O Post de hoje, reúne os autores que identificam em Fanon os subsídios para presença do colonialismo na produção de conhecimento e, sobretudo, como empreender saberes descolonizados.
O primeiro texto, de Nádia Maria Cardoso da Silva apresenta o conceito de “Descolonização epistemológica”.
Segundo afirma, o seu interesse no texto foi “apresentar Fanon como um intelectual afro-diaspórico fundamental para entendermos a sociedades contemporâneas estruturadas pelo colonialismo e de importância singular e marcante para entendermos o fenômeno do colonialismo epistemológico e sua contribuição para o racismo. Mas além disso, quis também apresentar Fanon como um intelectual que exercitou a produção de conhecimento descolonizado, desafiando assim a hegemonia do conhecimento eurocentrado. ”
O segundo texto, de Nelson Maldonado-Torres busca, a partir de Fanon e Quijano, examinar a articulação entre raça e espaço na obra de vários pensadores europeus. Centrando-se no projecto de Martin Heidegger de procurar no Ocidente as raízes, denuncia a cumplicidade desse projecto com uma visão cartográfica impe- rial que cria e separa as cidades dos deuses e as cidades dos danados. O autor identifica concepções análogas noutros pensadores ocidentais, sobretudo em Levinas, Negri, Zizec, Habermas e Derrida. Ao projecto da busca das raízes, com os seus pressupostos racistas, ele opõe uma visão crítica, inspirada em Fanon, que sublinha o carácter constitutivo da colonialidade e da danação para o projecto da modernidade europeia. O autor conclui com um apelo a uma diversalidade radical e uma geopolítica do conhecimento descolonial.
O Texto de hoje é o mais famoso do que lido Os Condenados da Terra, escrito por Fanon em 1961. O livro, cercado de curiosidades e polêmicas, é comentado por diversos pensadores em todo o mundo. O título original do livro, Les damnés de la terre, foi inspirado na primeira estrofe de L’INTERNATIONALE, hino do movimento comunista internacional:
Debout! l’âme du prolétaire
(De pé! ó alma do proletário)
Travailleurs, groupons-nous enfin.
(Trabalhadores, agrupemo-nos finalmente)
Debout! les damnés de la terre!
(Levante-se! os miseráveis da terra!)
Debout! les forçats de la faim!
(Levante-se! condenados de fome!)
Pour vaincre la misère et l’ombre
(Para superar a pobreza e a sombra)
Foule esclave, debout ! debout!
(Multidão de escravos, de pé! de pé!)
C’est nous le droit, c’est nous le nombre:
(Este é o nosso direito, o nosso número)
Nous qui n’étions rien, soyons tout
(Nós, que não eram nada, sejamos tudo)
Mas para ele, diferentemente do que propunha o movimento comunista francês, a aposta para a superação radical da situação colonial não estaria no proletariado (industrial) – quase ausente nas colônias, e quando presente, na maioria das vezes, comprometido com a manutenção da ordem colonial. Os Damnés, de que ele fala e apostou todas as cartas – estes que na sociedade colonial não eram nada – deveriam ser encontrados entre àqueles que realmente não tinham nada a perder – “a não ser os seus grilhões”.
De pé ó vítimas da fome
Fanon sempre foi um ser humano intenso: com 25 anos já havia escrito Pele negra, máscaras brancas e com 29 havia se tornado chefe do hospital psiquiatra em Blida, Argélia. Agora, aos 36, já se encontrava entre os principais articuladores do pan-africanismo internacional junto à Frente de Libertação da Argélia.
Em dezembro de 1960, depois de circular por várias partes do continente africano fomentando a necessidade de expandir as Guerras de Libertação, Fanon inicia a escrita de um livro que problematizaria a relação entre revolução argelina e outros povos do Continente. No entanto, para a sua surpresa e no auge de sua atuação política, é diagnosticado é com leucemia – uma doença maligna nos glóbulos brancos – , e constata, mediante aos estágios da medicina na época, que lhe restava pouco tempo de vida.
