação da permanente aceleração da estrutura material de produção e “propriedade” dos fundos de acumulação. A hegemonia, na fórmula gramsciana, elabora-se na superestrutura, e nas suas específicas condições, o ornitorrinco não tem “consciência”, mas apenas replicação superestrutural: seu teórico antecipatório foi Ridley Scott, com Blade Runner.

O ornitorrinco é isso: não há possibilidade de permanecer como subdesenvolvido, e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial propiciava; não há possibilidade de avançar, no sentido da acumulação digital-molecular: as bases internas da acumulação são insuficientes, estão aquém das necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as “acumulações primitivas”, tal como as privatizações propiciaram: mas agora com o domínio do capital financeiro, elas são apenas transferências de patrimônio, não são , propriamente falando, “acumulação”. O ornitorrinco está condenado a submeter tudo à voragem da financeirização, uma espécie de “buraco negro”: agora será a previdência social, mas isso o privará exatamente de redistribuir a renda e criar um novo mercado que sentaria as bases para a acumulação digital-molecular. O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão. Vivam Marx e Darwin: a periferia capitalista finalmente os uniu. Marx que esperava tanto a aprovação de Darwin, que não teve tempo para lêr O Capital. Não foi aqui , nas Galápagos, que Darwin teve o seu “estalo de Vieira” ?

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Notas Bibliográficas

1 Ver Luis Jorge Werneck Vianna . A Revolução Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997. Carlos Nelson Coutinho entende que Caio Prado Jr. já havia construído uma espécie de via específica para o capitalismo, que seria, afinal, o subdesenvolvimento, mas os desdobramentos posteriores do próprio Caio o fizeram ancorar numa teoria do colonialismo.. Ver, de Carlos Nelson, “ Uma via não-clássica para o capitalismo” in Maria da Conceição D’Incao, (org.) História e Ideal. Ensaios sobre Caio Prado Jr. São Paulo, Unesp/Brasiliense, 1989

2 De Furtado, o clássico Formação Econômica do Brasil 25ªed. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1995, de Raúl Prebisch, o não menos famoso – na verdade seminal – relatório da Cepal, El desarrollo económico de la América Latina y algunos de sus principales problemas.In Adolfo Gurrieri, La obra de Prebisch en la Cepal. México, Fondo de Cultura Económica, 1982.

3 Angus Madison, Monitoring the World Economy. 1820-1992, OECD, Paris. 1995

4 Ver Francisco Sá Jr. “O desenvolvimento da agricultura nordestina e a função das atividades de subsistência”, in Estudos Cebrap n. 3, jan 1973, São Paulo, Editora Brasileira de Ciências,1973

5 Aqui, o acaso também ajudou: ensinava Sociologia na nóvel Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos, junto com Sergio Ferro, rigor formal e paixão, e o inesquecível Rodrigo Lefèvre, o dançarino das Sandálias de Prata que a madrasta levou , e eles realizavam junto com outros professores , uma pesquisa sobre habitação. Ali constatava-se que a grande maioria dos favelados era proprietária de seus barracos: a incógnita foi resolvida com a revelação de que a construção da “propriedade” era feita em mutirões, tal como imemorialmente se fazia no campo. Aí, me caiu a ficha.

6 Ver José Luis Fiori (org.) Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações. Coleção Zero à Esquerda . Petrópolis, Ed. Vozes, 1999, especialmente a segunda parte “ ‘Os Capitalismos Tardios’ E Sua Projeção Global.”

7 Deste ponto de vista, o livro de Fernando Henrique Cardoso, Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico, São Paulo, Difel, 1964 , reconhecia que a burguesia industrial nacional preferia a aliança com o capital internacional. Trata-se talvez do que de melhor o ex-sociólogo , hoje ex-presidente e eterno candidato ao Planalto, produziu academicamente. Roberto Schwarz sustenta a tese de que Cardoso na presidência implementou exatamente suas conclusões neste livro, já que a burguesia nacional já havia renunciado a um projeto nacional; ele enveredou decididamente para integrar o país na globalização.

8 Mariluce Moura, “ O novo produto brasileiro”. Pesquisa n 55, Julho de 2000. Fapesp.S.Paulo,2000

9 Ver Anibal Vilanova Vilella e Wilzon Suzigan, Crescimento da Economia e Política Econômica 1889-1930.Ipea, Rio; no meu artigo “A Emergência do Modo de Produção de Mercadorias: uma interpretação teórica da economia da República Velha no Brasil”, dei relevo à pesquisa de Vilella e Suzigan, para definir o caráter violentíssimo da crise. In Boris Fausto, História da Civlização Brasileira. O Brasil Republicano. III. Cap. VII. São Paulo, Difel,1974

10 Nestes dias, do último trimestre de 2002 até março de 2003, os empréstimos externos que financiam as exportações brasileiras secaram, devido à conjunção de uma série de fatores políticos e econômicos, e o dólar deu uma disparada indo até a estratosfera, com uma desvalorização do real da ordem 30%. Passada a turbulência política, voltaram os financiamentos externos e o dólar despencou na mesma proporção. A dependência financeira é dramática e praticamente irreversível, e de uma volatilidade espantosa..

11 Ver Elson Luciano SilvaPires, Metamorfoses e Regulação: O Mercado de Trabalho do Brasil nos Anos Oitenta. Tese de doutoramento. Departamento de Sociologia, FFLCH-USP, São Paulo, 1995

12 Ver para essa interessantissima discussão, a tese de Carlos Eduardo Fernandez da Silva, o Caico, Desenvolvimento tecnológico no Brasil: Autonomia e dependência num país industrializado periférico. Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

 

13 Laymert Garcia dos Santos, “Biotecnologia, biodiversidade: passagem para o molecular global”. Relatório de pesquisa subprojeto 9. Projeto temático Fapesp “Cidadania e Democracia: as rupturas no pensamento da política”. São Paulo. Cenedic, FFLCH-USP, 2002

14 Perry Anderson trabalha essa contradição, para mostrar como apesar de todas as “reformas” neoliberais, as taxas de investimento e de crescimento do PIB jamais recuperaram o vigor do período 1950-1970 nos países centrais. Ver. ”Balanço do Neoliberalismo” in Emir Sader (org.) Pós-Neoliberalismo – As políticas Sociais e o Estado Democrático. São Paulo/Rio, Paz e Terra, 1995

15 Nos dias de hoje, está em discussão a possibilidade do Brasil produzir sua própria televisão digital, ou copiar o que está disponível internacionalmente. Uma terceira opção, variante da primeira, seria entrar num consórcio científico-tecnológico com a China. A posição do Ministro da Fazenda, o hoje controvertido Antonio Palocci, é de que não vale a pena, pois exigiria bilhões de reais de investimento para um retorno precário, dadas as reduzidas dimensões do mercado brasileiro, e o fato de que, no sistema de patentes e sob a vigilância da Organização Mundial do Comércio, pensar em exportação da televisão digital brasileira é uma quimera, perigosa para o hoje ministro Palocci. Tal dilema já havia aparecido no caso da televisão a cores, que foi resolvida mediante a adoção dos padrões Palm-M e o NSPC, isto é, cópias descartáveis. Não houve esforço científico-tecnológico nacional para criar um padrão original, mas apenas adaptação .

 

16 Dados extraídos de Revista BNDES, Rio de Janeiro, vol.8, no. 15, jun 2001

17 Na discussão teórica dos anos cinquenta, o “modelo” adotado pela então União Soviética parecia lhe dar vantagem, como teorizou Nicholas Kaldor, pois os bens de capital puxavam a economia; mas não se prestou a devida atenção teórica às indivisibilidades das formas técnicas da Segunda Revolução Industrial, que finalmente constituiu-se no gargalo da experiência soviética. Na equação keynesiana, P = C + S ou I, e no caso soviético o modelo das indústrias pesadas não tinha como não penalizar o consumo, embora produzisse um crescimento global espantoso na época dos Planos Quinquenais..

18 Robert Castel, As Metamorfoses da Questão Social: Uma Crônica do Salário. Coleção Zero à Esquerda. Petrópolis, Vozes, 1998.

19 Em todos os cursos dessas “requalificações”, treinam-se trabalhadores em informática, o “ai Jesus” do novo trabalhador polivalente: não há nada tão trágico, pois ensina-se a própria matriz da descartabilidade.

20 Ver Angus Madison, op. cit.

21 Ver Celso Furtado, Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966 e Análise do “Modelo” Brasileiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972..

22 Celso Furtado. Em busca de novo modelo – reflexões sobre a crise contemporânea. São Paulo, Paz e Terra, 2002.

23 Já está se impondo a revisão dessa literatura, que tomou o populismo como formas quase-fascistas na América Latina. Ver Alexandre Fortes, “Trabalhismo e Populismo: Novos Contornos de um Velho Debate”. Inédito; Jorge Ferreira (org.) O populismo e sua história. Debate e Crítica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001

24 Havia ali uma contradição: o movimento sindicalista que foi chamado “autêntico” – por oposição aos pelêgos saídos das intervenções da ditadura nos grandes sindicatos, caso clássico dos Metalúrgicos de São Paulo – praticavam um sindicalismo à americana, com negociações que se centravam nas empresas e depois se espraiavam , justamente porque eram empregados das grandes multinacionais, sobretudo no setor automotivo que sempre liderou São Bernardo. A ditadura e a crise do “milagre brasileiro”, com a crise da dívida externa e a incapacidade das montadoras jogarem os reajustes de preços dos automóveis para a dívida externa, levou o sindicalismo com vocação americana para mais perto do modelo europeu.

25 Ver Robert Reich, The Work of Nations, New York, Vintage Books, 1992.

26 Em 1998/99, a média dos recursos do FAT no passivo total do BNDES foi de 37% e ao longo da década, elevou-se de 2% em 1989 para 40% em 1999, mostrando a dependência do banco estatal de desenvolvimento dos recursos de propriedade dos trabalhadores com carteira.Fonte: Relatório de Atividades do BNDES de 1994 a 1999. Por sua vez, a participação dos desembolsos do BNDES na Formação Bruta de Capital Fixo, vale dizer na inversão total, flutuou entre 3,25% em 1990 para 6,26% em 1998 e 5,93 % em 1999..Fontes: Revista BNDES, Rio de Janeiro, Vol. 8,. N. 15, Jun 2001

27 Robert Kurz, Os Últimos Combates. Coleção Zero à Esquerda, Petrópolis, Vozes, 1999

28 Ficou notável na safra pós-eleições presidenciais de 2002, o aniversário do senhor Delúbio Soares, tesoureiro da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva e antigo tesoureiro da CUT: a imprensa contou entre 15 e 18 jatinhos e outras pequenas aeronaves, que aterrisaram na fazenda em que Delúbio festejava seu aniversário. Não se sabia que trabalhadores possuem aviões e tantos…

29 O Conselho da FRB-Par, holding que controla a Varig, ofereceu três assentos a petistas no referido conselho, entre eles Gilmar Carneiro que, por acaso, é membro do Conselho de Administração do BNDES, banco estatal que financiará a reestruturação do setor de aviação civil, do qual a Varig é a principal – e muito falida – empresa. Kurz, uma vez mais, tem razão. Está na hora de reler Milovan Djilas, A Nova Classe, em que ele pensa a partir exatamente do contrôle do aparato produtivo estatal pela burocracia dos regimes soi disant socialistas do Leste europeu: tal contrôle conferia estatuto de classe, posto que combinava o poder econômico com o poder político no partido único.

30 No caso extremo da Rússia pós-soviética, esse conhecimento transformou-se em verdadeira pirataria, mas os casos argentino e brasileiro diferem apenas em grau. Os economistas de FHC transformados em banqueiros são hoje, legião.. A privatização na Argentina sob Carlos Saúl Menem parece saída das histórias do gangsterismo de Chicago. Será que o fato desta cidade norteamericana sediar a escola de economia mais ortodoxa tem algo a ver ? O relato de Horacio Vebitsky a respeito é devastador, a começar pelo título de seu livro, Robo para la Corona: los fructos prohibidos del árbol de la corrupción. Buenos aires, Planeta Bolsillo, 1996.

31 A literatura que referencia essas indicações é bastante conhecida: Karl Marx, Perry Anderson, Edward J. Thompson, Antonio Gramsci, Max Weber . Trabalhei essa questão em “Medusa ou as Classes Médias e a Consolidação Democrática”, in Guillermo O’Donnell e Fábio W. Reis (orgs.) A Democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. São Paulo, Vértice, 1988, onde as considerava parte importante das classes médias em sua função de experts da medida. Creio que esse insight se aparenta com o de “analistas simbólicos” do Reich, mas hoje acrescento à função ou lugar da classe como agente da medida, o contrôle do acesso ao fundo público. Já relembrei linhas acima Milovan Djilas, mas creio sua “nova classe” se diferenciava pela combinação de contrôle do aparato produtivo com partido único, o que não é o caso dessa “medusa” periférica..

32 Juarez Guimarães identificou uma crise do neoliberalismo no Brasil, no seu “A crise do paradigma neoliberal e o enigma de 2002”, São Paulo em Perspectiva, n. 15, vol. 4, São Paulo, Fundação Seade, 2001, que lhe serviu para interpretar a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva como um momento ético-político republicano de refundação da sociedade, uma espécie de antípoda do “momento maquiaveliano”. Tal interpretação se deu em seminário na Fundação Getúlio Vargas em 9/12/2002, no II Seminário Internacional sobre Democracia Participativa, promovido pela Prefeitura Municipal de São Paulo. ..

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Miscigenação e democracia racial: Mito e realidade – Clóvis Moura

Texto 3 – curso Particularidades do Capitalismo Brasileiro – Grupo Kilombagem

MOURA, Clóvis. Miscigenação e democracia racial: mito e realidade- in: Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Editora Ática, 1988

Negação da identidade étnica

Grande pane da literatura especializada sobre relações interétnicas no Brasil conclui afirmando, por preferências ideológicas, que o Brasil é a maior democracia racial do mundo, fato que se evidencia na grande diferenciação cromática dos seus habitantes.

Afirma-se, sempre, que o português, por razoes culturais ou mesmo biológicas, tem predisposição pelo relacionamento sexual com etnias exóticas, motivo pelo qual consegue democratizar as relações sociais que estabelece naquelas áreas nas quais atuou como colonizador. O Brasil seria o melhor exemplo deste comportamento.

Em outras palavras: estabeleceu-se uma ponte ideológica entre a miscigenação (que é um fato biológico) e a democratização (que é um fato sociopolítico) tentando-se, com isto, identificar como semelhantes dois processos inteiramente independentes. Todos nós sabemos que a miscigenação é um fenômeno universal não havendo mais raças ou etnias puras no mundo.

A antropologia demonstra esse dinamismo miscigenatório milenar, quer na Europa, quer na África, Ásia ou América. Nada tem, pois, de especial ou específico o fato do português, em determinadas situações especiais, estabelecer contato e intercâmbio sexual com as raças das suas colônias, fato que, em absoluto, significaria democratização social nesse contato e intercâmbio.

Mas, com esses argumentos, consegue-se deixar de analisar como foi ordenada socialmente esta população poliétnica e quais os mecanismos específicos, de resistência à mobilidade social vertical massiva que foram criados contra os contingentes populacionais discriminados por essa estrutura.

Esquecem-se de que esses segmentos populacionais eram componentes de uma estrutura escravista, inicialmente, e de capitalismo dependente, em seguida. Com essas duas realidades estruturais durante o transcurso da nossa história social foram criados mecanismos ideológicos de barragem aos diversos segmentos discriminados.

