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Claudia Jones: Desconhecida Pan-Africanista, Feminista e Comunista

O Pan-africanismo de Claudia Jones conduziu à sua defesa para a libertação dos povos do Caribe e da África do colonialismo. | Foto: Wikimedia Commons
O Pan-africanismo de Claudia Jones conduziu à sua defesa para a libertação dos povos do Caribe e da África do colonialismo. | Foto: Wikimedia Commons

Traduzido por Rafaela Araujo Santana – Grupo Kilombagem

Por Ajamu Nangwaya

Jones utilizou o espaço organizacional do Partido Comunista para avançar na causa do antirracismo, na paz mundial, na descolonização e na luta de classes.

Claudia Jones foi uma revolucionária, cujo ativismo alcançou dois continentes, América do Norte e Europa. Claudia Vera Cumberbatch nasceu em 21 de fevereiro de 1915 em Belmont, Trinidad e Tobago, a terra que tem dado origem a importantes políticos, como C.L.R. James, Eric Williams, George Padmore e Kwame Ture (anteriormente Stokely Carmichael). Ela e sua família foram forçados a migrar para Nova York durante os anos 1922-24, como resultado da dificuldade econômica que eles experimentaram como membros da classe trabalhadora em Trinidad.

Ela adotou o sobrenome “Jones”, como uma medida de proteção na realização de seu trabalho organizado com o Partido Comunista dos EUA (CPUSA). Essa mudança de nome não foi um incomum dada a histeria anticomunista e perseguição dos comunistas nos Estados Unidos. Claudia faleceu na terra de seu exílio, na Grã-Bretanha, em 25 de dezembro de 1964. Curiosamente, o local final de descanso de Jones está localizado justamente a esquerda de Karl Marx, no cemitério de Highgate, em Londres.

Ela contribuiu para o trabalho do Partido Comunista dos Estados Unidos – CPUSA como jornalista, editora, líder, teórica, educadora e organizadora de 1936 até sua deportação em dezembro de 1955. Ela trabalhou com o jornal do partido Diário Trabalhador, serviu como a editora da Liga da Juventude Comunista (UJC), na Revisão Semanal, funcionava como a diretora estadual YCL da educação e presidente do estado, tornou-se um membro pleno da CPUSA em 1945, eleita para o Comitê Nacional do CPUSA em 1948, assumiu o papel de Secretária de Comissão da Mulher, CPUSA, e trabalhou em várias funções em outras publicações do partido. Claudia foi presa três vezes por causa de seu trabalho na CPUSA. Ela foi condenada sob a Lei Smith que visava os líderes do CPUSA e serviu oito meses na prisão.

O Professor Errol Henderson da Universidade Estadual da Pensilvânia captura a relevância política da Claudia:

“Ela foi brilhante e incisiva. Ela forneceu ao feminismo componente da análise marxista juntamente com a incisiva incorporação da “cultura negra” de Haywood, no qual ela apoiou e estendeu … uma mente excepcional … e sua deportação para os EUA foi uma grande perda para a luta de libertação aqui, mas como um complemento para o Reino Unido, onde ela fez ainda mais contribuições “.

Jones utilizou o espaço organizacional do Partido Comunista estadunidense para avançar na causa do antirracismo, na paz mundial, na descolonização e na luta de classes. Além disso, ela usou suas várias funções e recursos do partido comunista para avançar na libertação das mulheres em geral e das mulheres afro-americanos da classe trabalhadora, em particular.

É uma grande injustiça da história que o trabalho de Claudia Jones seja pouco conhecido entre os radicais que possam extrair ensinamentos da sua abordagem integrada para a eliminação do racismo, capitalismo, patriarcado e imperialismo. Em um período como nosso em que a política de identidade assume expressões vulgares, é fundamental para nós destacar a contribuição desta revolucionária cujo ativismo foi guiado por um anticapitalista, exigente anti-opressão e orientação política anti-imperialista.

O Professor Carole Boyce Davies, em seu livro “A esquerda de Karl Marx: A vida política da Comunista negra Claudia Jones,” oferece uma razão para a invisibilidade de Claudia:

“O estudo das mulheres negras comunistas permanece um dos mais negligenciados entre verificação contemporânea de mulheres negras para pelo menos, uma das razões que Joy James identifica: O revolucionário sob margem, mais do que qualquer outra forma o feminismo (negro). “Este tipo de negligência pela maioria das acadêmicas feministas não é surpreendente. A maioria destas pesquisadoras burguesas não são socialistas / comunistas e, como tal, não são atraídos para assuntos que estão associados com o comunismo.

A continua experiência de classe trabalhadora de Claudia e sua família na sociedade americana ajudou na formação da sua luta de classes, compromissos políticos feministas e antirracistas:

“Estava fora das minhas experiências de Jim Crow como uma jovem mulher negra, experiências igualmente nascido da pobreza da classe trabalhadora que me levou a juntar-se à União de Jovens Comunistas e escolher a filosofia da minha vida, a ciência do marxismo-leninismo – que a filosofia que não só rejeita ideias racistas, mas é a antítese deles. “

Como uma mulher africana da classe trabalhadora, a experiência vivida de Claudia lhe proporcionou um amplo entendimento do patriarcado. O exemplo mais claro de sua compreensão e análise da opressão das mulheres africanas está presente no artigo “Um fim à negligência dos Problemas da Mulher Negra! ”. Foi publicado em 1949. Muito antes do desenvolvimento da estrutura analítica interseccional na década de 1970 por feministas e lésbicas Afro-americanas como expresso na Declaração ColetivoRioCombahee, Jones já tinha essa abordagem para analisar as múltiplas formas de opressão que configura a vida das mulheres afro-americanas da classe trabalhadora.

A preocupação de Jones com a libertação das mulheres focava em mudanças nas condições econômicas, sociais e políticas desiguais e não a obsessão cultural psicológica encontrada dentro de círculos políticos de identidade vulgares atuais:

“Para o movimento das mulheres progressivas, a mulher negra, que combina em seu estatuto o trabalhador, o Negro, e a mulher, é o link vital para essa elevada consciência política. Na medida, além disso, que a causa da mulher negra trabalhadora é promovida, ela será habilitada para tomar seu lugar legítimo na liderança do proletariado negro do movimento de libertação nacional, e por sua participação ativa contribuem para toda a classe trabalhadora americana, cuja missão histórica é a conquista de uma América Socialista – a final e completa garantia da emancipação da mulher “.

O estado capitalista e corporações do Norte global explora os recursos e mão de obra e dominar as economias e sociedades no Sul global. De acordo com Davies em “A Esquerda de Karl Marx”, “política anti-imperialistas de Claudia ligada às lutas locais de pessoas negras e mulheres contra o racismo, e a opressão sexista às lutas internacionais contra o colonialismo e o imperialismo negros.” O Pan-africanismo de Claudia conduziu para sua defesa por liberdade dos povos do Caribe e da África do colonialismo.

Na Grã-Bretanha, dois das notáveis realizações de Claudia são a criação do Carnaval de Notting Hill e o Diário das Índias Ocidentais. Uma parte do epitáfio em sua lápide diz: “Valente lutadora contra o imperialismo e, o racismo que dedicou sua vida ao progresso do socialismo e a libertação do seu próprio povo negro.”