Diante do fato de que seu corpo definhava, optou por alterar o curso da escrita que empreendia, direcionando-a para o que, sabidamente, seria o seu último texto. É neste contexto, lutando contra o próprio relógio biológico. que ele escreverá em questão de meses o famoso Os Condenados da terra. Enquanto escrevia o livro e revisava os trechos, chegou a voar para Itália a fim de encontrar Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, para encomendar a Sartre o Prefácio do seu livro.
Trágico é que até hoje, se considerarmos a presença incontestável do racismo na sociedade contemporânea, que o Prefácio de Sartre – embora tenha contribuído para popularizar o texto no contexto internacional – tenha se tornado mais famoso que o próprio livro. No prefácio, Sartre, inteligentemente, destaca a violência, objetivando, chamar a atenção dos europeus para a sua hipocrisia e culpa diante de todo sofrimento vivido fora da Europa.
Entretanto, lamentavelmente, muitos críticos importantes das Ciências Sociais destilaram duras críticas à Fanon, sem ter, contudo, avançado na leitura para além das páginas escritas por Sartre. Ocorre que o livro é muito mais complexo do que o Prefácio pretendeu ser, e a leitura que não o tome por completo está fadada à uma apreensão pobre e até distorcida.
O livro trata, entre outros assuntos, dos conflitos implícitos ao colonialismo e à luta anticolonial. Alerta que a violência é parte fundante da sociedade colonial, estando presente em todas as suas expressões materiais e simbólicas. Constata ainda que a superação da lógica colonial só seria viável naquelas situações em que os colonizados empreendessem força material proporcionalmente capaz de abalas as forças sociais a ponto de fazer surgir um homem novo:
A descolonização se propõe a mudar a ordem do mundo, é, como se vê, um programa de desordem abosoluta(…)é um processo histórico: isto é, ela só pode ser compreendida, só tem inteligibilidade, só se torna translúcida para si mesma na exata medida em que discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas, que têm precisamente a sua origem nessa espécie de substancialização que a situação colonial excreta e alimenta. (…) a descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual ela se liberta. (Fanon)
Em um diálogo constante com os movimentos internacionais ligados ao panafricanismo e ao terceiro-mundismo, Frantz Fanon alerta que mesmo na África, o processo de revolução nacional não podem ignorar as especificidades de entificação da capitalismo, a composição das diferentes de classes sociais e seus interesses. Os países coloniais seriam economicamente atrasados e subdesenvolvidos a partir da relação histórica com suas metrópoles sanguessugas.
Esta realidade relegaria às colônias uma produção de bens primários voltados à exportação; uma classe operária insipiente; um campesinato pauperizado e analfabeto e uma burguesia local subordinada à interesses externos. Estas burguesias, forjadas no processo colonial, mesmo quando apoiem a independência, tendem a trair sua “vocação” de classe – como se assistiu nos séculos anteriores na Europa – e não assumirem a frente do processo produtivo de forma a acumular o excedente de produção no próprio país. Abrindo brecha, assim, ao neocolonialismo.
No capítulo III “Desventuras da consciência nacional” Fanon antecipa que a superação do colonialismo não depende apenas da eleição de lideres africanos, mas sim, da reorganização das relações de produção, orientada para e com o povo. Do contrário, todo o esforço dos movimentos de libertação se veriam afogados no neocolonialismo:
Essa burguesia que se afasta cada vez mais do povo em geral nem consegue arrancar do Ocidente concessões espetaculares: investimentos interessantes para a economia do país, instalações de certas indústrias. Em contrapartida, as fábricas de montagem se multiplicam, consagrando assim o tipo neocolonialista no qual se debate a economia nacional. Assim, não se deve dizer que a burguesia nacional retarda a evolução do país, que lhe faz perder tempo ou que ele pode conduzir a nação para caminhos sem saída. Efetivamente, a fase burguesa na história dos países subdesenvolvidos é uma fase inútil. Quando essa casta for suprimida, devorada por suas próprias contradições, nós percebemos que nada aconteceu depois da independência, que é preciso retomar tudo, partir outra vez do zero. A reconversão não será operada no nível das estruturas instaladas pela burguesia durante o seu reino, pois essa casta não fez outra coisa senão tomar, sem mudança, a herança da economia, de pensamento e das instituições coloniais .(FANON).