Mas na maioria dos estudos sobre o assunto esses mecanismos não são avaliados. Pelo contrário. É como se houvesse um fluir idílico, sem nenhum entrave à evolução individual senão aquele que a capacidade de cada um exprimisse. Elide-se, assim, a escala de valores que a estrutura de dominação e o seu aparelho ideológico impuseram para discriminar grande parte dessa população não-branca.

Essa elite de poder que se auto-identifica como branca escolheu, como tipo ideal, representativo da superioridade étnica na nossa sociedade, o branco europeu e, em contrapartida, como tipo negativo, inferior, étnica e culturalmente, o negro.

Em cima dessa dicotomia étnica estabeleceu-se, como já dissemos, uma escala de valores, sendo o indivíduo ou grupo mais reconhecido e aceito socialmente na medida em que se aproxima do tipo branco, e desvalorizado e socialmente repelido à medida que se aproxima do negro.

Esse gradiente étnico que caracteriza a população brasileira, não cria, portanto, um relacionamento democrático e igualitário, já que está subordinado a uma escala de valores que vê no branco o modelo superior, no negro ó inferior e as demais nuanças de miscigenação mais consideradas, integradas, ou socialmente condenadas, repelidas, à medida que se aproximam ou se distanciam de um desses polos considerados o positivo e o negativo, o superior e o inferior nessa escala cromática.

Criou-se, assim, através de mecanismos sociais e simbólicos de dominação, uma tendência à fuga da realidade e à consciência étnica de grandes segmentos populacionais não-brancos. Eles fogem simbolicamente dessa realidade que os discrimina e criam mitos capazes de fazer com que se sintam resguardados do julgamento discriminatório das elites dominantes.

A identidade e a consciência étnicas são, assim, penosamente escamoteadas pela grande maioria dos brasileiros ao se auto-analisarem, procurando sempre elementos de identificação com os símbolos étnicos da camada branca dominante.

No recenseamento de 1980, por exemplo, os não-brancos brasileiros, ao serem inquiridos pelos pesquisadores do IBGE sobre a sua cor, responderam que ela era:

acastanhada, agalegada, alva, alva escura, alvarenta, alva-rosada, alvinha, amarelada, amarela-queimada, amarelosa, amorenada, avermelhada, azul, azul-marinho, baiano, bem branca, bem clara, bem morena, branca, branca avermelhada, branca melada, branca morena, branca pálida, branca sardenta, branca suja, branquiça, branquinha, bronze, bronzeada, bugrezinha, escura, burro-quando-foge, cabocla, cabo verde, café, café com-leite, canela, canelada, cardão, castanha, castanha clara, cobre corada, cor de café, cor de canela, cor de cuia, cor de leite, cor de ouro, cor de rosa, cor firme, crioula, encerada, enxofrada, esbranquicento, escurinha, fogoió, galega, galegada, jambo, laranja, lilás, loira, loira clara, loura, lourinha, malaia, marinheira, marrom, meio amarela, meio branca, meio morena, meio preta, melada, mestiça, miscigenação, mista, morena bem chegada, morena bronzeada, morena canelada, morena castanha, morena clara, morena cor de canela, morenada, morena escura, morena fechada, morenão, morena prata, morena roxa, morena ruiva, morena trigueira, moreninha, mulata, mulatinha, negra, negrota, pálida, paraíba, parda, parda clara, polaca, pouco clara, pouco morena, preta, pretinha, puxa para branca, quase negra, queimada, queimada de praia, queimada de sol, regular, retinha, rosa, rosada, rosa queimada, roxa, ruiva, russo, sapecada, sarará, saraúba, tostada, trigo, trigueira, turva, verde, vermelha, além de outros que não declararam a cor.

O total de cento e trinta e seis cores bem demonstra como o brasileiro foge da sua realidade étnica, da sua identidade, procurando, através de simbolismos de fuga, situar-se o mais próximo possível do modelo tido como superior.1

O que significa isto em um país que se diz uma democracia racial? Significa que, por mecanismos alienadores, a ideologia da elite dominadora introjetou em vastas camadas de não-brancos os seus valores fundamentais.

Significa, também, que a nossa realidade étnica, ao contrário do que se diz, não iguala pela miscigenação, mas, pelo contrário, diferencia, hierarquiza e inferioriza socialmente de tal maneira que esses não-brancos procuram criar uma realidade simbólica onde se refugiam, tentando escapar da inferiorização que a sua cor expressa nesse tipo de sociedade.

Nessa fuga simbólica, eles desejam compensar-se da discriminação social e racial de que são vítimas no processo de iniciação com as camadas brancas dominantes que projetaram uma sociedade democrática para eles, criando, por outro lado, uma ideologia escamoteadora capaz de encobrir as condições reais sob as quais os contatos interétnicos se realizam no Brasil.

Como vemos, a identidade étnica do brasileiro é substituída por mitos reificadores, usados pelos próprios não-brancos e negros especialmente, que procuram esquecer e/ou substituir a concreta realidade por uma dolorosa e enganadora magia cromática na qual o dominado se refugia para aproximar-se simbolicamente, o mais possível, dos símbolos criados pelo dominador.

Etnologização da história escamoteação da realidade social

A etnologização dos problemas sociais a partir da afirmação de que há uma democracia racial no Brasil demonstra como há uma confusão nos cientistas sociais adeptos desse critério metodológico.

Ao abandonarem como universo de análise a estrutura rigidamente hierarquizada na qual essas etnias foram ordenadas, de acordo com um sistema de valores discriminatório, através de mecanismos controladores, historicamente montados para conservar o sistema, objetivando manter os segmentos e grupos dominados nas últimas escalas de sua estrutura, mostram como se confunde o plano miscigenatório, biológico, portanto com o social e econômico.

De um lado, ao se dizer que há uma democracia racial no Brasil, e, de outro, ao se verificar a alocação dessas etnias não-brancas no espaço social, chega-se à conclusão de que a sua inferiofízação é decorrência das próprias deficiências ou divergências desses grupos e/ou segmentos étnicos com o processo civilizatório.

Porque, se os direitos e deveres são idênticos, as oportunidades deverão ser também idênticas. Como tal não acontece, como veremos mais tarde, a culpa pelo atraso social desses grupos é deles próprios. Joga-se, assim, sobre os segmentos não-brancos oprimidos e discriminados, e do negro em particular, a culpa da sua inferioridade social, econômica e cultural.

Para compreendermos melhor esse processo/problema devemos analisar algumas particularidades significativas da formação das classes sociais no Brasil. Alguns sociólogos supõem, esquematicamente que, acabada a escravidão, os negros e pardos ex-escravos de idêntica condição, num processo automático e linear de integração social, iriam formar o proletariado das cidades que se desenvolveriam ou o camponês livre e assalariado agrícola.

Seriam, assim, absorvidos e incorporados, por automatismo, as novas classes que apareciam após a Abolição. Iriam compor a classe operária e camponesa nos seus diversos níveis e setores e, nesta incorporação, ficariam em pé de igualdade com os demais trabalhadores, muitos deles, especialmente nas regiões Sudeste e Sul, vindos de outros países, como imigrantes.

Mas os fatos não aconteceram exatamente assim. Em pesquisas parciais que realizamos, em jornais anarquistas2 e em trabalho sistemático feito pelo professor Sidney Sérgio Fernandes Solis, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, a imprensa anarquista que então circulava não refletia nenhuma simpatia ou desejo de união com os negros, mas, pelo contrário, chegava mesmo a estampar artigos nos quais era visível o preconceito racial.

Como vemos, se, de um lado, os negros egressos das senzalas não eram incorporados a esse proletariado nascente, por automatismo, mas iriam compor a sua franja marginal, de outro, do ponto de vista ideológico, surgia, já como componente do comportamento da própria classe operária, os elementos ideológicos de barragem social apoiados no preconceito de cor.

E esse racismo larvar passou a exercer um papel selecionador dentro do próprio proletariado. O negro e outras camadas não-brancas não foram, assim, incorporados a esse proletariado incipiente, mas foram compor a grande franja de marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente que substituiu o escravismo.

Em 1893, por exemplo, escreve Florestan Fernandes:

Os imigrantes entravam com 79% do pessoal ocupado nas atividades artesanais; com 8 1% do pessoal ocupado nas atividades comerciais. Suas participações nos estratos mais altos da estrutura ocupacional ainda era pequena (pois só 31 % dos proprietários e 19,4% dos capitalistas eram estrangeiros). Contudo achavam-se incluídos nessa esfera, ao contrário do que sucedia com o negro e o mulato.3

Florestan Fernandes

Neste processo complexo e ao mesmo tempo contraditório da passagem da escravidão para o trabalho livre, o negro é logrado socialmente e apresentado, sistematicamente, como sendo incapaz de trabalhar como assalariado. No entanto, durante o escravismo, o negro atuava satisfatória e eficientemente no setor manufatureiro e artesanal.

Thomas liwbank escrevia em 1845/6 que:

Tenho visto escravos a trabalhar como carpinteiros, pedreiros, calceteiros, impressores, pintores de tabuletas e ornamentação, construtores de lampiões, artífices em prata, joalheiros e litógrafos. É também fato corrente que imagens de santos, em pedra e madeira, sejam admiravelmente feitas por negros escravos ou livres. (…) O vigário fez referência outro dia a um escravo baiano que é um santeiro de primeira ordem. Todas as espécies de ofícios são exercidas por homens e rapazes escravos.4

Segundo Heitor Ferreira Lima, os negros escravos trabalhavam em diversas atividades artesanais. No Rio de Janeiro, da mesma forma que Ewbank, os naturalistas Spix e Martius escreviam que “entre os naturais, são mulatos os que manifestam maior capacidade e diligência para as artes mecânicas.

Trabalhavam, também, nos estaleiros, na construção de barcos, na pesca da baleia, na industrialização do seu óleo e em diversas outras atividades”. Em várias outras regiões desenvolviam-se atividades artesanais e manufatureiras aproveitando-se do trabalho dos negros escravos.

No Maranhão, por exemplo, ainda segundo Spix e Martius, dos 4 000 profissionais artífices existentes em toda a província, quando esses dois cientistas por ali passaram (1818/1820) mais de 3 000 eram escravos. Vejamos os números:

Profissão Livres Escravos
Alfaiates 61 96
Caldeireiros 4 1
Carpinteiros 178 326
Entalhadores 96 42
Carpinteiros Navais 80 38
Serralheiros 5
Ferreiros (em São Luiz) 37 23
Tanoeiros (em São Luiz) 2 1
Marceneiros 30 27
Ourives 49 11
Pedreiros e Britadores 404 608
Pintores e Ceriadores 10 5
Coreeiros 4 1
Escravos auxiliares nas indústrias 1 800
Total 964 2.985
TOTAL GERAL: 3 949    

Fonte: Heitor Ferreira Lima, História político-econômica e industrial do Brasil.

Na área de São Paulo o mesmo fenómeno se verificava. Os escravos ocupavam praticamente todos os espaços do mercado de trabalho, dinamizando a produção cm níveis os mais diversificados. Exerciam ofícios que depois seriam ocupados pelo trabalho imigrante. Segundo o recenseamento de 1872 o quadro era o seguinte:

Fonte: Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia.

Os negros não eram somente os trabalhadores do eito, que se prestavam apenas para as fainas agrícolas duras e nas quais o simples trabalho braçal primário era necessário. Na diversificação da divisão do trabalho eles entravam nas mais diversas atividades, especialmente no setor artesanal. Em alguns ramos eram mesmo os mais capazes como, por exemplo, na metalurgia cujas técnicas trazidas da África foram aqui aplicadas e desenvolvidas.

Na região mineira^por exemplo, foram os .únicos que aplicaram e desenvolveram a metalurgia. Tiveram também a habilidade de aprenderem com grande facilidade os ofícios que aqueles primeiros portugueses que aqui aportaram trouxeram da Metrópole.

Eles tinham mesmo interesse de ensiná-los aos escravos a fim de se livrarem de um tipo de trabalho não-condizente com a sua condição de brancos, deixando ao negro as atividades artesanais.

Mesmo porque o trabalho desses escravos, executados para os seus donos, ou quando alugados para terceiros, proporcionava um lucro certo c fácil para o senhor. Isto dava-lhes oportunidade de capitalizarem alguma poupança c se dedicarem ao comércio.

A personagem Bertoleza do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, retrata muito bem esse tipo de escravo urbano que trabalhava de jornal. Era escrava de um cego que dela recebia a contribuição com a qual sobrevivia.

Mas os negros também “tiveram ampla e brilhante participação nas atividades de todos os ofícios mecânicos exercidos entre nós, quer como escravo, quer como libertos, ora como oficial ou simples ajudante, e até mesmo como mestres. Ensinavam-lhes um ou mais ofícios e exploravam-nos rudemente, vivendo à custa de seu trabalho”.5

Escreve, neste sentido, J. F. de Almeida Prado:

Os primeiros operários aparecidos nas capitanias especializados em misteres que requeriam alguma aprendizagem e tirocínio, chegavam feitos do Reino ou das ilhas, muitas vezes sem intenção de se demorarem, tendo deixado na terra natal a esposa e os filhos. Mais tarde, outros se formavam sob as vistas dos reinóis, transmitindo o ofício daí por diante aos pretos e mestiços. Com o tempo, chegaram os elementos de cor a constituir a quase totalidade dos obreiros da autarquia colônia, por refugarem os brancos profissões manuais procurando tornar-se proprietários de terras.6

Tanto na época colonial como na última fase da escravidão o escravo negro se articulava em diversos níveis da estrutura ocupacional, desempenhando satisfatoriamente os mais diferenciados misteres, agroindústria do açúcar o mesmo fato se verifica.

Para Luiz Vianna Filho:

Mal chegados os negros logo assimilavam o que se lhes ensinava, transformando-se em ferreiros, carapinas, marceneiros, caldeireiros, oleiros, alambiqueiros, e até mesmo mestres de açúcar, sabendo o cozimento do mel, o “ponto” do caldo, a purga do açúcar.7

Durante todo o tempo em que o escravismo existiu o escravo negro foi aquele trabalhador que estava presente em todos os ofícios por mais diversificados que eles fossem. Sua força de trabalho era distribuída em todos os setores de atividade.

No Rio de Janeiro especialmente sabemos que ele, como escravo urbano, desempenhava as mais variadas profissões a fim de proporcionar o ócio da classe senhorial. Como prova, basta que olhemos as pranchas do livro de Debret.8

Queremos dizer com isto que na dinâmica da sociedade escravista atuou, durante toda a sua existência, como mecanismo equilibrador c impulsionador, o trabalho do escravo negro. Esse mecanismo de equilíbrio e dinamismo, já que as classes senhoriais fugiam a qualquer tipo de trabalho, será atingido quando se desarticula o sistema escravista e a sociedade brasileira é reestruturada tendo o trabalho livre como forma fundamental de atividade.

O equilíbrio se parte contra o ex-escravo que é desarticulado e marginalizado do sistema de produção.

Toda essa força de trabalho escrava, relativamente diversificada, integrada e estruturada em um sistema de produção, desarticulou-se, portanto, com a decomposição do modo de produção escravista: ou se marginaliza, ou se deteriora de forma parcial ou absoluta com a morte de grande parte dos ex-escravos.

Esses ourives, alfaiates, pedreiros, marceneiros, tanoeiros, metalúrgicos etc, ao tentarem se reordenar na sociedade capitalista emergente, são por um processo de peneiramento constante e estrategicamente bem manipulado, considerados como mão-de-obra não-aproveitável e/marginalizados.