Deveria ter acrescentado: “defensora assertiva do feminismo socialista”.

Ajamu Nangwaya, PhD., é um educador, organizador e escritor. Ele é um organizador com a Rede para a Eliminação da Violência Policial

Artigo original disponível em: http://www.telesurtv.net/english/opinion/Claudia-Jones-Unknown-Pan-Africanist-Feminist-and-Communist–20160210-0020.html

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Nota Pública sobre Perseguições e Ameaças Contra Militantes do Comitê Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica de São Paulo.

“Os moradores dos morros, desde o fim da escravidão, criaram inúmeros grupos que se organizavam em vários níveis, objetivando fins diversos. Dentro da situação social concreta em que se encontrava, que era o da marginalidade, o negro do morro, favelado, tinha de organizar-se para que, dentro da situação que lhe impuseram, pudesse sobreviver e praticar uma série de atividades que o preservariam de um estado de anomia total.” Clovis Moura, in Sociologia do Negro Brasileiro

Tornamos público através desta, ameaças e perseguições sofridas nos últimos meses contra militantes que compõem o Comitê Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica de São Paulo, uma frente ampla de denúncia contra a violência do Estado dirigida a população negra pobre e periférica, composta por diversas organizações, movimentos populares e movimento negro. O aumento da violência contra a população preta, sobretudo no ano de 2012, onde mais de cinco mil pessoas foram mortas (executadas), é reflexo do projeto Genocida do Estado brasileiro, que historicamente condenou essa população. Sabemos que a repressão aos movimentos sociais e a seus militantes faz parte desse processo e é por isso que nós militantes que diariamente convivemos com a violência instaurada pelo Estado nas periferias, viemos tornar público ameaças e perseguições pelas quais alguns de nós estamos passando.

No dia 22 de agosto, realizamos em São Paulo a versão regional da Marcha Nacional Contra o Genocídio da População Negra, cujo foco foi denunciar o alto índice de mortes letais (genocídio) da juventude preta e se posicionar contra a militarização dos órgãos públicos da cidade como, por exemplo, a Câmara Municipal, que abriga parlamentares ligados ao universo militar. Durante a concentração do ato, em frente ao Teatro Municipal – região central da cidade, nos deparamos com vários policiais portando máquinas fotográficas e câmeras digitais, registrando imagens dos participantes. Notamos que a partir desta ocasião, alguns dos militantes do Comitê passaram a perceber ameaças. Na mesma noite do ato, um jovem negro que seguia sozinho para metrô (morador de periferia e integrante do movimento Hip- Hop) foi abordado por dois policiais após a dispersão da Marcha. Durante a abordagem policial, ele quase foi atropelado por uma viatura da guarnição.

Outro episódio aconteceu no mês de setembro, na Câmara Municipal de São Paulo, em que militantes do Comitê se posicionaram contra a entrega da homenagem “Salva de Prata”, à ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), criado durante a Ditadura Militar para reprimir a guerrilha urbana e mais tarde os cidadãos moradores das periferias.

Durante a sessão, um dos policiais presentes na Casa Legislativa anotou o número de telefone e o endereço residencial de um dos militantes em papel a parte e o guardou dentro do próprio bolso, sendo esse um procedimento inadequado, segundo alguns vereadores da casa.

Na última semana, mais uma família passou por uma assustadora violência: desta vez, foi uma tentativa de homicídio (não se sabe se a vítima foi confundida com outra pessoa). Entretanto, o que sabemos é que dois homens em uma moto seguiram e dispararam contra um carro guiado por um casal negro, atingindo o braço da mulher (mãe de um jovem negro de 15 anos). O referido casal é parente de um dos militantes do Comitê.

Recentemente três militantes ligados a organizações que compõem o Comitê foram alvos de racismo, sendo hostilizados, com ataques verbais e ameaças também vindas de agentes policiais.

Infelizmente tais fatos não são episódios isolados. Militantes ligados a movimentos sociais e sobretudo ao movimento negro em todo pais estão sofrendo diariamente com retaliações, perseguições, ameaças e atentados à vida, inclusive tendo suas casas invadidas pela polícia, sem mandado, no meio a madrugada – como ocorreu recentemente com um militante em Salvador.

Diante de tudo isso, percebemos a necessidade de expor e tornar público os fatos para que todos tenham conhecimento da covarde política de criminalização dos movimentos sociais, movimentos negros e seus militantes. Já encaminhamos denúncias formais aos departamentos competentes, seguiremos nossa prática de denúncia da violência e de cobrança do papel ao qual o próprio Estado, em nossa Carta Magna se reserva: a proteção e o bem estar dos cidadãos.

Comitê Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica
Apoiam: | Ação Comunitária | Adunesp (Sindicato dos Docentes da Unesp) – Seção Sindical Marília | Agentes de Pastoral Negros do Brasil – APNs | Amparar – Associação de Amigos e Familiares de Presos | Ana Karla Moreira Silva – Estudante de Serviço Social – PUC/SP | ANEL | Associação de Favelas de São José dos Campos | Associação de Mulheres Negras Acotirene | Blog – Sp Que Vc Não Vê|  Bruna Lasevicius Carreira – Estudante de Direito – FMU/SP | Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto| Carlos Latuff| CEDECA Interlagos | CEN – Coletivo de Entidades Negras | Centro de Memória do Grande ABC | Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada| COADE (Coletivo Advogados para a Democracia) | Coletivo Anarcafeminista Marãna | Coletivo de Mulheres Negras Louva Deusas| Coletivo Práxis| Comitê pela Desmilitarização | Comitê Popular da Copa SP | Comuna Aurora Negra | Coordenação Nacional de Estudantes de Psicologia – CONEP | CONEN | Escola de Governo | Federação Nacional dos Advogados| Fórum de Hip Hop MSP| Fórum Latino Americano de Combate a Discriminação Racial | Fórum Nacional 13 de Maio | Fórum Nacional de Mulheres Negras | Fórum Sindical dos Trabalhadores-SP | Frente da Feminista USP | Grupo de Mulheres Negras Nzinga Mbandi | Grupo Margens Clínicas| Grupo Tortura Nunca Mais – SP| Instituto Práxis de Direitos Humanos| Intersindical – SP | Juventude às Ruas | Juventude da CONEN| Kilombagem | Mães de Maio | Maçãs Podres | MAP-SP Movimento Anarcopunk de São Paulo | Movimento Terra Livre | Movimento Negro Unificado | MSP – Movimento Pela Saúde dos Povos – Brasil | Nucleo Anarco-Rap | Núcleo de Consciência Negra da USP | Pão e Rosas | Periferia Ativa | Profa Joana Aparecida Coutinho – UFMA | Profa. Laura Camargo Macruz Feuerwerker FSP/USP | Profa. Maria Fernanda| Prof. José Henrique Viégas Lemos – Biólogo da Rede Pública Municipal e Estadual de Educação | Prof. Milton Pinheiro – UNEB | Quilombo Raça e Classe | Quilombo Xis | Rede 2 de Outubro| Rede Lai Lai Apejo Soweto Organização Negra| TRIBUNAL POPULAR:O Estado Brasileiro no Banco dos Réus| UJS – SP | UNEafro-Brasil |

ADESÕES DE ASSINATURAS EM APOIO À NOTA FAVOR ENVIAR PARA: c.genocidiojppp@gmail.com

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Colonialismo, racismo e luta de classes: a atualidade de Frantz Fanon

Artigo publicado em  GEPAL – Grupo de Estudos da Política da América Latina – Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina  “Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro”  ISSN 2177-9503  10 a 13/09/2013 – GT 1. Lutas camponesas e indígenas na América Latina 216 (pp. 216-232).