Em seu diálogo com o Movimento de Negritude, afirma que essa perspectiva é “a antítese afetiva, senão lógica, desse insulto que o homem branco fazia á humanidade”. E completa: “Essa negritude lançada contra o desprezo do branco se revelou, em certos setores, como o único fator capaz de derrubar interdições e maldições”. No entanto, essa contraposição, historicamente necessária, levou o movimento a um impasse: “ à afirmação incondicional da cultura europeia sucedeu a afirmação incondicional da cultura africana” .
Entretanto, se o colonialismo definiu como essencialmente negro a emoção, o corpo, a virilidade, ludicidade, mas, sobretudo, classificou hierarquicamente estes elementos como inferiores, frente à não menos fetichizada (e ilusória) imagem criada para o Europeu – Razão, civilização, cultura, universalidade -, o movimento de negritude, sem romper com estes fetichismos, apenas inverteu os polos da hierarquia, passando a considerar como positivo àquilo que o colonialismo classificou como inferior.
Assim a inocência, musicalidade, o ritmo “nato” do africano, passam a ser afirmados pelos movimentos anti-racistas como elementos essencialmente africanos, mas agora, vistos como superiores e desejáveis frente à frieza tecnicista ocidental (SENGHOR, 1939). As “almas da gente negra”passam a ser classificadas como essências metafísicas, ou no mínimo históricas, que precisariam ser resgatas e afirmadas para que o negro se reencontre consigo próprio.
Para Fanon, está aí uma armadilha que o movimento de negritude – e talvez o conjunto do movimento negro contemporâneo – corria o risco de ficar preso. Esta “essência negra” que se busca “restaurar” ou “libertar”, é, para ele, uma invenção do racismo colonial a serviço da desumanização do africano e aceitá-la, portanto, implicaria na não rejeição dos pressupostos que sustentam o colonialismo.
Para ele, os seres humanos são o que fazem e como fazem, e por isso, a prioridade na preservação ou resgate cultural corre o risco de inverter a ordem de prioridade do mundo, tomando o secundário como primário, na medida em que valoriza o produto em detrimento do produtor. Esta postura antropologicizadora, inicialmente legítima, poderia segundo Fanon levar os movimentos anti-racistas a alguns impasses perigosos, tais como: “meter todos os negros no mesmo saco”; buscar por um passado glorioso em detrimento de uma realidade objetivamente desumanizadora; valorizar acriticamente e de forma apaixonada a“tudo que for africano” (ou aquilo que se convencionou nomear como africano) e ao mesmo tempo,, negar de forma quase religiosa a tudo que for “ocidental”; aceitar o pressuposto racista de que a cultura negra é estática e fechada, portanto morta.
Para Fanon seria necessário ir além da – e não se limitar à – afirmação das especificidades culturais (historicamente negadas). Para ele, não é a cultura que deve resistir mas sim as pessoas que a produzem, a partir de seus referenciais simbólicos sempre em transformação. É certo que o colonialismo nega ao colonizado a possibilidade de entificação de uma cultura autêntica, e por isto, a emancipação cultural, passaria pela emancipação das pessoas que produzem e se produzem a partir dela. É o colonialismo em seu ato negador e reificador que atribui uma ausência de movimento histórico à cultura colonizada, engessando-a em catálogos antropológicos, vendo-as e tratando-as como elementos mortos…
Agir pelo resgate de uma pretensa cultura passada, originalmente negada é secundarizar a emancipação dos indivíduos produtores da cultura. É o combate pelo fim mim material, cultural e epistêmico do colonialismo – e Fanon não nega a importância da afirmação cultural neste processo – que pode promover o surgimento de uma cultura autêntica. Ao invés de se lançar apaixonadamente sobre uma cultura engessada pelo colonialismo, “o dito combatente, o colonizado, depois de tentar perder-se no povo, com o povo, vai, ao contrário, sacudir o povo. Ao invés de privilegiar a letargia do povo, ele se transforma em despertador do povo” (FANON, 2010:256).