Surge, concomitantemente, o mito da incapacidade do negro para o trabalho e, com isto, ao tempo em que se proclama a existência de uma democracia racial, apregoa-se, por outro lado, a impossibilidade de se aproveitar esse enorme contingente de ex-escravos.

O preconceito de cor é assim dinamizado no contexto capitalista, os elementos não brancos passam a ser estereotipados como indolentes, cachaceiros, não-persistentes no trabalho e, em contrapartida, por extensão, apresenta- se o trabalhador branco como o modelo do perseverante, honesto, de hábitos morigerados e tendências à poupança e à estabilidade no emprego.

Elege-se o modelo branco como sendo o do trabalhador ideal e apela-se para uma política migratória sistemática e subvencionada, alegando-se a necessidade de se dinamizar a nossa economia através da importação de um trabalhador superior do ponto de vista racial e cultural e capaz de suprir, com a sua mão-de-obra, as necessidades da sociedade brasileira em expansão.

Veremos isto depois.

Há uma visível desarticulação nessa nova ordenação que atinge as populações não-brancas em geral e o negro em particular, no momento em que a nação brasileira emerge para o desenvolvimento do modelo de capitalismo dependente.

Essa desarticulação não se realiza, porém, apenas no plano estrutural, mas desarticula, também, a consciência étnica do próprio segmento não-branco.

O branqueamento como ideologia das elites de poder vai se refletir no comportamento de grande parte do segmento dominado que começa a fugir das suas matrizes étnicas, para mascarar-se com os valores criados para discriminá-lo.

Com isto o negro (o mulato, portanto, também) não se articulou em nível de uma consciência de identidade étnica capa/ de criar uma contra-ideologia neutralizadora da manipulada pelo dominador.

Pelo contrário. Há um processo de acomodação a estes valores, fato que irá determinar o esvaziamento desses negros no nível da sua consciência étnica, colocando-os, assim, como simples objetos do processo histórico, social e cultural.

A herança da escravidão que muitos sociólogos dizem estar no negro, ao contrário, está nas classes dominantes que criam valores discriminatórios através dos quais conseguem barrar, nos níveis econômico, social, cultural e existencial a emergência de uma consciência crítica negra capaz de elaborar uma proposta de nova ordenação social e de estabelecer uma verdadeira democracia racial no Brasil.

O sistema classificatório que o colonizador português impôs, criou a categoria de mulato que entra como dobradiça amortecedora dessa consciência. O mulato é diferente do negro por ser mais claro e passa a se considerar superior, assimilando a ideologia étnica do dominador, e servir de anteparo contra essa tomada de consciência geral do segmento explorado/discriminado.

Em outro local já escrevemos que:

essa política aparentemente democrática do colonizador verá os seus primeiros frutos mais visíveis na base do aparecimento de uma imprensa mulata no Rio de Janeiro.

Ela surgirá entre 1833 e 1867, aproximadamente, com caráter nacionalista, de um lado, porém deixa de incorporar à sua mensagem ideológica a libertação dos escravos negros.

Esses jornais lutavam também contra a discriminação racial, mas na medida em que os mulatos eram atingidos na dinâmica da disputa de cargos políticos e burocráticos.9

Essa perda ou fragmentação da identidade étnica determinará, por sua vez, a impossibilidade de emergir uma consciência mais abrangente e radical do segmento negro e não-branco em geral.

Estratégia de imobilismo social

Esta estratégia discriminatória contra o elemento negro não surgiu porém com a chegada dos imigrantes europeus na base do trabalho livre. Na própria estrutura escravista já havia um processo discriminatório que favorecia o homem livre em detrimento do escravo.

De todas as profissões de artesãos e artífices, eles foram sendo paulatinamente excluídos ou impedidos de exercê-las. Manuela Carneiro da Cunha escreve com propriedade:

Todas essas profissões eram igualmente desempenhadas por libertos e por livres, e certamente houve em certas épocas concorrência acirrada das várias categorias por elas. Um decreto de 25 de junho de 1831, por exemplo, proibia “a admissão de escravos como trabalhadores ou como oficiais das artes necessárias nas estações públicas da província da Bahia, enquanto houverem ingênuos que nelas queirão empregarse”. (Nabuco Araújo, v. 7, 328-9, e Colleção das Leis do Império, 1830:24).

Deve-se ter em conta que os escravos representavam nâo os seus próprios interesses, mas os de seus senhores, que procuravam ocupar totalmente o mercado de trabalho. (…) Em 1813 e 1821, os sapateiros do Rio protestaram através da sua Irmandade) contra o imo do trabalho escravo na manufatura e venda de sapatos (M. Karasch, 1975:388).

Brancos brasileiros, crioulos e africanos libertos, além de escravos de ganho, competiam no mercado do trabalho entro sl o com os estrangeiros, europeus que vinham para a Corte (…) Houve também algumas tentativas mais ou menos bem-sucedidas de monopolizar certos setores, por parte dos escravos libertos urbanos.

Sabemos de alguns exemplos. Um desses monopólios era o dos carregadores de calo no Rio do Janeiro do século-XIX: os negros minas, escravos do ganho ou libertos, tinham aparentemente se apropriado do ramo. Era um serviço pesadíssimo, que implicava deformidades e uma esperança de vida reduzida”‘10

Como vemos, à medida que a sociedade escrava se diversificava e se urbanizava, ficava mais complexa internamente a divisão do trabalho e isto produzia conflitos ou atritos nos seus diversos setores de mão-de-obra.

A estrutura ocupacional dessa época, na medida que passava por um processo de diferenciação econômica, criava mecanismos reguladores capazes de manter os diversos segmentos que disputavam esse mercado de trabalho nos seus respectivos espaços.

A isto se contrapunham mecanismos criados pelos próprios escravos no sentido de equilibrar a divisão do trabalho; os cantos, em Salvador, foram um exemplo.

Segundo Manuel Querino:

Os africanos, depois de libertos, não possuindo oficio e não querendo entregar-se aos trabalhos da lavoura, que haviam deixado, faziam-se ganhadores. Em diversas partes da cidade reuniam-se à espora que fossem chamados para a condução de volumes pesados ou leves, como fossem: cadeirinha de arruar, pipas de vinho ou aguardente, planos etc. Esses pontos tinham ó nome de canto e por Isso era comum ouvir a cada momento: chame ali um ganhador no canto. Ficavam eles sentados em trlpeças a conversar até serem chamados para o desempenho de qualquer misteres. (…) Cada canto de africanos era dirigido por um chefe a que apelidavam capitão restringindo-se as funções deste a contratar e dirigir os serviços e a receber os salários. Quando falecia o capitão tratavam de eleger ou aclamar o sucessor que assumia logo a investidura do cargo.

Nos cantos do bairro comercial, esse ato revestia-se de certa solenidade á moda africana: Os membros do canto tomavam de empréstimo uma pipa vazia em um dos trapiches da Rua do Julião ou do Pilar, enchiam-na de aguado mar, amarravam-na de cordas e por estas enfiavam grosso e comprido caibro. Oito ou dez etíopes, comumente os de musculatura mais possante, suspendiam a pipa e sobre ela montava o novo capitão do canto, tendo em uma das mãos um ramo de arbusto e na outra uma garrafa de aguardente.11

Já no período escravista, portanto, havia uma tendência a se ver no negro escravo um elemento que devia ser restringido no mercado de trabalho. Os motivos alegados, as razões apresentadas, apesar de aparentemente serem compreensíveis, o que conseguiram era — como se queria — transformar o trabalho escravo, e, em muitas circunstâncias o negro liberto, em mão-de-obra eternamente não-qualifiçada e que, por uma série de razões, não podia ser aproveitado.

Se estes mecanismos foram estabelecidos empiricamente durante o escravismo, após a Abolição eles se racionalizaram e as elites intelectuais procuraram dar, inclusive, uma explicação “científica” para eles, como veremos adiante.

Em determinada fase da nossa história econômica houve uma coincidência entre a divisão social do trabalho e a divisão racial do trabalho. Mas através de mecanismos repressivos ou simplesmente reguladores dessas relações ficou estabelecido que, em certos ramos, os brancos predominassem, e, em outros, os negros e os seus descendentes diretos predominassem.

Tudo aquilo que representava trabalho qualificado, intelectual, nobre, era exercido pela minoria branca, ao passo que todo subtrabalho, o trabalho não-qualificado, braçal, sujo e mal remunerado era praticado pelos escravos, inicialmente, em pelos negros livres após a Abolição.

Esta divisão do trabalho, reflexa de uma estrutura social rigidamente estratificada ainda persiste em nossos dias de forma significativa.

Assim como a sociedade brasileira não se democratizou nas suas rerações sociais fundamentais, também não se democratizou nas suas relações raciais. Por esta razão, aquela herança negativa que vem da forma como a sociedade escravista teve início e se desenvolveu, ainda tem presença no bojo da estrutura altamente competitiva do capitalismo dependente que se formou em seguida.

Por esta razão, aquela herança negativa que vem da forma como a sociedade escravista teve início e se desenvolveu, ainda tem presença no bojo da estrutura altamente competitiva do capitalismo dependente que se formou em seguida.

Por esta razão, a mobilidade social para o negro descendente do antigo escravo é muito pequena no espaço social. Ele foi praticamente imobilizado por mecanismos seletivos que a estratégia das classes dominantes estabeleceu. Para que isto funcionasse eficazmente foi criado um amplo painel ideológico para explicar e/ou justificar essa imobilização estrategicamente montada.

Passado quase um século da Abolição a situação não mudou significativamente na estrutura ocupacional para a população negra e não-branca.

De acordo com o Censo de 1980, de 119 milhões de brasileiros, 54,77% se declararam brancos; 38,45% pardos; 5, 89% pretos e 0,6.1% amarelos.

Podemos afirmar, portanto, que são descendentes de negros ou índios 44,34% da população. Por outro lado, ao invés do branqueamento preconizado pela elite branca essa proporção vem aumentando nas últimas décadas, pois ela era de 36% em 1940, 38% em 1950 e 45% em 1980, usando o IBGE a mesma metodologia na pesquisa.

Mas a população negra e não-branca de um modo geral não se distribui proporcionalmente na estrutura empregatícia e outros indicadores da sua situação econômico-social no conjunto da sociedade.

Pelo contrário. De acordo com o recenseamento de 1980 era esta a situação dos principais grupos étnicos quanto à sua ocupação principal:

Esta situação poderá ser facilmente verificada através da análise dos gráficos abaixo:

Não precisamos argumentar mais analiticamente para constatarmos que os negros e não-brancos em geral (excluindo-se os amarelos) são aqueles que possuem empregos e posições menos significativas social e economicamente.

Por outro lado, repete-se, cm 1980, o mesmo fato que Florestan Fernandes registra ao analisar uma estatística de 1893: O negro é o segmento mais inferiorizado da população.

Em 1893 ele não comparece como capitalista, Em 1980 ele comparece apenas com 0,4% na qualidade de empregador. Isto demonstra como os mecanismos de imobilismo social funcionaram eficientemente no Brasil, através de uma estratégia centenária, para impedir que o negro’ ascendesse significativamente na estrutura ocupacional e em outros indicadores de mobilidade social.

Como vemos, os imigrantes de 1893 estavam numa posição melhor do que os negros brasileiros, atualmente, segundo os dados do Censo de 1980.

Isto se reflete de várias maneiras e funciona ativamente na sociedade competitiva atual.

Criaram-se, em cima disto, duas pontes ideológicas: a primeira é de que com a miscigenação nós democratizamos a sociedade brasileira, criando aqui a maior democracia racial do mundo; a segunda de que os negros e demais segmentos não-brancos estão ha atual posição econômica, social e cultural a culpa é exclusivamente deles que não souberam aproveitar o grande leque de oportunidades que essa sociedade lhes deu.

Com isto, identifica-se o crime-e a marginalização com a população negra, transformando-se as populações não brancas em criminosos em potencial. Têm de andar com carteira profissional assinada, comportar-se bem nos lugares públicos, não reclamar dos seus direitos quando violados e, principalmente, encarar a polícia como um órgão de poder todo-poderoso que pode mandar um negro “passar correndo” ou jogá-lo em um camburão e eliminá-lo em uma estrada.

Negro se mata primeiro para depois saber se El criminoso é um slogan dos órgãos de segurança. Como podemos ver, a partir do momento em que o ex-escravo” entrou no mercado de trabalho competitivo foi altamente discriminado por uma série de mecanismos de peneiramento que determinava o seu imobilismo.

Além disso privilegiou-se o trabalhador branco estrangeiro, especialmente após a Abolição, o qual passou a ocupar os grandes espaços dinâmicos dessa sociedade. Surge, como um dos elementos dessa barragem, a ideologia do preconceito de cor que inferioriza o negro em todos os níveis da sua personalidade.

Esse preconceito que atua como elemento restritivo das possibilidades do negro. na sociedade brasileira poderá ser constatado: a) no comportamento rotineiro dc grandes faixas brancas da população em todo o território nacional b) nas relações inter e intra-familiares; c) no critério seletivo para a escolha de empregos e ocupações; d) nos contatos formais entre elementos de etnias diversas; e) na filosofia de indivíduo, grupos, segmentos e instituições públicas ou privadas; f) na competição global entre camadas que compõem as classes sociais etnicamente diversificadas da sociedade brasileira.

Este conjunto de mecanismos ideológicos, inconscientes para a maioria, mas elaborados por uma elite racista, refletir-se-á no processo concreto da seleção econômica dos negros. A instrumentação dessa ideologia deve ser vista como um elemento componente da marginalização de grandes continentes populacionais negros.

Pesquisa realizada e concluída em 1979 — portanto apenas um ano antes da divulgação do censo de 1980 —, pelo Departamento de Estudos e Indicadores Sociais (Deiso), chega à conclusão que não deixa dúvidas quanto a este mecanismo selecionador negativo contra o negro no mercado de trabalho. Ainda acompanhando-se, por agora, apenas o indicador de rendimento familiar, conclui a pesquisa:

Com relação aos indicadores levantados, os diferenciais são maiores entre os brancos e negros nas famílias de rendimento familiar de mais de três salários mínimos e nas famílias urbanas. A distribuição das famílias por grupos de rendimento mensal familiar nos indica que 60% das famílias têm rendimentos de até três salários mínimos, sendo que a presença das famílias pretas e pardas neste grupo é de 80,5% e 74,2%, respectivamente, e a das brancas de 50,4%.

O rendimento médio familiar per capita, em 1976, das famílias brancas era de Cr$ 1 087,40 e das famílias negras (pretas e pardas) respectivamente Cr$ 383,10 e Cr$ 548,90, correspondendo o rendimento das famílias pretas e pardas a 35% e 50%, respectivamente, do rendimento familiar per capita das famílias brancas.12

No setor da divisão do trabalho a mesma pesquisa registra os seguintes resultados quanto à posição do negro:

Brancos e negros têm uma inserção desigual na estrutura ocupacional. Os negros encontram-se mais concentrados (aproximadamente 90%) que os brancos (cerca de 75%) nas ocupações manuais, as de menor nível de rendimento e instrução.

Assim, enquanto 8,5% dos brancos têm ocupações de nível superior apenas 1,1% dos pretos e 2,7% dos pardos neles são absorvidos e, considerando as ocupações de nível médio, os percentuais encontrados são de 14,6% para os brancos, 3,6% dos pretos e 7,2% dos pardos.13

Como vemos, na estrutura ocupacional, como em outras, a situação do negro é sempre negativa, sempre de inferiorização em comparação com o segmento branco da nossa população.