Deivison Mendes Faustino (Deivison Nkosi) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFSCAR; Núcleo de pesquisa Afrikanidades (Grupo KILOMBAGEM)

Sdeivison@hotmail.com

Versão em pdf disponível em: http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/v16_deivison_GI.pdf

Resumo:

A presente comunicação apresenta a vida e obra de Frantz Fanon  enfatizando a atualidade de seu pensamento para pensar as relações entre racismo,  colonialismo e luta de classes. O autor seleciona algumas categorias discutidas por  Fanon, e as discute a luz de sua trajetória de vida, observando como o mesmo  respondeu às perguntas colocadas por seu tempo. Ao revisitar os escritos fanoninanos o autor identifica e problematiza as categorias: alienação colonial, narcisismo, sociogênese, luta de classes, práxis revolucionária, terceiro-mundismo, negritude, libertação nacional e emancipação. O autor encerra o texto questionando se ainda há espaço para Fanon na sociedade contemporânea, aproximando-se das concepções de Gibson (2007 e 2011), Wallerstein (2008), Rabaka (2011) ao concluir que a atualização do racismo sob a lógica das novas necessidades de acumulação capitalistas tornam os escritos de Fanon leitura obrigatória.

Palavras-chave: Frantz Fanon; Colonialismo; Racismo; Luta de classes.

Todas as vezes em que um homem fizer triunfar a dignidade do espírito, todas as vezes em que um homem disser não a qualquer tentativa de opressão do seu  semelhante, sinto-me solidário com seu ato.

Frantz Fanon

Introdução

Passados mais de cinquenta anos após a morte precoce de Frantz Fanon em 1961, quando tinha 36 anos, o pensamento do autor ainda é discutido por acadêmicos e ativistas políticos em diferentes línguas e regiões. Entretanto, essa presença no cenário atual é acompanhada por intensos debates sobre o que se considera como estatuto central de sua obra, e principalmente, quais categorias apresentadas por ele podem ser apropriadas como elementos relevantes para a compreensão da sociedade contemporânea (MBEMBE, 2011 e GORDON, SHARPLEY-WHITING E WHITE, 2000).

Os chamados estudos culturais ou pós-coloniais, embasados em uma perspectiva pós-estruturalista, têm retomado a leitura fanoniana a partir de uma leitura do colonialismo como “discurso” (ou paradigma) implícito à sociedade moderna, promotora de experiências racializadas. A contribuição central de Fanon, segundo esta corrente, seria a ruptura com uma noção essencialista de identidade (hegeliana) rumo a uma noção aberta aos jogos fluidos – como contraposição a ontológicos – da identificação (HALL, 1996 e 2009; APPIAH, 1997 e ÁLVARES, 2000).

Outra linha de estudos um pouco diversa desta anterior é uma corrente originalmente surgida na América Latina, autodenominada pensamiento decolonial. Esta vertente, também conhecida como proyecto decolonial ou proyecto de la modernidad/colonialidad, visualiza em Fanon a possibilidade de analisar o capitalismo (Sistema-Mundo) contemporâneo a partir de uma “perspectiva do Sul”. Pautadas em uma crítica ao pós−modernismo e o pós−estruturalismo, pelo que atribuem ser uma demasiada vinculação desses estudos à “matrizes de poder colonial”, esta corrente difere dos Estudos Pós-Coloniais ao divergir da ideia de superação do colonialismo que o termo “Pós” atribui.

Além disso, identifica nos estudos pós-coloniais uma subestimação dos aspectos econômicos da realidade social, em detrimento das dimensões culturais e subjetivas. Propõe nesse sentido, a noção de Heterarquia – relação entre as várias esferas sem uma atribuição prévia de hierarquia – entre economia, cultura, subjetividade e política (DUSSEL, 1977; MINGOLO 2000; MALDONADO-TORRES, 2005 e QUIJANO 1991, 1998, 2000).

Já entre os autores classificados como marxistas também é possível observar apreensões diversas em relação ao que se considera atual no pensamento fanoniano. Em Zizek (2011) a problematização fanoniana da dialética do senhor e do escravo, elaborada por Hegel é retomada em contraposição a uma abordagem multiculturalista para enfatizar uma perspectiva humanista que recoloque o debate sobre a relação entre indivíduo e generalidade humana, na medida em que o individuo se veja e se coloque na disputa pela definição do universal.

Para Gibson, a atualidade de Fanon estaria na ferramentas conceituais que oferece para compreender a renitência da violência colonial na sociedade contemporânea. As manifestações indígenas contra a privatização da água da Bolívia; o os conflitos na palestina e os acontecimentos em torno da chamada Primavera Árabe; as massivas manifestações em Atenas; Chipre e Espanha bem como a persistência da barreira de cor na África do Sul pós-apartheid seriam segundo ele elementos que colocam as preocupações de Fanon na ordem do dia. (GIBSON, 2007 e 2011)

Já Rabaka visualiza no que ele classifica como fanonismo revolucionário, a possibilidade de atualizar o marxismo a partir da abordagem as relações contemporâneas entre capitalismo e colonialismo. A constante subestimação do racismo – “narcisismo obsceno – pela esquerda convencional e a dificuldade desta em elaborar projetos políticos condizentes com as particularidades históricas e culturais dos povos colonizados devem ser enfrentados pela esquerda marxista conforme propõe, segundo ele a dialética Sankofiana de Fanon rumo a a libertação do ser a um nível mais elevado da vida humana (RABAKA, 2011).

Em Wallestain, Fanon é apropriado para discutir vários assuntos atuais, mas em um artigo intitulado Ler Fanon no século XXI, destaca-se a ideia de que a atualidade de Fanon está, para além de apontar o caráter intrinsicamente violento do colonialismo e os impactos dessa violência na subjetividade dos povos colonizados, está no questionamento às lutas identitárias como caminho emancipador quando estas não se dirigem à perspectiva da emancipação humana. A luta de classes é uma realidade que não se restringe ao universo europeu e deve ser observada em suas particularidades históricas, no contexto colonial (Wallestain, 2008).

Em estreita relação com esse debate, mas, sobretudo, visando à compreensão das categorias fanonianas à luz de seu contexto sócio-histórico, pretende-se apresentar alguns temas discutidos pelo autor  relacionando-os à sua trajetória.