Imagem: Militantes da Campanha Reaja ou será morto, Reaja ou será morta – Bahia – Br
O livro – que trás ainda uma análise sobre os impactos subjetivos da tortura e uma análise crítica a respeito dos limites do ódio para a luta política – foi recebido com amor e ódio em todas as partes do mundo. Dos movimentos terceiro-mundistas e a esquerda revolucionária nos países da América Latina aos intelectuais articuladores do IRA, ETA e a Revolução Aiatolá no Iran; das propostas de Amilcar Cabral e Sankara às reflexões e ações práticas de Ângela Davis e o movimento Black Power, oserva-se a influência explícita de Os condenados da Terra.
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Desiludido, e abalado com o definhamento do próprio corpo, Fanon cede à insistência de amigos e familiares para tentar um tratamento nos EUA. Ele já havia recusado essa possibilidade anteriormente, afirmando que não iria para um país de linchadores, mas agora, já debilitado, permite-se à uma úlitma tentatica. Ao sexto dia de dezembro de 1961, ainda com 36 anos – e algumas semans depois de ter recebido os primeiros exemplares de Os condenados da terra -, Frantz Omar Fanon morre em um quarto de hospital em Washington.
Há rumores não partilhados pela família de que a CIA – que se envolveu no traslado de Fanon aos Estados Unidos – teria contribuído para sua morte, mas essa desconfiança nunca foi comprovada. O fato é que, dalí em diante, o nome de Fanon seguiria vivo, alimentando a experança no futuro, em qualquer lugar que haja injustiça.
No dia 20 de julho Frantz Fanon completaria 90 anos. Em reverência à sua trajetória, mas também, interessados/as em discutir a atualidade da sua obra para o entendimento do racismo na sociedade contemporânea, o Grupo Kilombagem divulgará, até o dia que seria o seu aniversário, uma série de links com textos do (ou sobre) o autor.
O texto de hoje é Pele negra, máscaras brancas, publicado pela primeira vez em 1952, na França, quando Fanon tinha 27 anos.
Como se sabe, o texto foi escrito dois anos antes, como o nome “Ensaios sobre a alienação do negro”, para ser apresentado à banca de avaliação do curso de medicina psiquiátrica, em Lyon. Mas o seu orientador não aprovou manuscrito por destoar da abordagem positivista então vigente. Na época, eles exigiam uma psiquiatria que buscasse nas dimensões físico-biológicas a explicação para os fenômenos psíquicos.
Em resposta, como ainda é comum nas universidades em todo o mundo (colonizado), Fanon escreveu (empoças semanas) outra dissertação, agora intitulada Transtornos mentias e síndrome psiquiátricas em degeneração spino-cerebral-hereditária: Um caso de doença de Friedeirich com delírio de possessão (Lion, 1951). Apesar do título e do enquadramento do trabalho, Fanon seguiu defendendo a necessidade de conhecer o contexto social e a cultura dos pacientes, como forma de facilitar o tratamento.
Em Pele negra, máscaras brancas, (primeiro texto a ser abordado em nosso Curso,na casa Tainã, a partir do dia 20), encontramos um conjunto complexo de temas preocupados em entender a colonização, os seus impactos culturais e psíquicos sobre o colonizado (e também o colonizador), e os apontamentos esboçados pelo o autor para fazer face à esses problemas.
Quem ousar se entregar à leitura, se deparará com várias vozes em diálogo e conflito em busca incessante por pensar a si e o outro no mundo colonizado (como o nosso), pois, para ele, a solução só poderá ser encontrada se estivermos dispostos a descer aos verdadeiros infernos da existência humana, questionando inclusive, os limites, armadilhas (mas também possibilidades) implícitos à luta.
Por isso finaliza o livro dizendo:
Ao fim desse trabalho, gostaríamos que as pessoas sintam, como nós, a dimensão aberta da consciência.
Minha última prece:
Ô meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!