Outra pesquisa como a do IBGE, numa Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, chega a conclusão idêntica como podemos ver no quadro abaixo:

Como vemos, a estratégia racista das classes dominantes atuais, que substituíram os senhores de escravos, conseguiu estabelecer um permanente processo de imobilismo social que bloqueou e congelou população negra e não-branca permanentemente em nível nacional.

No que diz respeito à distribuição da renda o gráfico abaixo espelha essa realidade:

O Brasil teria de ser branco e capitalista

O auge da campanha pelo branqueamento do Brasil surge exatamente no momento em que o trabalho escravo (negro) é descartado e substituído pelo assalariado. Aí coloca-se o dilema do passado com o futuro, do atraso com o progresso e do negro com o branco como trabalhadores.

O primeiro representaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o branco (europeu) era o símbolo do trabalho ordenado, pacífico e progressista.

Desta forma, para se modernizar e desenvolver o Brasil só havia um caminho: colocar no lugar do negro o trabalhador imigrante, descartar o país dessa carga passiva, exótica, fetichista e perigosa por uma população cristã, europeia e morigerada.

Todo o racismo embutido na campanha abolicionista vem, então, à tona. Já não era mais acabar-se com a escravidão, mas enfatizar-se que os negros eram incapazes ou incapacitados para a nova etapa de desenvolvimento do país.

Todos achavam que eles deviam ser substituídos pelo trabalhador branco, suas crenças deviam ser combatidas, pois não foram cristianizados suficientemente, enquanto o italiano, o alemão, o espanhol, o português, ou outras nacionalidades europeias, viriam trazer não apenas o seu trabalho, mas a cultura ocidental, ligada histórica e socialmente às nossas tradições latinas.

Alguns políticos tentam inclusive introduzir imigrantes que fugiam aos padrões europeus, como os chineses e mesmo africanos. A grita foi geral. Precisávamos melhorar o sangue, a raça.

O historiador José Octávio escreve neste sentido que:

Se a providência pela qual, segundo o paraibano Maurílio Almeida tanto se bateria o paraibano Diogo Velho quando da sua passagem pelo Ministério da Agricultura do Império, já refletia a tendência de buscar-se alternativa para a mão-de-obra negro-escrava dentro dos ideais de caldeamento com “grupos superiores” perseguidos pela elite dirigente do Brasil, a resposta de Menezes e Souza, preparada como relatório formal do Ministério da Agricultura, em 1875, é preconceituosa e típica de que não se trata de importar grupos estrangeiros quaisquer que fossem, mas grupos estrangeiros brancos e do Norte europeu, o que situa a política imigratória adotada pelo Brasil em fins do Império e princípios da República como de fundo racista no sentido arianizante que a palavra passou a admitir. Nesses termos, Menezes e Souza não usava de meias palavras ao denegrir os chineses, cuja raça ” é abastardada e faz degenerar a nossa”, tanto mais porque ” o Brasil precisava de sangue novo e não de suco envelhecido e envenenado de constituições exaustas e degeneradas”.14

O problema não era apenas importar-se mão-de-obra, mas sim membros de uma raça mais nobre, ou melhor, caucásica, branca, europeia e por todas essas qualidades superior.

A ideologia do branqueamento permeia então o pensamento de quase toda a produção intelectual do Brasil e subordina ideologicamente as classes dominantes. Importar o negro, isto ficava fora de qualquer cogitação.

Em 1920 (ano inclusive em que entra a imigração sistemática de japoneses, em face da dificuldade de se importar mão-de-obra europeia em consequência da Primeira Guerra Mundial) foi realizada uma pesquisa para saber-se se o imigrante negro seria benéfico ao Brasil ou não.

A pesquisa foi feita pela Sociedade Nacional de Agricultura e as conclusões foram de que ele seria indesejável. Nas respostas negativas funcionava a mesma ideologia.

Vejamos os resultados:

Condição social Escravo Trabalhador livre Total
Costureiras 67 583 650
Mineiros e cant. (sic) 1 41 42
Trab. em metais 19 218 237
Trab. em madeiras 33 260 293
Trab. em edificações 25 130 155
Trab. em tecidos 124 856 990
Trab. em vestuário 2 102 104
Trab. em couro e pape 30 189 219
Trab. em calçados 5 58 63
Trab. em agricultura 826 3 747 4 563
Criados e jornais 507 2 535 3 042
Serviços domésticos 1 304 3 506 4 810
Sem profissão 677 8 244 8 921

Fonte: Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia.

Os negros não eram somente os trabalhadores do eito, que se prestavam apenas para as fainas agrícolas duras e nas quais o simples trabalho braçal primário era necessário. Na diversificação da divisão do trabalho eles entravam nas mais diversas atividades, especialmente no setor artesanal. Em alguns ramos eram mesmo os mais capazes como, por exemplo, na metalurgia cujas técnicas trazidas da África foram aqui aplicadas e desenvolvidas. Na região mineira^por exemplo, foram os .únicos que aplicaram e desenvolveram a metalurgia. Tiveram também a habilidade de aprenderem com grande facilidade os ofícios que aqueles primeiros portugueses que aqui aportaram trouxeram da Metrópole. Eles tinham mesmo interesse de ensiná-los aos escravos a fim de se livrarem de um tipo de trabalho não-condizente com a sua condição de brancos, deixando ao negro as atividades artesanais. Mesmo porque o trabalho desses escravos, executados para os seus donos, ou quando alugados para terceiros, proporcionava um lucro certo c fácil para o senhor. Isto dava-lhes oportunidade de capitalizarem alguma poupança c se dedicarem ao comércio. A personagem Bertoleza do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, retrata muito bem esse tipo de escravo urbano que trabalhava de jornal. Era escrava de um cego que dela recebia a contribuição com a qual sobrevivia. Mas os negros também “tiveram ampla e brilhante participação nas atividades de todos os ofícios mecânicos exercidos entre nós, quer como escravo, quer como libertos, ora como oficial ou simples ajudante, e até mesmo como mestres. Ensinavam-lhes um ou mais ofícios e exploravam-nos rudemente, vivendo à custa de seu trabalho”.5

Escreve, neste sentido, J. F. de Almeida Prado:

Os primeiros operários aparecidos nas capitanias especializados em misteres que requeriam alguma aprendizagem e tirocínio, chegavam feitos do Reino ou das ilhas, muitas vezes sem intenção de se demorarem, tendo deixado na terra natal a esposa e os filhos. Mais tarde, outros se formavam sob as vistas dos reinóis, transmitindo o ofício daí por diante aos pretos e mestiços. Com o tempo, chegaram os elementos de cor a constituir a quase totalidade dos obreiros da autarquia colônia, por refugarem os brancos profissões manuais procurando tornar-se proprietários de terras.6

Tanto na época colonial como na última fase da escravidão o escravo negro se articulava em diversos níveis da estrutura ocupacional, desempenhando satisfatoriamente os mais diferenciados misteres, agroindústria do açúcar o mesmo fato se verifica. Para Luiz

Vianna Filho:

Mal chegados os negros logo assimilavam o que se lhes ensinava, transformando-se em ferreiros, carapinas, marceneiros, caldeireiros, oleiros, alambiqueiros, e até mesmo mestres de açúcar, sabendo o cozimento do mel, o “ponto” do caldo, a purga do açúcar.7

Durante todo o tempo em que o escravismo existiu o escravo negro foi aquele trabalhador que estava presente em todos os ofícios por mais diversificados que eles fossem. Sua força de trabalho era distribuída em todos os setores de atividade. No Rio de Janeiro especialmente sabemos que ele, como escravo urbano, desempenhava as mais variadas profissões a fim de proporcionar o ócio da classe senhorial. Como prova, basta que olhemos as pranchas do livro de Debret.8

Queremos dizer com isto que na dinâmica da sociedade escravista atuou, durante toda a sua existência, como mecanismo equilibrador c impulsionador, o trabalho do escravo negro. Esse mecanismo de equilíbrio e dinamismo, já que as classes senhoriais fugiam a qualquer tipo de trabalho, será atingido quando se desarticula o sistema escravista e a sociedade brasileira é reestruturada tendo o trabalho livre como forma fundamental de atividade. O equilíbrio se parte contra o ex-escravo que é desarticulado e marginalizado do sistema de produção.

Toda essa força de trabalho escrava, relativamente diversificada, integrada e estruturada em um sistema de produção, desarticulou-se, portanto, com a decomposição do modo de produção escravista: ou se marginaliza, ou se deteriora de forma parcial ou absoluta com a morte de grande parte dos ex-escravos. Esses ourives, alfaiates, pedreiros, marceneiros, tanoeiros, metalúrgicos etc, ao tentarem se reordenar na sociedade capitalista emergente, são por um processo de peneiramento constante e estrategicamente bem manipulado, considerados como mão-de-obra não-aproveitável e/marginalizados. Surge, concomitantemente, o mito da incapacidade do negro para o trabalho e, com isto, ao tempo em que se proclama a existência de uma democracia racial, apregoa-se, por outro lado, a impossibilidade de se aproveitar esse enorme contingente de ex-escravos. O preconceito de cor é assim dinamizado no contexto capitalista, os elementos não brancos passam a ser estereotipados como indolentes, cachaceiros, não-persistentes no trabalho e, em contrapartida, por extensão, apresenta- se o trabalhador branco como o modelo do perseverante, honesto, de hábitos morigerados e tendências à poupança e à estabilidade no emprego. Elege-se o modelo branco como sendo o do trabalhador ideal e apela-se para uma política migratória sistemática e subvencionada, alegando-se a necessidade de se dinamizar a nossa economia através da importação de um trabalhador superior do ponto de vista racial e cultural e capaz de suprir, com a sua mão-de-obra, as necessidades da sociedade brasileira em expansão. Veremos isto depois.

Há uma visível desarticulação nessa nova ordenação que atinge as populações não-brancas em geral e o negro em particular, no momento em que a nação brasileira emerge para o desenvolvimento do modelo de capitalismo dependente. Essa desarticulação não se realiza, porém, apenas no plano estrutural, mas desarticula, também, a consciência étnica do próprio segmento não-branco.

O branqueamento como ideologia das elites de poder vai se refletir no comportamento de grande parte do segmento dominado que começa a fugir das suas matrizes étnicas, para mascarar-se com os valores criados para discriminá-lo. Com isto o negro (o mulato, portanto, também) não se articulou em nível de uma consciência de identidade étnica capa/ de criar uma contra-ideologia neutralizadora da manipulada pelo dominador. Pelo contrário. Há um processo de acomodação a estes valores, fato que irá determinar o esvaziamento desses negros no nível da sua consciência étnica, colocando-os, assim, como simples objetos do processo histórico, social e cultural.

A herança da escravidão que muitos sociólogos dizem estar no negro, ao contrário, está nas classes dominantes que criam valores discriminatórios através dos quais conseguem barrar, nos níveis econômico, social, cultural e existencial a emergência de uma consciência crítica negra capaz de elaborar uma proposta de nova ordenação social e de estabelecer uma verdadeira democracia racial no Brasil.

O sistema classificatório que o colonizador português impôs, criou a categoria de mulato que entra como dobradiça amortecedora dessa consciência. O mulato é diferente do negro por ser mais claro e passa a se considerar superior, assimilando a ideologia étnica do dominador, e servir de anteparo contra essa tomada de consciência geral do segmento explorado/discriminado. Em outro local já escrevemos que:

essa política aparentemente democrática do colonizador verá os seus primeiros frutos mais visíveis na base do aparecimento de uma imprensa mulata no Rio de Janeiro. Ela surgirá entre 1833 e 1867, aproximadamente, com caráter nacionalista, de um lado, porém deixa de incorporar à sua mensagem ideológica a libertação dos escravos negros. Esses jornais lutavam também contra a discriminação racial, mas na medida em que os mulatos eram atingidos na dinâmica da disputa de cargos políticos e burocráticos.9

Essa perda ou fragmentação da identidade étnica determinará, por sua vez, a impossibilidade de emergir uma consciência mais abrangente e radical do segmento negro e não-branco em geral.

3. Estratégia de imobilismo social

Esta estratégia discriminatória contra o elemento negro não surgiu porém com a chegada dos imigrantes europeus na base do trabalho livre. Na própria estrutura escravista já havia um processo discriminatório que favorecia o homem livre em detrimento do escravo. De todas as profissões de artesãos e artífices, eles foram sendo paulatinamente excluídos ou impedidos de exercê-las. Manuela Carneiro da Cunha escreve com propriedade:

Todas essas profissões eram igualmente desempenhadas por libertos e por livres, e certamente houve em certas épocas concorrência acirrada das várias categorias por elas. Um decreto de 25 de junho de 1831, por exemplo, proibia “a admissão de escravos como trabalhadores ou como oficiais das artes necessárias nas estações públicas da província da Bahia, enquanto houverem ingênuos que nelas queirão empregarse”. (Nabuco Araújo, v. 7, 328-9, e Colleção das Leis do Império, 1830:24). Deve-se ter em conta que os escravos representavam nâo os seus próprios interesses, mas os de seus senhores, que procuravam ocupar totalmente o mercado de trabalho. (…) Em 1813 e 1821, os sapateiros do Rio protestaram através da sua Irmandade) contra o imo do trabalho escravo na manufatura e venda de sapatos (M. Karasch, 1975:388). Brancos brasileiros, crioulos e africanos libertos, além de escravos de ganho, competiam no mercado do trabalho entro sl o com os estrangeiros, europeus que vinham para a Corte (…) Houve também algumas tentativas mais ou menos bem-sucedidas de monopolizar certos setores, por parte dos escravos libertos urbanos. Sabemos de alguns exemplos. Um desses monopólios era o dos carregadores de calo no Rio do Janeiro do século-XIX: os negros minas, escravos do ganho ou libertos, tinham aparentemente se apropriado do ramo. Era um serviço pesadíssimo, que implicava deformidades e uma esperança de vida reduzida”‘10

Como vemos, à medida que a sociedade escrava se diversificava e se urbanizava, ficava mais complexa internamente a divisão do trabalho e isto produzia conflitos ou atritos nos seus diversos setores de mão-de-obra. A estrutura ocupacional dessa época, na medida que passava por um processo de diferenciação econômica, criava mecanismos reguladores capazes de manter os diversos segmentos que disputavam esse mercado de trabalho nos seus respectivos espaços.

A isto se contrapunham mecanismos criados pelos próprios escravos no sentido de equilibrar a divisão do trabalho; os cantos, em Salvador, foram um exemplo.

Segundo Manuel Querino:

Os africanos, depois de libertos, não possuindo oficio e não querendo entregar-se aos trabalhos da lavoura, que haviam deixado, faziam-se ganhadores. Em diversas partes da cidade reuniam-se à espora que fossem chamados para a condução de volumes pesados ou leves, como fossem: cadeirinha de arruar, pipas de vinho ou aguardente, planos etc. Esses pontos tinham ó nome de canto e por Isso era comum ouvir a cada momento: chame ali um ganhador no canto. Ficavam eles sentados em trlpeças a conversar até serem chamados para o desempenho de qualquer misteres. (…) Cada canto de africanos era dirigido por um chefe a que apelidavam capitão restringindo-se as funções deste a contratar e dirigir os serviços e a receber os salários. Quando falecia o capitão tratavam de eleger ou aclamar o sucessor que assumia logo a investidura do cargo.