“Nossos pais, os Gauleses”

Frantz Omar Fanon nasceu em Julho em 20 de julho de 1925, no seio de uma família de classe média em Forte de France, Martinica, região francesa no Caribe. A Martinica ainda hoje é considerada um departamento ultramarino insular francês, e os seus habitantes – a grande maioria composta por negros que se sentem franceses – aprendiam nas escolas assimiladas, frequentadas por Fanon, que os “pais de sua Pátria” eram os Gauleses. Em 1944, quando a França estava invadida pela Alemanha nazista, Fanon alistou-se no exercito francês para lutar contra a invasão, mas lá no front de guerra, junto aos franceses brancos nascidos na metrópole, percebeu que a sua cor o impedia de ser visto como igual pelos seus “compatriotas”. Por mais que pensava, sentia ou desejasse o contrário, em face do Branco era visto apenas como Preto:

Subjetivamente, intelectualmente, o antilhano se comporta como um branco. Ora, ele é um preto. E só o perceberá quando estiver na Europa; e quando por lá alguém falar de preto, ele saberá que está se referindo tanto a ele quanto ao senegalês. (FANON, 2008:132)

A percepção deste não-reconhecimento em face do branco francês exerceu grande influência em Fanon impactando os seus futuros escritos e prática política.

Em 1946 Fanon iniciou o seu curso de medicina em Lyon (França metropolitana) e neste período, participou de diversos seminários e debates universitários, onde entrou em contato com renomados pensadores discutidos na França nesta época como Sartre, Jaspers, Lacan, Marx, Hegel, Nietzsche entre outros. Em 1952, quando termina o seu curso, Fanon escreve a primeira versão da sua tese doutorado em psiquiatria, mas esta foi rejeitada por confrontar as correntes positivistas então hegemônicas na área. Decepcionado, escreve então uma segunda tese que nomeou como: Transtornos mentais e síndromes psiquiátricas em degeneração espino-cerebelar-hereditária. Um caso de doença de Friedereich com delírio de possessão[1]. Depois de intensos e acalorados debates com a banca examinadora, seu trabalho foi aprovado, e ele enfim, pôde exercer sua profissão.

Após doutorar-se, conhece François Tosquelles (1912-1994)[2] e segue para Saint Alban para estudar e trabalhar com ele, tornando-se seu aprendiz e amigo:

Durante dois anos, Fanon trabalhou em estreita relação com Tosquelles e publicou três trabalhos de investigação diretamente com o professor e outros tantos com outro discípulo. Os programas de reforma médica que (Fanon) introduzi(rá futuramente) nos hospitais em Blida, Argélia, e de Manuba, na Tunísia, foram o resultado de sua educação em Saint Alban (GUEISMAR, 1972:64).

Neste mesmo ano, Fanon publicou uma série de ensaios sobre a situação do negro na França e escreveu um drama sobre os trabalhadores de Lyon (FANON, 1950). Os estudos de Tosquelles marcaram profundamente a concepção de Fanon sobre a profissão psiquiátrica, e luta política como estratégia para superar as alienações psíquicas provocadas pelo colonialismo.

Neste momento, já avisado pelas circunstâncias históricas de que os “seus pais, os Gauleses” não o reconhecia como filho legítimo, o jovem antilhano inicia a revisão do texto de sua primeira tese, outrora rejeitada no doutorado, para discutir as alienações psíquicas vividas pelo negro.

A alienação colonial

A revisão de sua tese rejeitada dará origem ao célebre Peau noire, masques blancs:[3] livro que marcaria a história dos estudos sobre o racismo ao ser retomado por autores ingleses na década de 80 na chamada virada pós-colonial[4].

Neste livro Fanon apropria-se dos clássicos da psicologia, filosofia, sociologia e mesmo da literatura, buscando, nas relações sociais a explicação para alienações psíquicas. Vale ressaltar que a alienação para Fanon não se resumia, como ocorre no senso comum, a uma falta de conhecimento sobre algo ou sobre si, mas sim, a uma perda de si ou da capacidade – implicada em situações sociais concretas – se autodeterminar como indivíduo ou grupo social, subordinado ao colonialismo.

E possível cogitar neste ponto que a proximidade de Fanon com Hegel seja maior do que se presume. Num artigo intitulado o reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière, Theresa Calvet de Magalhães (2009) explica que para Hegel, diferentemente do que fazem supor algumas traduções latinas de Fenomenologia do Espírito, a Auto-consciência (Selbstbewusstsein) não pode ser resumida a um conhecimento subjetivo de si ou de determinada realidade. A alienação seria perda – objetiva – de si, da capacidade de estar em pé por si, ou se autodeterminar.

Essa perspectiva abre caminho no pensamento fanoniano para relacionar os complexos coloniais – enquanto efeitos psíquicos da situação colonial – com a estruturação da sociedade, de modo que sua superação depende não apenas de uma revisão paradigmática, mas antes de qualquer coisa da transformação radical da sociedade:

Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século XIX, Freud, através da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é só uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. De certo modo, para responder à exigência de Leconte e Damey, digamos que o que pretendemos aqui é estabelecer um sócio-diagnóstico.

Qual o prognóstico?

A Sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa a influência humana. É pelo homem que a sociedade chega ao ser. O prognóstico está nas mãos daqueles que quiserem sacudir as raízes contaminadas do edifício (FANON, 2008:28)

Neste livro Fanon avisa que a alienação colonial, como forma específica de exploração capitalista, marca indiscutivelmente a configuração da sociedade moderna fazendo com que brancos (colonizadores) e negros (colonizados), vivenciem cada qual a seu modo, a negação de sua humanidade. A criação e racialização do Outro, bem como o estranhamento daí resultante, retiram do colonizado a possibilidade de ser visto (e, consequentemente, de se ver) como expressão universal do gênero humano.

É o colonialismo que cria (inventa) o Homem Negro, extraindo-lhe a possibilidade de reconhecer-se simplesmente como Humano:

“Olhe, um preto!” Era um stimulus externo, me futucando quando eu passava. Eu esboçava um sorriso.

“Olhe, um preto!” É verdade, eu me divertia.

“Olhe, um preto!” O círculo fechava-se pouco a pouco. Eu me divertia abertamente.

“Mamãe, olhe o preto, estou com medo!” Medo! Medo! E começavam a me temer. Quis gargalhar até sufocar, mas isso tornou-se impossível.

Eu não aguentava mais, já sabia que existiam lendas, histórias, a história e, sobretudo, a historicidade que Jaspers havia me ensinado.

Então o esquema corporal, atacado em vários pontos, desmoronou, cedendo lugar a um esquema epidérmico racial. No movimento, não se tratava mais de um conhecimento de meu corpo na terceira pessoa, mas em tripla pessoa. Ia ao encontro do outro… e o outro, evanescente, hostil mas não opaco, transparente, ausente, desaparecia. A náusea… (FANON, 2008: 105)

O colonizado, negado em sua humanidade genérica, é reduzido ao estatuto de Negro, entendido como o Outro: o específico, sempre contraposto ao Europeu afirmado como expressão do ser humano universal. É possível pensar em música indígena, cabelo afro, cosmovisão africana, cultura negra, mas nunca em música branca, cultura branca. O branco, a cultura branca, ou ocidental, ganham status de universalidade e não precisam ser especificadas. Uma pessoa considerada culta é alguém que domina a “norma culta”: a saber, alguém que detém os conhecimentos referentes à cultura europeia, sejam eles estéticos, filosóficos ou teóricos.