Nos cantos do bairro comercial, esse ato revestia-se de certa solenidade á moda africana: Os membros do canto tomavam de empréstimo uma pipa vazia em um dos trapiches da Rua do Julião ou do Pilar, enchiam-na de aguado mar, amarravam-na de cordas e por estas enfiavam grosso e comprido caibro. Oito ou dez etíopes, comumente os de musculatura mais possante, suspendiam a pipa e sobre ela montava o novo capitão do canto, tendo em uma das mãos um ramo de arbusto e na outra uma garrafa de aguardente.11

Já no período escravista, portanto, havia uma tendência a se ver no negro escravo um elemento que devia ser restringido no mercado de trabalho. Os motivos alegados, as razões apresentadas, apesar de aparentemente serem compreensíveis, o que conseguiram era — como se queria — transformar o trabalho escravo, e, em muitas circunstâncias o negro liberto, em mão-de-obra eternamente não-qualifiçada e que, por uma série de razões, não podia ser aproveitado.

Se estes mecanismos foram estabelecidos empiricamente durante o escravismo, após a Abolição eles se racionalizaram e as elites intelectuais procuraram dar, inclusive, uma explicação “científica” para eles, como veremos adiante.

Em determinada fase da nossa história econômica houve uma coincidência entre a divisão social do trabalho e a divisão racial do trabalho. Mas através de mecanismos repressivos ou simplesmente reguladores dessas relações ficou estabelecido que, em certos ramos, os brancos predominassem, e, em outros, os negros e os seus descendentes diretos predominassem. Tudo aquilo que representava trabalho qualificado, intelectual, nobre, era exercido pela minoria branca, ao passo que todo subtrabalho, o trabalho não-qualificado, braçal, sujo e mal remunerado era praticado pelos escravos, inicialmente, em pelos negros livres após a Abolição.

Esta divisão do trabalho, reflexa de uma estrutura social rigidamente estratificada ainda persiste em nossos dias de forma significativa. Assim como a sociedade brasileira não se democratizou nas suas rerações sociais fundamentais, também não se democratizou nas suas relações raciais. Por esta razão, aquela herança negativa que vem da forma como a sociedade escravista teve início e se desenvolveu, ainda tem presença no bojo da estrutura altamente competitiva do capitalismo dependente que se formou em seguida. Por esta razão, a mobilidade social para o negro descendente do antigo escravo é muito pequena no espaço social. Ele foi praticamente imobilizado por mecanismos seletivos que a estratégia das classes dominantes estabeleceu. Para que isto funcionasse eficazmente foi criado um amplo painel ideológico para explicar e/ou justificar essa imobilização estrategicamente montada. Passado quase um século da Abolição a situação não mudou significativamente na estrutura ocupacional para a população negra e não-branca.

De acordo com o Censo de 1980, de 119 milhões de brasileiros, 54,77% se declararam brancos; 38,45% pardos; 5, 89% pretos e 0,6.1% amarelos. Podemos afirmar, portanto, que são descendentes de negros ou índios 44,34% da população. Por outro lado, ao invés do branqueamento preconizado pela elite branca essa proporção vem aumentando nas últimas décadas, pois ela era de 36% em 1940, 38% em 1950 e 45% em 1980, usando o IBGE a mesma metodologia na pesquisa.

Mas a população negra e não-branca de um modo geral não se distribui proporcionalmente na estrutura empregatícia e outros indicadores da sua situação econômico-social no conjunto da sociedade. Pelo contrário. De acordo com o recenseamento de 1980 era esta a situação dos principais grupos étnicos quanto à sua ocupação principal:

Esta situação poderá ser facilmente verificada através da análise dos gráficos abaixo:

Não precisamos argumentar mais analiticamente para constatarmos que os negros e não-brancos em geral (excluindo-se os amarelos) são aqueles que possuem empregos e posições menos significativas social e economicamente. Por outro lado, repete-se, cm 1980, o mesmo fato que Florestan Fernandes registra ao analisar uma estatística de 1893: O negro é o segmento mais inferiorizado da população.

Em 1893 ele não comparece como capitalista, Em 1980 ele comparece apenas com 0,4% na qualidade de empregador. Isto demonstra como os mecanismos de imobilismo social funcionaram eficientemente no Brasil, através de uma estratégia centenária, para impedir que o negro’ ascendesse significativamente na estrutura ocupacional e em outros indicadores de mobilidade social. Como vemos, os imigrantes de 1893 estavam numa posição melhor do que os negros brasileiros, atualmente, segundo os dados do Censo de 1980. Isto se reflete de várias maneiras e funciona ativamente na sociedade competitiva atual.

Criaram-se, em cima disto, duas pontes ideológicas: a primeira é de que com a miscigenação nós democratizamos a sociedade brasileira, criando aqui a maior democracia racial do mundo; a segunda de que os negros e demais segmentos não-brancos estão ha atual posição econômica, social e cultural a culpa é exclusivamente deles que não souberam aproveitar o grande leque de oportunidades que essa sociedade lhes deu. Com isto, identifica-se o crime-e a marginalização com a população negra, transformando-se as populações não brancas em criminosos em potencial. Têm de andar com carteira profissional assinada, comportar-se bem nos lugares públicos, não reclamar dos seus direitos quando violados e, principalmente, encarar a polícia como um órgão de poder todo-poderoso que pode mandar um negro “passar correndo” ou jogá-lo em um camburão e eliminá-lo em uma estrada. Negro se mata primeiro para depois saber se El criminoso é um slogan dos órgãos de segurança. Como podemos ver, a partir do momento em que o ex-escravo” entrou no mercado de trabalho competitivo foi altamente discriminado por uma série de mecanismos de peneiramento que determinava o seu imobilismo. Além disso privilegiou-se o trabalhador branco estrangeiro, especialmente após a Abolição, o qual passou a ocupar os grandes espaços dinâmicos dessa sociedade. Surge, como um dos elementos dessa barragem, a ideologia do preconceito de cor que inferioriza o negro em todos os níveis da sua personalidade. Esse preconceito que atua como elemento restritivo das possibilidades do negro. na sociedade brasileira poderá ser constatado: a) no comportamento rotineiro dc grandes faixas brancas da população em todo o território nacional b) nas relações inter e intra-familiares; c) no critério seletivo para a escolha de empregos e ocupações; d) nos contatos formais entre elementos de etnias diversas; e) na filosofia de indivíduo, grupos, segmentos e instituições públicas ou privadas; f) na competição global entre camadas que compõem as classes sociais etnicamente diversificadas da sociedade brasileira. Este conjunto de mecanismos ideológicos, inconscientes para a maioria, mas elaborados por uma elite racista, refletir-se-á no processo concreto da seleção econômica dos negros. A instrumentação dessa ideologia deve ser vista como um elemento componente da marginalização de grandes continentes populacionais negros.

Pesquisa realizada e concluída em 1979 — portanto apenas um ano antes da divulgação do censo de 1980 —, pelo Departamento de Estudos e Indicadores Sociais (Deiso), chega à conclusão que não deixa dúvidas quanto a este mecanismo selecionador negativo contra o negro no mercado de trabalho. Ainda acompanhando-se, por agora, apenas o indicador de rendimento familiar, conclui a pesquisa:

Com relação aos indicadores levantados, os diferenciais são maiores entre os brancos e negros nas famílias de rendimento familiar de mais de três salários mínimos e nas famílias urbanas. A distribuição das famílias por grupos de rendimento mensal familiar nos indica que 60% das famílias têm rendimentos de até três salários mínimos, sendo que a presença das famílias pretas e pardas neste grupo é de 80,5% e 74,2%, respectivamente, e a das brancas de 50,4%.

O rendimento médio familiar per capita, em 1976, das famílias brancas era de Cr$ 1 087,40 e das famílias negras (pretas e pardas) respectivamente Cr$ 383,10 e Cr$ 548,90, correspondendo o rendimento das famílias pretas e pardas a 35% e 50%, respectivamente, do rendimento familiar per capita das famílias brancas.12

No setor da divisão do trabalho a mesma pesquisa registra os seguintes resultados quanto à posição do negro:

Brancos e negros têm uma inserção desigual na estrutura ocupacional. Os negros encontram-se mais concentrados (aproximadamente 90%) que os brancos (cerca de 75%) nas ocupações manuais, as de menor nível de rendimento e instrução. Assim, enquanto 8,5% dos brancos têm ocupações de nível superior apenas 1,1% dos pretos e 2,7% dos pardos neles são absorvidos e, considerando as ocupações de nível médio, os percentuais encontrados são de 14,6% para os brancos, 3,6% dos pretos e 7,2% dos pardos.13

Como vemos, na estrutura ocupacional, como em outras, a situação do negro é sempre negativa, sempre de inferiorização em comparação com o segmento branco da nossa população. Outra pesquisa como a do IBGE, numa Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, chega a conclusão idêntica como podemos ver no quadro abaixo:

Como vemos, a estratégia racista das classes dominantes atuais, que substituíram os senhores de escravos, conseguiu estabelecer um permanente processo de imobilismo social que bloqueou e congelou população negra e não-branca permanentemente em nível nacional.

No que diz respeito à distribuição da renda o gráfico abaixo espelha essa realidade:

4.O Brasil teria de ser branco e capitalista

O auge da campanha pelo branqueamento do Brasil surge exatamente no momento em que o trabalho escravo (negro) é descartado e substituído pelo assalariado. Aí coloca-se o dilema do passado com o futuro, do atraso com o progresso e do negro com o branco como trabalhadores. O primeiro representaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o branco (europeu) era o símbolo do trabalho ordenado, pacífico e progressista. Desta forma, para se modernizar e desenvolver o Brasil só havia um caminho: colocar no lugar do negro o trabalhador imigrante, descartar o país dessa carga passiva, exótica, fetichista e perigosa por uma população cristã, europeia e morigerada.

Todo o racismo embutido na campanha abolicionista vem, então, à tona. Já não era mais acabar-se com a escravidão, mas enfatizar-se que os negros eram incapazes ou incapacitados para a nova etapa de desenvolvimento do país. Todos achavam que eles deviam ser substituídos pelo trabalhador branco, suas crenças deviam ser combatidas, pois não foram cristianizados suficientemente, enquanto o italiano, o alemão, o espanhol, o português, ou outras nacionalidades europeias, viriam trazer não apenas o seu trabalho, mas a cultura ocidental, ligada histórica e socialmente às nossas tradições latinas. Alguns políticos tentam inclusive introduzir imigrantes que fugiam aos padrões europeus, como os chineses e mesmo africanos. A grita foi geral. Precisávamos melhorar o sangue, a raça.

O historiador José Octávio escreve neste sentido que:

Se a providência pela qual, segundo o paraibano Maurílio Almeida tanto se bateria o paraibano Diogo Velho quando da sua passagem pelo Ministério da Agricultura do Império, já refletia a tendência de buscar-se alternativa para a mão-de-obra negro-escrava dentro dos ideais de caldeamento com “grupos superiores” perseguidos pela elite dirigente do Brasil, a resposta de Menezes e Souza, preparada como relatório formal do Ministério da Agricultura, em 1875, é preconceituosa e típica de que não se trata de importar grupos estrangeiros quaisquer que fossem, mas grupos estrangeiros brancos e do Norte europeu, o que situa a política imigratória adotada pelo Brasil em fins do Império e princípios da República como de fundo racista no sentido arianizante que a palavra passou a admitir. Nesses termos, Menezes e Souza não usava de meias palavras ao denegrir os chineses, cuja raça ” é abastardada e faz degenerar a nossa”, tanto mais porque ” o Brasil precisava de sangue novo e não de suco envelhecido e envenenado de constituições exaustas e degeneradas”.14

O problema não era apenas importar-se mão-de-obra, mas sim membros de uma raça mais nobre, ou melhor, caucásica, branca, europeia e por todas essas qualidades superior. A ideologia do branqueamento permeia então o pensamento de quase toda a produção intelectual do Brasil e subordina ideologicamente as classes dominantes. Importar o negro, isto ficava fora de qualquer cogitação.

Em 1920 (ano inclusive em que entra a imigração sistemática de japoneses, em face da dificuldade de se importar mão-de-obra europeia em consequência da Primeira Guerra Mundial) foi realizada uma pesquisa para saber-se se o imigrante negro seria benéfico ao Brasil ou não. A pesquisa foi feita pela Sociedade Nacional de Agricultura e as conclusões foram de que ele seria indesejável. Nas respostas negativas funcionava a mesma ideologia.

Vejamos os resultados:

Como vemos, os resultados desta pesquisa já demonstram a cristalização de um processamento de rejeição absoluta ao negro por parte dos grupos que necessitavam de nova mão-de-obra. Essa cristalização bem esclarece como a ideologia do branqueamento penetrou profundamente na sociedade brasileira. Ela já tinha precedentes e teve continuadores. Este continuum discriminatório, que se iniciou com as Ordenações do Reino e prosseguiu nos representantes das classes dominantes até hoje, como veremos adiante. O que desejamos centrar aqui é o movimento chamado imigrantista de pensadores e políticos que antecederam a Abolição e que depois estabeleceram os mecanismos seletivos ideológicos, econômicos e institucionais, para a entrada do imigrante trabalhador.

Como acentua muito bem Thomas E. Skidmore:

Desde que a miscigenação funcionasse no sentido de promover o objetivo almejado, o gene branco “devia ser” mais forte. Ademais, durante o período alto do pensamento racial — 1880 a 1920 — a ideologia do “branqueamento” ganhou foros de legitimidade cientifica, de vez que as teorias racistas passaram a ser interpretadas pelos brasileiros como confirmação das suas ideias de que a raça superior — a branca — , acabaria por prevalecer no processo de amalgamação.15

E é justamente neste período de pique do pensamento racista apontado por Skidmore (1880 a 1920) que há a expansão violenta da economia cafeeira. Isto é, o dinamismo da agricultura procurava suprir-se da mão-de-obra de que necessitava nos grandes espaços pioneiros que se abriam e para isto o branco superior era escolhido e o “mascarvo nacional” (Afrânio Peixoto) descartado como inferior. Esta passagem do escravismo para o capitalismo dependente em tão curto período na região do Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente nesse último Estado, explica em grande parte os níveis de marginalização em que se encontra a população negra e não-branca em geral atualmente.

Antes da Abolição os imigrantistas apresentavam projetos para que os europeus fossem trazidos como mão-de-obra capaz de sincronizar- se com o surto de progresso da região.

Desta dupla realidade (a expansão econômica da área cafeeira e a formação racista das elites brasileiras) podemos ver que o que aconteceu não foi simplesmente uma ocupação de espaços de trabalho vazios por um imigrante que os vinha ocupar, mas sim a troca de um tipo de trabalhador por outro que era marginalizado antes de haver um plano de sua integração na nova fase de expansão. A ideologia racista atuou como mecanismo que, se não determinou, influiu de forma quase absoluta nesse processo. Remanipulam-se dois estereótipos de barragem contra a integração do negro no mercado de trabalho.

Um refere-se ao seu passado: como escravo era dócil. Outro ao seu presente: a sua ociosidade. Por outro lado, o imigrante não criaria mais problemas nesse processo de transição, pois já estava disciplinado. No seu devido tempo mostraremos que os fatos não corroboram esses estereótipos. O que aconteceu foi unia visão apriorística de que a grande massa não apenas egressa da senzala em 1888, mas aqueles que já compunham um contigente de mão-de-obra não aproveitada que antecede à Abolição, deveriam ser marginalizados para se colocar, no seu lugar, um trabalhador de acordo com a nova dinâmica da economia.