Esta reificação colonial mistifica o europeu, tomando-o como símbolo universal do humano, e aprisiona o colonizado naqueles referenciais fetichizados que se criaram para o Negro, esperando sempre deste que seja emotivo, sensual, viril, lúdico, colorido, infantil, banal… O mais próximo possível da natureza e distante da civilização. Quando não é exótico, ou inexistente em relação àquilo que se entende por Humano, o negro é apresentado apenas como expressão de tudo o que é ruim.

Estas imagens, alerta Fanon em um artigo publicado em 1956 (FANON, 1969), são criadas no seio da situação colonial, e tinham a função de desarticular os sistemas de referência do povo colonizado para que suas “linhas de força” não atuassem contra a imposição de uma forma específica de relação de produção, útil a determinadas fases de acumulação capitalista.

Como médico psiquiatra, Fanon não deixa de enfatizar que a reificação colonial tem efeitos devastadores na subjetividade do negro provocando-lhe impasses que lhe ocasionam um “desmoronamento do ego”:

(…) o negro vive uma ambigüidade extraordinariamente neurótica. Com vinte anos, isto é, no momento em que o inconsciente coletivo é mais ou menos perdido, ou pelo menos difícil de ser mantido no nível consciente, o antilhano percebe que vive no erro. Por quê? Apenas porque, e isso é muito importante, o antilhano se reconheceu como preto, mas, por uma derrapagem ética, percebeu (inconsciente coletivo) que era preto apenas na medida em que era ruim, indolente, malvado, instintivo. Tudo o que se opunha a esse modo de ser preto, era branco. Deve-se ver nisso a origem da negrofobia do antilhano. No inconsciente coletivo, negro = feio, pecado, trevas, imoral. Dito de outra maneira: preto é aquele que é imoral. Se, na minha vida, me comporto como um homem moral, não sou preto. Daí se origina o hábito de se dizer na Martinica, do branco que não presta, que ele tem uma alma de preto. A cor não é nada, nem mesmo a vejo, só reconheço uma coisa, a pureza da minha consciência e a brancura da minha alma. (P.162)

Por outro lado, avisa Fanon, que se o colonialismo reserva ao Negro um complexo de inferioridade, reserva ao Branco de igual maneira, um complexo de superioridade, fazendo com que, cada qual a partir de sua neurose, vivencie a alienação da sua humanidade. A subjetividade do Branco também é neuroticamente marcada pelo racismo, fazendo com que ele transfira ao Negro (ou Outro) àqueles tributos – considerados inferiores ou indesejáveis – próprios de todas as sociedades, mas que a sociedade ocidental quer negar em si própria.

É neste contexto que o Branco desenvolve uma fobia em relação ao negro. Este Outro amaldiçoado e inferiorizado assombra e atrai o imaginário racista com seus atributos –exatamente àqueles que o deixa de ver em si – exageradamente mistificados e animalizados. A sensualidade inata da mulata fogosa; o enorme pênis do negão comedor hiper-viril; a habilidade natural dos negros para atividades lúdicas, emotivas e corporais[5] em geral, assusta e atrai, justamente por corresponder àquilo que passou a faltar ao Branco, no processo de alienação colonial.

O branco está convencido de que o negro é um animal; se não for o comprimento do pênis, é a potência sexual que o impressiona. Ele tem necessidade de se defender deste “diferente”, isto é, de caracterizar o Outro. O Outro será o suporte de suas preocupações e de seus desejos. (FANON, 2008147)

O livro segue enigmaticamente poético até o final, suscitando mais dúvidas do que certezas[6], mas ao mesmo tempo, deixa precisas sobre sua propositura. Se o colonialismo ou a alienação colonial não podem ser resumidos a um estado mental, e mesmo a subjetividade individual só é inteligível no contexto social em que emerge… a desalienação só seria possível mediante a superação das condições sociais alienadoras: veremos que uma outra solução é possível. Ela implica uma reestruturação do mundo.” (FANON, 2008:82)

Termina o livro – depois de afirmar a necessidade de um novo humanismo amparado na defesa de uma sociedade em que não haja mais exploração do homem pelo homem – com uma frase provocadora: “ó meu corpo faça sempre de mim um homem que questiona” (FANON, 2008:191)

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Em 1953, depois de trabalhar como Chef de service em um hospital psiquiátrico localizado em uma cidade pequena e chuvosa em Pontorson, no interior da França, Frantz Fanon se muda para Argélia para assumir a direção de um hospital psiquiátrico na cidade de Blida, a trinta milhas de distância da capital Argel. Segundo Alejandro Oto (2003) esta nova fase foi fundamental para Fanon compreender os impactos do colonialismo na estrutura psíquica humana, pois se depara com diversos pacientes franceses e argelinos com transtornos mentais provocados pela violência vivida na luta anticolonial que se desenvolvia no país.

A presença centenária do colonialismo fazia-se sentir também na área da saúde. As pessoas vítimas de doenças psíquicas, segundo o conhecimento da época, eram isoladas e abandonadas em hospitais psiquiátricos, presas a camisas de força. No entanto, como era de se esperar em uma sociedade assumidamente colonial, o hospital era dividido em asilos diferenciados para franceses e Nativos. Frantz Fanon, inspirado nos ensinamentos de Toscquelles mudou radicalmente esta relação e introduziu reformas estruturais extraordinárias neste hospital. (GEISMAR, 1972:73)

Este lado profissional de Fanon ainda é pouco explorado pela literatura especializada, mas o insere, à inspiração de seu mentor, nos primórdios dos movimento de reforma psiquiátrica[7].

A práxis revolucionária

Em 1952, ao revisar o texto de Pele Negra, máscaras brancas para a publicação, Fanon escrevera a seguinte frase:

Não levamos a ingenuidade até o ponto de acreditar que os apelos à razão ou ao respeito pelo homem possam mudar a realidade. Para o preto que trabalha nas plantações de cana em Robert só há uma solução, a luta. E essa luta, ele a empreenderá e a conduzirá não após uma análise marxista ou idealista, mas porque, simplesmente, ele só poderá conceber sua existência através de um combate contra a exploração, a miséria e a fome. (p.185-6)

Posteriormente, já em sua estadia em Blida estas aspirações revolucionárias vão encontrar guarida na realidade concreta que se apresentou com o desenvolvimento da guerra de libertação (GIBSON, 2011). Com o desenvolvimento das lutas anticoloniais logo após a chegada de Fanon ao país e a intensa repressão que seguiu, a situação ficou bastante tensa, e se refletiu no hospital psiquiátrico, colocando Fanon em uma situação desconfortável. De um lado Fanon passava a atender, como diretor de um hospital público, os torturadores franceses que ficavam atordoados com o sofrimento que infringiam aos Nativos, e do outro, atendia as vítimas da tortura, e de forma clandestina e sigilosa, atendia também aos membros da Front de Liberation Nationale – FLN (GIBSON, 2011).