Ao que se saiba nenhum político, partido ou órgão do governo apresentou planos concretos e significativos e investiu neles no sentido de fixar e aproveitar essa mão-de-obra. Pelo contrário, todos os investimentos foram para o trabalhador estrangeiro. Com isto se afirmava antecipadamente que a mão-de-obra flutuante não prestava.

Criou-se a visão de que o trabalhador europeu se integrou porque era superior e o nacional, negro, não-branco de um modo geral, era incapaz para se integrar. Deste estereótipo não escapa inclusive um economista do porte de Celso Furtado. Escreve ele:

Seria de esperar, portanto, que ao proclamar-se esta, (a Abolição) ocorresse uma grande migração de mão-de-obra em direção das novas regiões em rápida expansão, as quais podiam pagar salários substancialmente mais altos. Sem embargo, é exatamente por essa época que tem início a formação da grande corrente migratória europeia para São Paulo. As vantagens que apresentava o trabalhador europeu com respeito ao ex-escravo são demasiado óbvias para insistir sobre elas.16

Em seguida, Celso Furtado apresenta as razões da superioridade do europeu sobre a massa trabalhadora nacional:

Quase não possuindo hábitos de vida familiar, a ideia de acumulação de riqueza lhe é praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas “necessidades”. Sendo o trabalho para o escravo uma maldição e o ócio o bem inalcançável, a elevação do seu salário acima de suas necessidades — que estão definidas pelo nível de subsistência pelo escravo — determina de imediato uma forte preferência pelo ócio.(…) Podendo satisfazer seus gastos de subsistência com dois ou três dias de trabalho por semana, ao antigo escravo parecia mais atrativo “comprar” o ócio que seguir trabalhando quando já tinha o suficiente “para viver”. Dessa forma, uma das consequências diretas da Abolição, nas regiões em mais rápido desenvolvimento, foi reduzir-se o grau de utilização da força de trabalho.(…) Cabe tão-somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a Abolição, retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento económico do país.17

Pelo pensamento de Celso Furtado, a culpa da segregação (marginalização) dos ex-escravos (e aqui está embutida a imagem dos negros e não-brancos) e componentes da massa de mão-de-obra nacional que foi transformada em excedente, foi decorrência do seu atraso mental, fato que conduziu ao entorpecimento da economia do país.

Para ele não havia saída a não ser aquela que se apresentou porque correspondia à necessidade de colocar-se um trabalhador mentalmente superior em face da ociosidade do negro, do mestiço, finalmente de todos aqueles que se encontravam sem ser integrados economicamente nessa fase de transição. Como prova disto é o fato de termos sempre, nesse processo de expansão, a participação do imigrante europeu. Seus hábitos afeitos à instituição familiar regular e outros de comportamento civilizados entravam como fatores que explicavam, de maneira aparentemente objetiva, a vantagem do trabalhador estrangeiro substituir o negro, ex-escravo e o não-branco em particular.18

Quando se quer fazer uma relação entre a necessidade da mão-de-obra e a imigração apresenta-se, como justificativa ou explicação, o número relativamente pequeno de escravos que foram libertados pela lei de 13 de maio (mais ou menos setecentos mil) e a grande expansão da economia cafeeira que necessitava de um número muito maior de trabalhadores nessa expansão econômica. Isto é artificial, argumento que não se deve considerar. Com isto apagar-se-ia artificialmente do mapa demográfico nacional e do seu potencial de trabalho a grande parcela disponível de mão-de-obra que antecedia à Abolição. Em 1882 tínhamos nas províncias de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio de Janeiro para 1 443 170 trabalhadores livres e 656 540 escravos uma massa de desocupados de 2 822 583. Essa era a realidade no processo de decomposição do sistema escravista: tínhamos, portanto, uma população trabalhadora sem ocupação maior do que o total de imigrantes que chegaram ao Brasil de 1851 a 1900.

Mas tudo isto era posto de lado, sob a alegação do “ócio” nacional.19 Vejamos como esses imigrantes chegaram:

Podemos reparar pelos dados acima, que há uma relação entre o processo de decomposição do sistema escravista e o ritmo de entrada de imigrantes europeus. Isto é: à medida que se tomam medidas para tirar o escravo do processo de trabalho estimula-se o mecanismo importador de imigrantes brancos. Inicialmente, com a proibição do tráfico, depois com a Lei do Ventre Livre. Com o movimento abolicionista o processo se amplia. À medida que segmentos escravos, por várias razões, eram afastados do sistema de produção, entrava, em contrapartida, uma população branca livre para substituí-los. Não é por acaso que logo depois da proclamação da República cria-se a Lei da Vadiagem para agir como elemento de repressão e controle social contra essa grande franja marginalizada de negros e não-brancos em geral.

No Rio de Janeiro essa seleção étnica feita pela classe empregadora em detrimento do trabalhador não-branco também se verifica. Em 1890, na indústria manufatureira, para 69,8% de brancos ocupados, o percentual negro era de 8,9% e mestiço 19,7%. Os chamados caboclos contribuíam apenas com 1,6% da mão-de-obra. Como vemos, esse continuum seletivo se mantém constante, desestruturando social e economicamente a população não-branca em geral que é colocada como massa marginalizada do modelo de capitalismo dependente.

Analisando esta época, o historiador José Jorge Siqueira afirma que:

Entre 1872 e 1900 a tendência foi de alta acelerada do crescimento populacional. Contribuíram para isto a inversão do fenômeno migratório cidade-campo, devido à fuga em massa do escravo negro aproveitando-se da crise que seria a derradeira do sistema escravista; o alto índice de crescimento natural da população (segundo o Censo de 1890, a variável que mais incrementa a estatística demográfica); e, por último a intensificação da migração europeia (principalmente de portugueses, no caso do Rio). Em 1906, o Rio de Janeiro era a única cidade brasileira com mais de 500 mil habitantes, vindo a seguir São Paulo e Salvador com pouco mais de 200 mil.20

No entanto, segundo o mesmo autor, nesse período:

para 822 empresários de manufatura dos diversos ramos industriais, temos 18 090 trabalhadores assalariados de alguma especialização técnica. Como a manufatura urbana no Rio de Janeiro contou também com o uso de trabalhadores escravos, lado a lado com os livres e assalariados, temos que aqueles representavam, neste ano, 13% do total da força de trabalho ocupada em atividades industriais. Havia, na cidade, 46. 804 escravos empregados em atividades diversas, malgrado o vultoso número de alforrias e o grau de desmantelamento do sistema.21

Por trás da ideologia de rejeição do trabalhador nacional, como veremos oportunamente, estavam os grandes investimentos feitos para trazer-se o imigrante europeu. Não se podia considerar inferior um artigo no qual se havia investido um capital considerável. Menezes Cortes, por isto, apresenta como um dos elementos das forças de atração para a vinda do imigrante europeu certas vantagens que lhes eram oferecidas:

É sabida a influência do conhecimento das possibilidades de emprego certo; sejam elas informadas por parentes, por amigos, ou mesmo através de agências de propaganda, não só nos países interessados na imigração, como também das empresas comerciais e transportes ferroviários e, principalmente, marítimo, as quais auferem lucros per capita dos transportados.22

Como vemos, já havia um processo de investimento capitalista nos mecanismos dinâmicos da política migratória. Onde isto não aconteceu o ex-escravo se integrou, embora em uma economia de miséria, mas de qualquer forma não foi marginalizado como no Sudeste, especialmente em São Paulo. Manoel Correia de Andrade afirma, por isto, ao descrever a situação do ex-escravo na região Nordeste:

Mas o que ocorreu em consequência da mesma (Abolição) na região canavieira do Nordeste? Aí já não existiam terras devolutas, de forma expressiva, para nelas se alojarem os ex-escravos e estes, libertos, não tiveram outra alternativa senão a de venderem a sua força de trabalho aos engenhos existentes. Os abolicionistas mais consequentes admitiam que a Abolição devia ser acompanhada de medidas que levassem à distribuição de terras devolutas com os libertos, a fim de que se transformassem em pequenos proprietários. Os conservadores, que assumiram o comando da campanha abolicionista na ocasião que compreenderam que a Abolição era um ato a se consumar, trataram de conceder a liberdade sem conceder terras, de vez que, conservando o monopólio da propriedade da terra teriam a mão-de-obra assalariada barata, face à inexistência, para o escravo, de uma opção que não fosse venda de sua força de trabalho aos antigos senhores. Assim, na região açucareira nordestina, com a Abolição, os escravos fizeram grandes fastas comemorativas e, em seguida, abandonaram, sem recursos, as terras dos seus senhores, saindo à procura de trabalho nas terras dos senhores de outros escravos. Houve, em consequência, uma redistribuição dos antigos cativos pelos vários engenhos e usinas, fazendo com que eles trocassem de senhores e passassem a viver com o magro salário que passaram a receber. O sistema utilizado, desde o começo do século, para os trabalhadores livres, foi aplicado aos escravos libertos, sendo os mesmos gradativamente absorvidos na massa da população pobre.23

Correia de Andrade coloca muito bem o problema e mostra como na região na qual não houve interesse do capitalismo mercantil no sentido de administrar a passagem do escravismo para o trabalho livre, o ex-escravo não demonstrou possuir aquele ócio sugerido por Celso Furtado. A falta de investimento, de capital, que objetivasse a substituição da mão-de-obra possibilitou a integração do ex-escravo.

Mas, como já havíamos escrito em outro local, o fato de não haver o negro das zonas de agricultura decadente se marginalizado na mesma proporção do paulista, não significa que ele tenha conseguido, ao integrar-se socialmente, padrões econômicos e culturais mais elevados do que os alcançados por aqueles que foram marginalizados em São Paulo. Eles conseguiram integrar-se em uma economia de miséria, com índices de crescimento e diferenciação baixíssimos, quase inexistentes.

Por estas razões os próprios indicadores para a formulação do conceito de marginalidade devem ser regionalizados, levando-se em conta essas diferenças, sem o que cairemos, inevitavelmente, em uma visão desfocada e impressionista do problema com as subsequentes interpretações formalistas e imprecisas.

Onde não houve possibilidade de se investir para substituí-los por outro tipo de trabalhador o negro foi integrado na economia, mas, por outro lado, naquelas áreas prósperas que tinham condições de investir na substituição da mão-de-obra, ele foi marginalizado. Aliás uma coisa decorria da outra: as áreas decadentes não tinham possibilidade de procurar outro tipo de trabalhador pela sua própria decadência. As áreas que decolavam puderam dar-se ao luxo de jogar nas franjas marginais toda uma população de trabalhadores, para substituí-los por outra que viria branquear o Brasil e satisfazer aos interesses daqueles que investiram no projeto migratório.

5. Entrega de mercadoria que não podia ser devolvida

Convencionou-se, dentro desta visão apriorística, que o trabalhador importado era superior ao nacional. Interesses convergentes, ideológicos (o branqueamento) e econômicos (os interesses dos investidores na empresa migrantista) determinaram que, ao invés de se fazerem planos experimentais para o aproveitamento dessa massa de mão-de-obra sobrante, estabeleceu-se como definitiva a sua inferioridade. Desta forma, ficou a visão de que a substituição foi feita sem choques de adaptação do colono com as condições de trabalho, clima, alimentação e comportamento político. A qualidade do imigrante não era tão uniformemente superior como se propala. Eles foram impostos muitas vezes sob restrição inclusive dos fazendeiros. No que tange à população italiana, especialmente do Sul, as suas condições sociais e culturais não eram aquelas de superioridade comumente apresentadas. Percorrendo uma região italiana nos começos do século XX o arqueólogo francês Gaston Boisier assim descreve a população camponesa italiana:

Aqui (em Óstia), os imigrantes são todos lavradores que vêm semear suas terras e fazer a colheita. À tardinha, amontoam-se em cabanas feitas de velhas tábuas, com tetos de colmo. Visitei uma delas, estreita e comprida, que parecia um corredor. Não tinha janelas e só recebia luz das portas colocadas nas duas extremidades. O arranjo era dos mais simples. No meio, as marmitas onde se fazia sopa; dos dois lados em compartimentos sombrios, homens, mulheres e crianças deitavam-se misturados, em montes de palha que nunca se renovaram. Mal entramos na cabana e um cheiro fétido se apodera de nós e nos provoca náuseas; o visitante, que não está acostumado a essa obscuridade nada pode perceber; só ouve o gemido dos maláricos que a febre prende ao leito de palha e que lhe estendem a mão pedindo esmola. Nunca imaginei que um ser humano pudesse viver em tais alforjas. 24

Completando o quadro escreve José Arthur Rios:

Nessa emigração, a instituição mais importante era a família. Na família a criança recebia as tradições do grupo e seus severos padrões de comportamento. As meninas aprendiam a temer o homem, a zelar pela honra e a ajudar no trabalho agrícola. O filho mais velho aprendia a profissão paterna e o árduo ofício de chefe de família. O homem era o senhor incontestado. A autoridade se transmitia do avô ao pai e deste ao filho mais velho, sempre na linha masculina. Às mulheres cabia o trabalho e a submissão. O concubinato era frequente no Sul, talvez, segundo sugere Foerster, resíduo da ocupação sarracena. O analfabetismo e a falta de instrução aí predominavam, embora fizessem sentir seus efeitos no Norte. Juntos concorriam a dar à tradição seu papel de árbitro supremo. Só a superstição lhes fazia concorrência, agravada por uma religiosidade primitiva.25

Sobre os métodos de cultivo da terra afirma o mesmo autor:

Os métodos de cultivo remontavam, em sua maioria, ao Império Romano.O arado era primitivo, combinado, às vezes, com a zappa, espécie de enxada. O adubo praticamente desconhecido, o que forçava os camponeses a deixar porções de terra em pousio se não quisessem vê-las rapidamente esgotadas. As sementes eram mal escolhidas. Os cascos de bois faziam a debulha das espigas e o vento separava o joio do trigo. 26

Como vemos essa superioridade técnica tão apregoada não é confirmada pelos fatos. Daí a frustração inicial de inúmeros fazendeiros na experiência que fizeram com esses imigrantes. Daí o ceticismo de Fernando Torres, presidente da província imigrantes. Daí o ceticismo de Fernando Torres,-presidente da província de São Paulo, o qual afirmava no seu relatório de 1859:

… o certo é que o desânimo e arrefecimento que em geral têm se manifestado os nossos fazendeiros pela colonização, prova que os colonos ultimamente vindos da Europa têm sido mais pesados que lucrativos aos mesmos fazendeiros, pois que só assim pode-se explicar a preferência que têm dado a despender somas enormes com a aquisição de escravos, comprados por preços que lhes absorvem anos de renda.27

Para ele, ao contrário do que afirmou Celso Furtado, esses imigrantes eram “homens que, por já ociosos” e por não encontrarem ocupação nos seus países de origem aceitam “por isso a emigrar na primeira oportunidade que isso ofereça”.28

Segundo Paula Beiguelman, – no mesmo Relatório que comunica a presidência da Província pelo Ministério dos negócios do Império de que iam chegar 800 colonos vindos por conta da Associação Colonizadora, e oferecendo-se o governo imperial a distribuí-los aos fazendeiros interessados, pagando a passagem da Corte a Santos, e dada publicidade a esse oferecimento fora quase nula a receptividade encontrada.29

Não houve aquele automatismo de aceitação decorrente da superioridade óbvia do imigrante.30 O que pretendia essa substituição do trabalhador nacional pelo alienígena era satisfazer uma teia de interesses que se conjugavam dentro de uma visão capitalista dessa transação, com capitais em jogo e interesses ideológicos e políticos que se completam. O governo imperial investe no imigrante porque ele não era mais um simples trabalhador, mas uma peça importante nos mecanismos que dipamizavam — via interesses de uma burguesia mercantil ativa e ávida de lucros — essa substituição. Pelo decreto imperial de 8 de agosto de 1871 (ano da Lei do Ventre Livre) foi autorizada a fundação da Associação Auxiliadora de Colonização e Imigração. Seu presidente era significativamente Francisco da Silva Prado e o seu capital podia ser aumentado em qualquer tempo. Os governos geral e provincial, por seu turno, poderiam injetar auxílios pecuniários à associação, os quais serviriam para pagar as passagens dos imigrantes.31

Nessa conjuntura, como afirma Paula Beiguelman: “Estimulados por esses auxílios governamentais, vários fazendeiros se interessaram pelo emprego do trabalho do imigrante”.32

As elites dominantes, através de vários mecanismos protetores do imigrante e de medidas restritivas à compra interna de escravos, através do tráfico interprovincial, conseguiu, finalmente, que o imigrante fosse um trabalhador de aluguel mais barato do que a compra onerosa (por onerada) do escravo e neste universo de transação capitalista o fazendeiro do café aceita o imigrante.