Há longos meses que a minha consciência é palco de debates imperdoáveis. E a conclusão que chego é a vontade de não desesperar (desésperér) do homem, isto é, de mim próprio. (FANON, 1980:59)

Em 1956 a situação de Fanon já estava politicamente insustentável e a polícia começou a vigiá-lo. Ele que já mantinha contatos com Randame Abane, líder cabila do FLN, provavelmente para não ser preso, se desliga oficialmente do hospital para aderir oficialmente à revolução. É neste momento que escreve uma carta pública ao Ministro Residente, uma espécie de representante administrativo do colonialismo Frances na Argélia, que remonta mais uma vez às suas origens tosquellianas:

A loucura é um dos meios que o homem tem de perder a sua liberdade. E posso dizer que, colocado nesta intersecção, medi com horror a amplitude da alienação dos habitantes deste país.

Se a psiquiatria é a técnica médica que se propõe permitir ao home deixar de ser estranho ao que o rodeia, devo afirmar que o Árabe, alienado permanentemente no seu país, vive num estado de despersonalização absoluta. (FANON, 1980:58)

Após de desligar do Hospital em Blida, Fanon muda clandestinamente com a família para a Tunísia, onde continua trabalho como psiquiatra, mas focará a sua atuação política nos esforços para o fim daquilo, que segundo ele na carta acima, seria a raiz do sofrimento psíquico da Argélia, o Colonialismo. Neste período Fanon se torna correspondente do principal instrumento de propaganda ideológica da FLN, o Jornal El Moudjahid[8].

Os anos seguintes foram marcados por intensa agitação política e participação em fóruns internacionais organizados pelos movimentos de libertação no continente africano. Neste momento Fanon se converte num revolucionário, militante clandestino da FLN, e seu representante internacional no diálogo com os demais países africanos. Em 1959 publica L’ an V de La Révolution Algérienne (O quinto ano da Revolução Argelina). Neste livro, também conhecido como Sociologia de uma revolução, Fanon faz uma descrição fantástica do processo de mobilização social em curso na Argélia.

Discute os dilemas e conflitos vividos em processo de libertação nacional. Afirma que o colonialismo, para ser economicamente viável necessitava negar todos os elementos culturais dos povos subsumidos, a fim de destruir os seus sistemas de referências. Neste cenário a resistência sócio-cultural deve ter em vista não a simples preservação da cultura (negada pelo colonialismo), mas a libertação do povo. Resistir ao colonialismo exige, em determinadas situações concretas, contrapor-se á cultura colonial, sem desconsiderar nela os elementos universais que possam contribuir para o “progresso da nação”.

Os meios de comunicação, os saberes médicos ocidentais, a língua e os valores culturais europeus, outrora instrumentos de opressão colonial, podem se apropriados e (desde que) re-significados pelos povos em luta, possibilitando-os avançar em sua luta por emancipação:

A rádio, o aparato receptor perde seu coeficiente de hostilidade, se despoja de seu caráter estranho e se organiza na ordem coerente da nação em luta. Na psicose alucinatória, depois de 1956, as vozes radiofônicas se converterem em protetoras e cúmplices. Os insultos e as acusações desaparecem e cedem seu lugar às palavras de estímulo e fôlego. A técnica estrangeira, “digerida” pela de luta nacional, se converteu em um instrumento de combate para o povo e em um órgão protetor contra a angústia (FANON, 1968:73. Tradução própria).

O fato de observar-se durante o colonialismo a negação ontológica da cultura dos povos colonizados, não significa que estas culturas não devam por outro lado, serem questionadas, criticadas e reinventadas pelos povos em luta, tendo em vista e emancipação humana.

O véu utilizado pela mulher argelina, segundo Fanon é uma indumentária que reflete a visão de mundo patriarcal árabe, na medida em que é ao mesmo tempo a proteção, isolamento e privação da mulher em relação ao mundo público, entendo como espaço dos homens. Em determinadas situações ele pode ser converter em fator de resistência, mas em outras situações é justamente a sua retirada que permite o avanço da luta. Era resistência nas situações em que foi perseguido pelo colonialismo francês, principalmente quando a mulher argelina passou a fazer parte do processo revolucionário.

Nas ocasiões em que era preciso despistar os agentes repressivos, e se infiltrar entre a população francesa para empreender a luta armada, retirar o véu e fingir assimilar a cultura francesa passa a ser taticamente necessário. Entretanto, alerta Fanon: esta mulher que retira o próprio véu (dévoile) para passar despercebida com uma submetralhadora na bolsa, terá que vivenciar emoções que transformarão irreversivelmente a sua personalidade.

Estas transformações são comemoradas por Fanon, na medida em que esta tradição, embora originalmente negada pelo colonialismo, também se voltava contra as mulheres, limitando a sua vivência enquanto ser humano. Resistir socialmente não implica necessariamente a preservação da cultura inicialmente negada pelo colonialismo. O fato é que para Fanon não havia outra escolha para os povos colonizados, que não seja a via revolucionária:

De facto, a Revolução Argelina restitui à existência nacional os seus direitos. De facto, é testemunho da vontade do povo. Mas o interesse e o valor da nossa Revolução residem na mensagem de que é portadora (…)A Revolução Argelina, propondo-se a libertação do território nacional, visa não só à morte deste conjunto, como à elaboração de uma sociedade nova. A independência da Argélia não é apenas fim do colonialismo, mas desaparecimento, nesta parte do mundo, de um gérmem de gangrena e de uma fonte de epidemia. A libertação do território nacional argelino é uma derrota para o racismo e para a exploração do homem; inaugura o reino incondicional da justiça. (El Moudjahid, n. 10; in FANON1980:72)

E seria este processo revolucionário – ato consciente e arriscadaao negro da Martinica quando Fanon escreve o Pele Negra, máscaras brancas – promovido pelo colonizado é o único que teria o poder de derrubar o colonialismo, tanto na mente do colonizado, quanto nas relações sociais objetivamente postas. Como consequência, possibilitaria ao colonizado, ascender do status de objeto a sujeito histórico de sua própria história.

Se é verdade, como afirma Walter D. Mignolo (2007) que ainda não se pode dizer que estamos em uma época pós-colonial na América Latina, ainda presa aos pressupostos econômicos, culturais e epistêmicos do colonialismo, a pergunta que fica é: quais são as nossas tarefas históricas, para usar um termo cunhado por Fanon, rumo a uma efetiva emancipação?

O terceiro-mundismo e a luta de classes

Em dezembro de 1960, depois de circular por várias partes do continente africano fomentando a necessidade de expandir a guerra de libertação a outros países, no auge de sua atuação política, Fanon inicia a escrita de um livro que problematizaria a relação da revolução argelina com outros povos do Continente. No entanto, para a sua surpresa é diagnosticado é diagnisticado com leucemia, e percebe, mediante aos estágios a medicina se encontra nesta época, que lhe resta pouco tempo de via.

Inicia assim a escrita apressada do que sabidamente seria o seu livro, alterando o curso da escrita de forma a sintetizar seus acúmulos teóricos antes que seu tempo esgote. É neste contexto, que será escrito em questão de meses o famoso Les damnés de la terre[9] . Enquanto escrevia o livro e revisava os trechos, chegou a voar para Itália a fim de encontrar Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, para encomendar a Sartre o Prefácio do seu livro.