E aquele trabalhador europeu que inicialmente era considerado ocioso por representantes da lavoura passa a ser considerado o modelo de poupança, perseverança, organização e disciplina no trabalho.

O problema era, como se vê, impor o imigrante que correspondia aos interesses de uma camada que surgia nas entranhas do escravismo e tinha os seus objetivos voltados para os lucros da transação que se fazia com o imigrante. O Barão de Pati afirmava, mostrando a necessidade dessa alternância, que a abundância do escravo era um dos obstáculos ao desenvolvimento do trabalho livre. Daí a necessidade de se barrar a vinda da mão-de-obra escrava das zonas decadentes e se estimular e dinamizar a incorporação do imigrante ao trabalho nas fazendas de café. Na lavoura de café, o escravo assume o posto de trabalhador eficiente até ser substituído pelo imigrante.

Os representantes das províncias nordestinas decadentes sentem que elas estão ficando despovoadas. Até aí o interesse do proprietário das fazendas de café procurava o trabalhador escravo de outras regiões como ideal ou pelo menos o mais adaptado ao trabalho. Depois de 1870, os cafeicultores começam a aceitar a substituição. Em 80 o trabalho livre já se manifesta como a substituição ideal do trabalho escravo. Com uma ressalva: que esse trabalhador livre devia ser branco e o negro deveria transformar-se em marginal.

É exatamente esta gama de interesses do capitalismo mercantil que se desenvolve ainda nas entranhas do escravismo tardio através do processo migratório que determinou a dinâmica desse segundo tráfico não suficientemente estudado até hoje. Razões econômicas determinaram o sucesso da substituição de um tipo de trabalhador inferior por outro superior. Assim como a substituição do escravismo indígena foi justificada pela altivez do índio e a docilidade do negro, a foi também justificada pela incapacidade do ex-escravo (isto é, o negro e o não-branco nacional) realizar o trabalho no nível do europeu superior.

Os interesses em jogo na substituição do índio pelo negro nunca foram profundamente estudados. Diz a este respeito, com muita razão, Tancredo Alves:

Grande razão que tem sido geralmente esquecida, foi a pressão dos grupos interessados no tráfico de africanos no sentido de imporem-se no Brasil (como às demais colônias tropicais) os escravos negros fonte de polpudos lucros. O tráfico de africanos, ensina-nos, Marx desenvolveu-se na fase histórica da acumulação primitiva que precedeu ao surto do capitalismo industrial (séc. XVII a XVIII) como uma empresa tipicamente comercial, um fator a mais daquela acumulação. Tratava-se de uma empresa de certo modo autônoma que, se estava condicionada pelo seu mercado, em grande parte também o condicionava. O mercado era a agricultura de gêneros tropicais, que se desenvolveu a partir do século XVI como parte integrante do sistema colonial da fase do capitalismo manufatureiro, vale dizer como um outro fator da acumulação primitiva. Toda uma série de motivos ligados ao nível de desenvolvimento das forças produtivas, às condições geográficas, a certas condições ideológicas etc. (motivos que não será possível analisar aqui) ocasionaram essa ligação histórica entre a agricultura de gêneros tropicais e o tráfico de africanos, o fato é que onde vicejou a primeira verificou-se a penetração comercial do segundo; coisa fácil de comprovar-se no caso brasileiro: com exceção do surto minerador (há aí razões particulares), o fluxo de escravos negros correspondeu no Brasil — geográfica e historicamente — a vicissitudes da agricultura dos gêneros tropicais (o açúcar, o algodão, o café). Foram, portanto, esses interesses mercantis externos, ligados à agricultura colonial e ao tráfico de africanos, uma outra grande razão da predominância da escravidão negra no Brasil.33

Este mesmo processo de substituição de um trabalhador por outro verificou-se na passagem do escravismo tardio brasileiro em relação ao negro. As grandes firmas imigrantistas, grupos interessados”, nesse processo e especuladores em geral não viam evidentemente o imigrante como superior, mas o viam como um investimento que daria lucros a quem administrasse os mecanismos imigrantistas.34

Inicialmente a empresa Vergueiro & Cia. cobrava comissão dos fazendeiros para realizar a transação da vinda de imigrantes europeus. Essa comissão onerosa era repassada ao imigrante que tinha de pagá-la acrescida dos juros que o fazendeiro cobrava. Isto levava a que o imigrante dificilmente conseguisse resgatar as suas dívidas. Em 1867 um emissário do governo prussiano, H. Haupt, constatava que somente em circunstâncias excepcionais uma família de imigrantes poderia ressarcir as suas dívidas em tempo relativamente curto. Onze anos depois desta constatação há uma tentativa de se reabilitar o trabalhador nacional. No particular escreve Verena Stolcke:

No Congresso Agrícola de 1878, convocado pelo governo para avaliar o estado geral da agricultura, um grupo de fazendeiros se opôs à imigração em grande escala, como solução para o problema da mão-deobra, devido aos custos que ela acarretaria para eles ou para o país.

Ao invés disso, reivindicavam leis para combater a alegada aversão da população nacional ao trabalho. Buscavam meios de disciplinar os agregados e de obrigar os ingénuos ao trabalho, bem como disposições que reforçassem a lei de 1837 na regulamentação dos contratos de locação e serviços. Ao final, essa posição seria derrotada pelos fazendeiros que consideravam altamente problemático depender de ex-escravos após a Abolição ou da população nacional disponível, e que viam na imigração em massa subvencionada a única solução.35

O Estado assume financiar a imigração e em 1884 a Assembleia de São Paulo aprova medida através da qual eram concedidas passagens gratuitas aos imigrantes que se destinassem à agricultura.

A mesma autora desenvolve o seu raciocínio apresentando os seguintes fatos:

Após 1884, em vez de coagir os trabalhadores diretamente o Estado procurou obter mão-de-obra barata e disciplinada para as fazendas, inundando o mercado de trabalhadores com imigrantes subvencionados. Em 1886, o governo provincial havia encontrado uma forma eficaz de fornecer subsídio integral aos imigrantes e o resultado foi praticamente imediato. Em maio de 1887, entre 60 000 e 70 000 imigrantes, agora predominantemente italianos, já haviam sido assentados nos estabelecimentos de São Paulo. Essa cifra excede a estimativa de 50 000 escravos que estavam sendo empregados nas fazendas cafeeiras paulistas em 1885.36

Como vemos, havia grandes interesses na empresa imigrantista que procurava dinamizar esse fluxo migratório com o objetivo de estabelecer a continuidade e ampliação dos seus interesses que estavam subordinados à marginalização do trabalhador nacional e a sua substituição pelo trabalhador estrangeiro subsidiado. Este complexo mercantil que se criou em cima da importação do trabalhador europeu determinou a exclusão do negro e do trabalhador nacional de modo geral de uma integração como mão-de-obra capaz de dinamizar o surto de desenvolvimento económico que surgiu com o boom da economia cafeeira. Podemos ver como há toda uma política que se conjuga — do Estado e dos fazendeiros — no sentido de alegar falta de braços para a lavoura e apelar, sempre, para que essa crise de mão-de-obra fosse resolvida através do imigrante europeu. Na base das transações mercantis que eram operadas por esse complexo montado para importar o imigrante, estavam os lucros que vários segmentos da sociedade brasileira com isso conseguiam obter. Os próprios fazendeiros, ha primeira fase da imigração, cobravam juros aos seus trabalhadores europeus, muitas vezes escorchantes, fato que deu motivo a diversas formas de protesto do trabalhador importado.

Um levantamento de quanto lucraram os setores envolvidos e participantes desse comércio, no qual estavam interessados agentes europeus e nacionais, fazendeiros, funcionários do governo, empresas de imigração, e outros setores financiadores, poderá demonstrar por que surgiu a ideologia da necessidade de importação em massa do trabalhador europeu. Ele, por seu lado, era também explorado.

Vindo com a expectativa de fixação à terra, direito à propriedade, proteção, assistência médica, fontes de financiamentos, como apregoavam os agentes nos países europeus — também remunerados para isto —, ao chegarem viam-se equiparados aos escravos das fazendas.

Daí muitos terem se revoltado. Não suportando as reais condições que lhes eram impostas a si e às suas famílias, com um regime de trabalho no qual a coerção extra-econômica funcionava como um componente das normas de trabalho, o imigrante reagiu muitas vezes. A revolta de Ibicaba, do senador Vergueiro, em 1850, é a mais conhecida mas não foi a única. Mas é significativa porque demonstra os mecanismos coatores que os fazendeiros usavam contra esses trabalhadores considerados superiores em relação aos nacionais.

Os fazendeiros usavam a alegação da falta da mão-de-obra em São Paulo para conseguirem novos trabalhadores importados e conseguirem um nível de salários baixos.

Neste particular, escreve ainda Verena Stolcke:

Mesmo depois da década de 1880, os fazendeiros regularmente se queixavam de que havia uma escassez de braços agrícolas em São Paulo. Existem, porém, várias indicações de que essas queixas eram recursos para pressionar pela continuidade da imigração em massa, e assim assegurar os baixos salários que os fazendeiros estavam dispostos a pagar. Por exemplo, as duas fontes alternativas de mão-de-obra, os libertos e os chamados trabalhadores nacionais, nunca foram utilizados de nenhuma forma substancial até a Primeira Guerra Mundial, quando a imigração europeia subvencionada se tornou impraticável. Ambos os grupos foram em larga medida ignorados pelos fazendeiros, mesmo nas épocas de suposta escassez de mão-de-obra.37

É óbvio pelo exposto que havia um mecanismo de barragem permanente contra o ex-escravo, o negro, e de forma mais abrangente, contra o trabalhador nacional. Enquanto se marginalizava este, dinamizava-se, através de várias formas, o segundo tráfico na medida em que ele era interessante e lucrativo para as classes dominantes.

Como podemos ver, não se tratou de uma crise de mão-de-obra, como até hoje se propala, mas da substituição de um tipo de trabalhador por outro, o isolamento de uma massa populacional disponível e a colocação, no seu lugar, daquele trabalhador que vinha subvencionado, abrindo margens e possibilidades de lucros para diversos segmentos das elites delíberantes.

Em 1871 é criada a Associação Auxiliadora da Colonização e Antônio Prado tornou-se o seu vice-presidente, tendo o seu pai conseguido, através da associação, a importação de dez famílias alemãs para suas fazendas. Em abril de 1886 Martinico Prado anunciou a fundação da Sociedade Promotora da Imigração. Essa entidade reuniu-se no mesmo ano a convite do Barão (depois Conde) de Parnaíba.

Este propõe que a associação fosse o único contato junto ao governo provincial, do qual era vice-presidente e posteriormente presidente.

Depois foi vice-presidente da entidade, e Martinico Prado, seu presidente. Convém acrescentar que o Barão de Parnaíba era primo dos Prado e estava interessado vivamente no desenvolvimento migratório.Essa sociedade funcionará até 1895, quando a política migratória passa a ser função do Estado. No período de funcionamento a Associação Promotora importou 126 415 trabalhadores.

Em todo esse processo os casos de nepotismo e corrupção eram inevitáveis. No particular, escreve um biógrafo da família Prado:

Talvez acusações mais sérias que a do favoritismo regional e do excessivo gradualismo na questão da escravatura fossem aquelas da conspiração pessoal de Antônio com o fim de canalizar fundos governamentais para seu irmão. Em maio de 1889, o jornalista liberal Rui Barbosa acusou Antônio de emprestar 300 contos de fundos públicos para Martinico, presidente da Sociedade Promotora, para que ele subsidiasse a imigração, em violação a uma lei que dispunha que tal pagamento poderia ser feito apenas depois de recebidas as provas de que os imigrantes estivessem realmente estabelecidos nas fazendas. O ataque de Rui Barbosa insinuava que a renúncia de Antônio ao Ministério da Agricultura estava ligada a este “parentismo administrativo”! Antônio evidentemente não respondeu às acusações, nem delas resultou qualquer ação legal. Tinha frequentemente gueixas contra a inércia governamental em encarar problemas cruciais ç parece ter tido pouco respeito pelas sutilezas legais envolvidas. É possível que, ao ordenar o pagamento ao presidente da Sociedade, que aconteceu ser seu irmão, Antônio tenha sentido que estava aderindo à lei, já que pagamento direto aos fazendeiros não era efetuado. De qualquer maneira, o incidente mostra um lado sombrio do familismo usado para facilitar a imigração em São Paulo. Tendo observado muito anteriormente, na progressista Inglaterra, que tudo era feito pela iniciativa privada, Antônio aparentemente acreditou que, quando a livre empresa precisasse de apoio financeiro, o governo deveria ser um sócio à sua disposição.38

Não foi por acaso que a denúncia de corrupção (apesar da discreta defesa que o biógrafo da família fez) tenha surgido de um político nordestino. O Nordeste estava em decadência e via como se manipulavam as verbas para a importação do imigrante, em detrimento do amparo ao trabalhador nacional. As oligarquias se beneficiaram enormemente com o segundo tráfico, não apenas diretamente, mas também beneficiando segmentos mercantis, comerciais e usurários que tinham na importação do imigrante uma fonte de renda permanente.

Já houve quem escrevesse a história dos magnatas do tráfico negreiro. 39 Falta quem escreva, agora, a história da vinda do imigrante europeu, a barragem que se fez contra o ex-escravo, o negro, o não-branco de um modo geral e os mecanismos que beneficiaram economicamente aqueles que estavam engajados nessa operação: a história do segundo tráfico.

Acompanhando esses mecanismos que dinamizavam a estratégia da importação de imigrantes e as suas compensações monetárias, projetava-se a ideologia da rejeição do negro. Em São Paulo, onde o processo migratório subsidiado foi considerado a solução para a substituição do trabalho escravo, os políticos representativos dos fazendeiros do café desenvolveram um pensamento contra o negro, não apenas mais como ex-escravo, mas como negro, membro de raça inferior, incapaz de se adaptar ao processo civilizatório que se desenvolvia a partir do fim do escravismo. Em 1882, ao se falar na vinda de negros para São Paulo, o deputado Raphael Correia exclamaria indignado que era necessário “arredar de nós esta peste, que vem aumentar a peste que já aqui existe”. Adicionava à condição de praga a “ociosidade inevitável dos negros”.