O livro trata, entre outros assuntos, dos conflitos implícitos ao colonialismo e à luta anticolonial. Alerta que a violência é parte fundante da sociedade colonial, estando presente em todas as suas expressões materiais e simbólicas. Constata ainda que a superação da lógica colonial só seria viável náquelas situações em que os colonizados empreendessem força material proporcionalmente capaz de abalas as forças sociais a ponto de fazer surgir um homem novo:

A descolonização se propõe a mudar a ordem do mundo, é, como se vê, um programa de desordem abosoluta(…)é um processo histórico: isto é, ela só pode ser compreendida, só tem inteligibilidade, só se torna translúcida para si mesma na exata medida em que discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas, que têm precisamente a sua origem nessa espécie de substancialização que a situação colonial excreta e alimenta. (…) a descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual ela se liberta. (FANON, 2010:52-3)

Num diálogo constante com os movimentos internacionais ligados ao terceiro-mundismo, Frantz Fanon alerta que mesmo na África, o processo de revolução nacional não podem ignorar as especificidades de entificação da capitalismo, a composição das diferentes de classes sociais e seus interesses. Os países coloniais são economicamente mente mortal, tal como descreve Hegel em sua metáfora do senhorio e do servo, e que parecia impossível atrasados e subdesenvolvidos a partir da relação histórica com suas metrópoles sanguessugas. Esta realidade relega as colônias uma produção de bens primários voltados à exportação, uma classe operária insipiente, um campesinato palperizado e analfabeto e uma burguesia local subordinada à interesses externos.

Estas burguesias, forjada no processo colonial, mesmo quando apoiam a independência, tendem a trair sua “vocação” de classe – como se assistiu nos séculos anteriores na Europa – e não assumirem a frente do processo produtivo de forma a acumular o excedente de produção no próprio país. Contenta-se, voltando-se contra os interesses de toda a nação, a se colocar como (nova) dos interesses imperialistas e a continuidade dos processos de hiper-exploração da força de trabalho. O capítulo III Desventuras da consciência nacional, antecipa que a superação do colonialismo não depende apenas da eleição de lideres africanos, mas sim, de uma reorganização das relações de produção, orientada para e com o povo. Do contrario, todo o esforço dos movimentos de libertação se veriam afogados no neocolonialismo:

Essa burguesia que se afasta cada vez mais do povo em geral nem consegue arrancar do Ocidente concessões espetaculares: investimentos interessantes para a economia do país, instalações de certas indústrias. Em contrapartida, as fábricas de montagem se multiplicam, consagrando assim o tipo neocolonialista no qual se debate a economia nacional. Assim, não se deve dizer que a burguesia nacional retarda a evolução do país, que lhe faz perder tempo ou que ele pode conduzir a nação para caminhos sem saída. Efetivamente, a fase burguesa na história dos países subdesenvolvidos é uma fase inútil. Quando essa casta for suprimida, devorada por suas próprias contradições, nós percebemos que nada aconteceu depois da independência, que é preciso retomar tudo, partir outra vez do zero. A reconversão não será operada no nível das estruturas instaladas pela burguesia durante o seu reino, pois essa casta não fez outra coisa senão tomar, sem mudança, a herança da economia, de pensamento e das instituições coloniais .(FANON, 2010:204-5).

Fanon não seria adepto das teorias que advogam que a luta de classes não diz respeito ao continente africano. Pelo contrário, é exatamente pela sua centralidade, que a realidade particular dos países africanos deve se consideradas, sob o risco de se ver fracassar qualquer projeto político, econômico e social alternativo. Neste sentido, Fanon não poupara críticas aos partidos de esquerda europeus e mesmo russos, bem como os seus braços políticos presente nos países subdesenvolvidos, que presos a “modelos prontos” de luta social, impõe aos africanos lógicas que não dialogam que as reais particularidades históricas, culturais e econômicas destes povos, procurando o sujeito revolucionário entre os operários, num país onde 98% da classe trabalhadora é composta por camponeses hiper-explorados.

A crítica à Negritude

Os povos colonizados, não seguiram inertes à colonização e buscaram desenvolver estratégias diversas de resistência e emancipação. É o Branco que cria o Negro, mas é, por outro lado “o negro que cria a negritude” (FANON, 1968:20), afirmando-se na luta por um reconhecimento objetivo.

A pesar de reconhecer a legitimidade histórica da luta anti-racista e dos movimentos de afirmação cultural (FANON, 2010:244), na medida em que promovem o questionamento dos valores racistas europeus, Fano alerta que muitas vezes a luta anti-racista[10] – classificada por ele como “racismo anti-racista” – ou de afirmação cultural não consegue superar os limites e contradições históricas que a forjaram.

O “conceito de negritude” admite, “é a antítese afetiva, senão lógica, desse insulto que o homem branco fazia á humanidade”. E completa: “Essa negritude lançada contra o desprezo do branco se revelou, em certos setores, como o único fator capaz de derrubar interdições e maldições” (FANON, 2010:246). No entanto, essa contraposição, historicamente necessária, levou o movimento a um impasse: “ à afirmação incondicional da cultura europeia sucedeu a afirmação incondicional da cultura africana” (Idem).

Se o colonialismo definiu como essencialmente negro a emoção, o corpo, a virilidade, ludicidade, mas, sobretudo, classificou hierarquicamente estes elementos como inferiores, frente à não menos fetichizada (e ilusória) imagem criada para o Europeu – Razão, civilização, cultura, universalidade -, o movimento de negritude, sem romper com estes fetichismos, apenas inverteu os polos da hierarquia, passando a considerar como positivo àquilo que o colonialismo classificou como inferior.

Assim a inocência, musicalidade, o ritmo “nato” do africano, passam a ser afirmados pelos movimentos anti-racistas como elementos essencialmente africanos, mas agora, vistos como superiores e desejáveis frente à frieza tecnicista ocidental (SENGHOR, 1939). As “almas da gente negra”[11] passam a ser classificadas como essências metafísicas, ou no mínimo históricas, que precisariam ser resgatas e afirmadas para que o negro se reencontre consigo próprio.

Para Fanon, está aí uma armadilha que o movimento de negritude – e talvez o conjunto do movimento negro contemporâneo – corria o risco de ficar preso. Esta “essência negra” que se busca restaurar ou libertar, é na verdade uma invenção do racismo colonial, a serviço da desumanização do africano escravizado nas Américas e aceitá-la, é afirmar retoricamente a rejeição aos pressupostos coloniais, sem rejeitá-los de fato. (FANON, 2010:253)

Os seres humanos são o que fazem e como fazem, mas ter como objetivo último a preservação ou resgate cultural é inverter a ordem de prioridade do mundo, tomando o secundário como primário, valorizando o produto em detrimento do produtor. Esta postura, inicialmente legítima, poderia segundo Fanon levar os movimentos anti-racistas a alguns impasses perigosos, tais como: meter todos os negros no mesmo saco; busca por um passado glorioso em detrimento de uma realidade objetivamente desumanizadora; valorização acrítica e apaixonada de “tudo que for africano”, acompanhada por uma negação quase religiosa de tudo que for “ocidental”; aceitação do pressuposto racista de que a cultura negra é estática e fechada, portanto morta; valorização cultural tomada por central.