Esta constante’ do pensamento das elites políticas e econômicas penetrou profundamente o ideário de vastas camadas da nossa população e da nossa intelectualidade, conforme vimos no pensamento de Celso Furtado. Sobre isto escreve Célia Maria Marinho de Azevedo:

Atualmente pode-se constatar a permanência desta ideia — a vagabundagem do negro — transformada em tema historiográfico, destituído porém da argumentação racista do imigrantismo. Ao contrário convencionou-se explicar a “recusa” do negro em trabalhar devido ao “fator herança da escravidão” ou “traumatismo” do escravo, pois para ele a liberdade seria o contrário do trabalho. Assim o negro teria se marginalizado devido à sua incapacidade para o trabalho livre, o que se explica hoje por ter sido ele escravo, e não mais por ter “sangue africano”. Por sua vez, esta transmutação da representação imigrantista racista — negro vagabundo, em tema histórico — ex-escravo vagabundo, deve ser entendida dentro do contexto suscitado pelo mito da democracia racial, mito engendrado em meados da década de 30, porém alimentado pela imagem já mencionada acima, de um país escravista sem preconceitos raciais.40

A ideologia racista é substituída por razões sociológicas que no fundo as justificam, pois transferem para o negro, através do conceito de um suposto traumatismo da escravidão, as causas que determinaram a sua marginalização atual.

6. Das Ordenações do Reino à atualidade: O negro discriminado

Como vimos nas páginas precedentes, a inferiorização do negro no nível de renda, no mercado de trabalho, na posição social e na educação são incontestáveis. Mas, como já dissemos também, essa situação deve-se, fundamentalmente, aos mecanismos de barragem que desde o Brasil-Colônia foram montados para colocá-lo em espaços sociais restritos e controláveis pelas classes dominantes.

Muitos desses mecanismos foram instituídos ainda na Metrópole e objetivavam colocar o negro escravo na sua condição de semovente.

O Código Filipino, também conhecido como Ordenações do Reino, de 1607, mandado recopilar por Filipe II da Espanha e promulgado pelo seu filho Filipe III era taxativo no particular. Esse código foi estendido ao Brasil pela própria Assembleia Constituinte de 1823 e vigorou até a Abolição. No Título XVII do Livro IV lê-se o seguinte:

Qualquer pessoa que comprar algum escravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-se dele, o poderá enjeitar a quem lhe vendeu, provando que já era doente em seu poder de tal enfermidade, contanto que cite ao vendedor dentro de seis meses do dia que o escravo lhe for entregue.

No item 3 lê-se ainda:

Se o escravo tiver cometido algum delito, pelo qual, sendo-lhe provado, mereça pena de morte, e ainda não for livre por sentença, e o vendedor ao tempo da venda o não declarar, poderá o comprador enjeitá-lo dentro de seis meses, contados da maneira que acima dissemos. E o mesmo será se o escravo tivesse tentado matar-se por si mesmo com aborrecimento da vida, e sabendo-o o vendedor, o não declarasse.

Finalmente para o aspecto que nos interessa:

Se o vendedor afirmar, que o escravo, que vende, sabe alguma arte, ou tem alguma habilidade boa, assim como pintar, esgrimir, ou que é cozinheiro, e isto não somente pelo louvor, mas pelo vender por tal, e depois se achar que não sabia a tal arte, ou não tinha a tal habilidade, poderá o comprador enjeitá-lo; porém para que o não possa enjeitar, bastará que o escravo saiba da dita arte, ou tenha a tal habilidade meãmente. E não se requer ser consumado nela.

Por essas normas que regulavam a situação do negro escravo em Portugal, e, por extensão dos nossos primeiros constituintes, também no Brasil, a situação do negro era praticamente a de um animal. Não havia diferença entre o tratamento que se dava a uma besta e o que se dispensava a um negro escravo. Mas essa legislação repressora, escravista e despótica por isto mesmo, era aceita como normal e cristã, contanto que os escravos, no momento certo, fossem batizados pelos seus senhores. Aliás o mesmo código regula este detalhe e mostra como os senhores deviam batizar os seus escravos até seis meses “sob pena de os perder para quem os demandar”. Era, também, o início do sincretismo exposto, como já vimos. As leis e alvarás se sucedem contra o escravo negro durante todo o transcurso da escravidão.

Em Sergipe, no ano de 1838 o seu governador baixa o decreto n. 13, de 20 de março, no qual se lê que são proibidos de frequentar as escolas públicas:

§1 — Todas as pessoas que padeçam de moléstias contagiosas;

§2 — Os Africanos, quer livres quer libertos.42

Evidentemente quando o legislador colocou africanos quis referir-se aos negros em geral, pois uma coisa estava imbricada na outra. Desta forma barravam-se as possibilidades educacionais do negro da mesma forma que se impedia o ingresso de leprosos, tuberculosos ou portadores de outras doenças do gênero. Se nas Ordenações do Reino o negro era equiparado às bestas, no decreto de 1838 ele era colocado no mesmo nível daqueles que deviam ser afastados do convívio social por transmitirem doenças contagiosas.

Outras vezes, quando não se podia mais alegar que os africanos e os negros em geral eram iguais aos leprosos, apelava-se para aquilo que se convencionou chamar de um temperamento diferente do negro, o qual geraria um comportamento divergente e instável, razão pela qual ele devia ser impedido de frequentar certas escolas ou instituições de cunho cultural e/ou religioso. Prova disto foi o comportamento da direção da Congregação dos Missionários da Sagrada Família de Crato, no Ceará, em 1958.

Num prospecto publicado procurando despertar vocações sacerdotais dizia o documento que, entre outras condições para ingresso no seminário, o candidato devia ser de cor clara. Como vemos, cento e vinte e um anos depois do decreto que vedava aos negros ingresso nas escolas públicas de Sergipe, um Seminário, no Ceará, alegando outros pretextos, porém por idênticas razões, barrava o negro de seguir a carreira sacerdotal. O escritor Orlando Huguenin, estranhando os termos do documento, escreveu ao Padre Superior da Venerável Congregação dos Missionários da Sagrada Família sobre a veracidade do documento e quais as razões, em sendo autêntico, do procedimento da congregação em relação aos negros. Obteve a seguinte resposta:

Referente à solicitação de V. S. no que concerne o item 4 das Condições de Admissão, a respeito da cor dos candidatos, venho responder- Ihe que determinamos este ponto baseado em experiências adquiridas há vários anos. Sempre notamos que a tais vocações é necessário dispensar uma vigilância de todo especial e, mesmo assim, quase sempre aberram e não conseguem dominar as suas inclinações, de modo que ou são dispensados, ou eles mesmos desistem com o tempo das suas aspirações. Parece que a permanente convivência com os rapazes de outra cor que, em geral, estão na maioria, os desnorteia e os faz esquecer o ideal que inicialmente abraçaram. Creio que um ambiente de alunos de qualidades corporais iguais daria muito mais resultado.43

Como podemos ver há um continuum de medidas que se sucedem como estratégia de imobilismo das classes dominantes brancas contra a população negra em particular e a não-branca de um modo geral. Essa estratégia racista se evidenciará em vários momentos, exatamente quando há possibilidades de, através de táticas não-institucionais, os negros conseguirem abrir espaços nessa estratégia discriminatória.

Este continuum, porém, é visto por grande parte dos estudiosos da nossa história social como casos excepcionais e não-característicos das nossas relações interétnicas. As medidas de controle social, sem analisarmos, por enquanto, o que foi no Parlamento a discussão dos racistas brasileiros contra a entrada de imigrantes não brancos, são uma permanente atitude das elites brancas. Em 1945, parodiando o governador de Sergipe em 1838, Getúlio Vargas, estabelecendo normas para a política de imigração do Brasil, baixa decreto ordenando medidas no sentido de desenvolver na composição étnica do país as características mais convenientes de sua descendência europeia.

O problema que se apresentava era branquear o Brasil para que ele se civilizasse. Nas Forças Armadas o mesmo fato se verifica. Durante o Estado Novo vigorou uma norma discriminatória na Escola Preparatória de Cadetes de São Paulo, quando se proibia a entrada de negros, mulatos, judeus e filhos de operários. A norma foi baixada pelo então Ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra. Ela somente foi relaxada quando o Brasil entrou na guerra contra a Alemanha e, aí sim, os negros, mulatos, judeus e operários foram recrutados para irem morrer, da mesma forma como aconteceu na Guerra do Paraguai, quando os filhos dos senhores de engenho mandavam em seu lugar os escravos de seus pais.

Esta visão do negro como inferior leva a atitudes irracionais como a do Presidente da Federação das Associações Comerciais do Paraná, Carlos Alberto Pereira de Oliveira, que, em 1981 afirmava em conferência intitulada “A tese da doutrina do otimismo realista” que:

as causas principais da existência de alguns bolsões de pobreza no Brasil são de origem étnica e histórica. O Brasil foi colonizado por povos selvagens e o negro importado das colônias portuguesas da África. Esses povos, apesar da robustez física, eram povos primitivos, que viviam no estágio neolítico e por isso incapazes de se adaptarem a uma civilização moderna industrial. O negro mantido como escravo até fins do século XIX, analfabeto e destinado a trabalhos braçais, também não conseguiu integrar-se perfeitamente à civilização moderna. São esses povos — índios, negros, mulatos e caboclos — que constituem a grande massa de pobreza do Brasil, no campo e nas favelas.

E Concluía peremptório:

Imigrantes europeus, asiáticos, japoneses, oriundos de civilizações milenares que se dirigiram para as regiões litorâneas vivem muito bem no Brasil. É muito raro ver-se um descendente de japoneses, judeus, italianos, árabes ou alemães, em condições de miséria absoluta. Isto prova que as causas principais da pobreza no Brasil são de origem étnica, muito mais do que possíveis influências do meio físico, da má administração pública ou da tão divulgada exploração do homem pelo homem, como pretendem os marxistas.44

Remetidas para a própria população negra as causas fundamentais do seu atraso social e cultural, político e existencial, resta apenas procurar branqueá-la cada vez mais para que o Brasil possa ser um país moderno, civilizado e participante do progresso mundial. A filosofia do branqueamento passa, assim, a funcionar. Todas as medidas que possam ser tomadas neste sentido são válidas. A filosofia do branqueamento não tem ética social.

Por esta razão, se em 1981, um empresário denunciava a doença, em 1982 um economista apresenta a terapêutica: esterilizar os negros e seus descendentes. Desta forma a “doença” (repare-se que em 1838 em Sergipe já se equiparava os negros aos portadores de doenças contagiosas) poderia ser eliminada do corpo social. O economista Benedito Pio da Silva, assessor do GAP do Banespa (São Paulo), apresentou trabalho intitulado “O Censo do Brasil e no Estado de São Paulo, suas curiosidades e preocupações”. Estabelecia ali a sua filosofia étnica segundo a qual era necessária uma campanha nacional visando o controle da natalidade dos negros, mulatos, cafuzos, mamelucos e índios, considerando que se mantida a atual tendência de crescimento populacional “no ano 2000 a população parda e negra será da ordem de 60% (do total de brasileiros), por conseguinte muito superior à branca. E eleitoralmente poderá mandar na política brasileira e dominar todos os postos-chave”. Isto foi visto como perigo social que deve ser combatido e eliminado como doença para se manter o equilíbrio social dentro dos valores brancos. A síndrome do medo contra as populações não-brancas que teve seu início no regime escravista, conforme veremos mais tarde, continua funcionando e estabelecendo níveis de comportamento patológico como o do economista citado. O mais sintomático é que esta tese racista foi aprovada por esse órgão de assessoramento do governo de São Paulo, na época dirigido pelo governador Paulo Salim Maluf. A tese da esterilização da população não-branca foi aprovada e cópias do seu texto distribuídas a todos os integrantes dos diversos GAPs.

Isto porém, não é caso inusitado. Os exemplos poderiam ser dados às dezenas. O certo é que, depois de quatrocentos anos de lavagem cerebral, o brasileiro médio tem um subconsciente racista. O preconceito de cor faz parte do seu cotidiano. Pesquisa realizada pelo jornal Folha de S. Paulo, em março de 1984, sobre o preconceito de cor, constatou que 73,6% dos paulistanos consideram o negro marginalizado no Brasil e 60,9% dizem conhecer pessoas e instituições que discriminam o negro. Devemos salientar, como elemento de reflexão na interpretação desses dados, que é notável a tendência de se reconhecer mais facilmente a existência da discriminação racial nos outros do que em si mesmo. Como vimos, 73,6% consideram o negro marginalizado no Brasil. A proporção caiu para 60,9% quando se trata de reconhecer a existência de discriminação em seu próprio círculo de relações. E apenas 24,1% revelaram alguma forma de preconceito pessoal. Como sempre, o problema nevrálgico é quando se pergunta se aceitaria um negro como membro da família. Foi a pergunta sobre a possibilidade de ter um negro como genro ou cunhado, muito mais do que como chefe de serviço ou como representante político, que suscitou a maior média (24,1%) de respostas francamente preconceituosas, reveladoras do racismo do brasileiro.

Toda essa realidade discriminatória, preconceituosa e repressiva é escamoteada deliberadamente. Seria fastidioso aqui repetir os pronunciamentos de todas as autoridades que proclamam a nossa democracia racial e praticam a discriminação. Em 1969, segundo documento coligido por Thales de Azevedo, citado por Abdias do Nascimento, podemos ler:

O Globo, Rio, 12-2-69: “Portela vê Imprensa a Serviço da Discriminação Racial para Conturbar” — Publicando telegrama procedente de Brasília, o jornal informa que o General Jaime Portela, em exposição de motivos ao Presidente da República, sugerindo a criação da Comissão Geral de Inquérito Policial Militar, datada de 10-2-69, refere-se a conclusões do Conselho de Segurança Nacional sobre ações subversivas e afirma: “No contexto das atividades desenvolvidas pelos esquerdistas, ressaltamos as seguintes (item 9) — Campanha conduzida através da imprensa e da televisão em ligação com órgãos estrangeiros de imprensa e de estudos internacionais sobre discriminação racial, visando criar novas áreas de atritos e insatisfação com o regime e as autoridades constituídas”.45

Esse mesmo governo neofascista dizia, através do seu presidente Ernesto Geisel, ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, em 21-3-1977, quando se comemorava o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial:

O Brasil é o produto da mais ampla experiência de integração racial que conhece o mundo moderno, resultado, ao longo dos séculos, de um processo harmônico e autônomo, inspirado nas raízes profundas dos povos que aqui somaram esforços na construção do País.

E concluía:

Compartilham os brasileiros da convicção de que os direitos da pessoa humana são desrespeitados nas sociedades onde conotações de ordem racial determinam o grau de respeito com que devem ser observadas as liberalidades e garantias individuais.46

Esta é a retórica oficial. No entanto, esse mesmo presidente, em março de 1975, escorraçava do Palácio do Planalto uma comissão de negros paulistas que para lá foram convidá-lo a participar das festas de 13 de Maio que seriam realizadas na Capital de São Paulo. A alegação foi a de que não tínhamos mais negros no Brasil, mas sim cidadãos brasileiros. Chamou-os de divisionistas e impai riotas c mandou que a comissão se retirasse. 47

Mas, ao comemorar-se o sesquicentenário da imigração alemã no Rio Grande do Sul Geisel não apenas compareceu aos festejos, mas elogiou publicamente o esforço dos alemães no progresso da nação brasileira.

Em outras palavras: ele pode ser teuto-brasileiro, mas os negros não podem ser afro-brasileiros. A historicidade étnica e cultural fica, assim, através dessa estratégia inibidora e intimadora, reservada ao imigrante branco.

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