Para Fanon seria necessário ir além da – e não se limitar à – afirmação das especificidades culturais historicamente negadas, mas não se limitar a ela. Não é a cultura – historicamente negada – que deve resistir mas sim as pessoas que a produzem, a partir de seus referenciais que estão em constante transformação. É certo que o colonialismo nega ao colonizado a possibilidade de entificação de uma cultura autêntica, e por isto, a emancipação cultural, passa pela emancipação das pessoas que produzem e se produzem pela cultura. É o colonialismo em seu ato negador e reificador que atribui uma ausência de movimento histórico à cultura colonizada, engessando-a em catálogos antropológicos, vendo-as e tratando-as como elementos mortos…

Agir pelo resgate de uma pretensa cultura passada, originalmente negada é secundarizar a emancipação dos indivíduos produtores da cultura. É o combate pelo fim mim material, cultural e epistêmico do colonialismo – e Fanon não nega a importância da afirmação cultural neste processo – que pode promover o surgimento de uma cultura autêntica. Ao invés de se lançar apaixonadamente sobre uma cultura engessada pelo colonialismo, “o dito combatente, o colonizado, depois de tentar perder-se no povo, com o povo, vai, ao contrário, sacudir o povo. Ao invés de privilegiar a letargia do povo, ele se transforma em despertador do povo” (FANON, 2010:256). Trata-se, portanto, não de preservar culturas, mas ressignificá-las, na luta, em busca da emancipação:

O homem de cultura, ao invés de partir à procura dessa substância, deixa-se hipnotizar por esses farrapos mumificados que, estabilizados, significam, pelo contrário, a negação, a superação, a invenção. A cultura nunca tem a translucidez do costume. A cultura foge, eminentemente, de toda simplificação. Na sua essência, ela está no oposto ao costume, que é sempre uma deterioração da cultura. Querer colar na tradição ou reatualizar as tradições abandonadas, é não ir apenas contra a história, mas contra o povo. Quando um povo apoia uma luta armada ou mesmo política contra um colonialismo implacável, a tradição muda de significado. O que era técnica de resistência passiva, pode ser nesse período radicalmente condenado. Num país subdesenvolvido em fase de luta, as tradições são fundamentalmente instáveis e sulcadas por correntes centrífugas. (FANON, 2010:258)

Outro ponto destacado por Fanon é que o movimento de negritude, muitas vezes, assume a posição colonial segundo o qual o Branco/europeu é universal e o Negro/africano específico. O movimento de negritude, preso a um presente desesperançado, sem perspectiva no futuro segue afirmando um passado específico ao invés de atuar para desmistificar a ilusão colonial que exclui os africanos e seus descendentes da possibilidade de serem reconhecidos (e se reconhecerem) como universalidade.

Nas palavras de Fanon, devemos ao contrário, trabalhar para “a dissolução total deste complexo mórbido (alienação colonial). Estimamos que o indivíduo deva tender ao universalismo inerente à condição humana” (FANON, 2008:28).

Sair dos impasses criados pelo colonialismo exigir-nos-ia, como afirma Fanon, descer aos “verdadeiros infernos”, indo além da mera afirmação da identidade historicamente negada em direção ao humano-genérico. A desalienação é possível mediante a reestruturação do mundo.

Eu, homem de cor, só quero uma coisa:

Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre. (FANON, 2008:190)

Fanon almejava a revolução social como possibilidade histórica, e principalmente, como condição para superação das alienações psico-sociais. Mas sabia que as lutas sociais não poderiam ter êxito sem terem como ponto de partida, a realidade concreta em que surgem.

Em setembro de 1961, alguns meses depois de escrever seu ultimo livro, o seu estado de saúde de Fanon volta a ficar crítico. Ele então aceita a contragosto um convite para se tratar em Washington. Sabia que sua doença não tinha cura, mas esperava que o tratamento por La prolongasse mais algum tempo os seus dias de vida. Ao ver sua saúde cada vez mais debilitada, escreve uma carta a um amigo afirmando que o que mais o entristecia não será saber que estava morrendo, mas morrer de Leucemia em Washington quando poderia estar fora do front de batalha. (GEISMAR, 1972:181)

Aos 6 de dezembro de 1961 morre bastante debilitado, algumas semanas depois ter tido uma aparente melhora no quadro de saúde e visto os primeiros exemplares de Os condenados da terra impressos.

Há espaço para Fanon no século XXI?

Recuperar Fanon na atualidade é como afirma Wallerstein (2008:11), apostar numa “luta cujo desfecho é completamente incerto”. Muitos acontecimentos históricos posteriores à morte de Fanon nos levantam o questionamento de como ele analisaria ou confrontaria o colonialismo no século XXI? Os retrocessos políticos observados na Argélia com a islamização do Estado após a independência; as diversas e sucessivas ditaduras e decapitação de lideres anti-imperialistas nos países africanos recém-libertos; a queda do Muro de Berlin e o surgimento de uma geração para o qual a perspectiva de futuro está ausente; as conquistas democráticas ( relativas) obtidas sem violência nos países subdesenvolvidos; e mesmo as drásticas alterações na sociedade moderna, provocada pela reestruturação produtiva e sua crescente financeirização da economia e readequação das fronteiras nacionais; o surgimento dos Novos Movimentos Sociais, suas viradas paradigmáticas e o próprio Neoliberalismo. Todos estes novos conflitos e contradições, impensáveis à época de Fanon levantam o questionamento se o autor estaria ultrapassado.

Por outro lado, um olhar mais atento tanto sobre sua produção quanto sobre a realidade presente sugerir exatamente o contrário. O “caráter constante, renovado e transformado” que o racismo adquire fez com que a racialização se tornasse uma realidade global na sociedade contemporânea (SILVÉRIO, 1999). Do genocídio perpetrado pelo Estado de Israel aos palestinos à Erupção da Primavera Árabe; do alto e desproporcional índice de mortalidade materna das mulheres negras no Brasil, em relação às mulheres brancas às políticas higienistas de faxina urbana, tirando de circulação a força usuários de drogas e moradores de rua indigestos à especulação imobiliária de determinadas áreas; da persistência do racismo no Brasil ao atual e violento processo de extermínio vivenciado pela juventude negra no Brasil; da manutenção atualizada da “exploração do homem pelo homem”, reconfigurada e ressignificada não para se desfazer, mas para se intensificar… Em todos estes e outros problemas sociais presentes e latentes, colocam-nos diante de dilemas para os quais Frantz Fanon tenha muito a dizer.

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WALLERSTEIN, Immanuel. Ler Fanon no século XXI. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 82, Setembro 2008: 3-12

ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo. BOITEMPO EDITORIAL, 2011


[1] O título original é: Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans l’hérédo-dégénération-spino-cérébelleuse: Um cas de maladie de Friereich avec délire de possession

[2] O psiquiatra espanhol François Tosquelles nasceu na Catalunia e chegou a participar da Guerra Civil Espanhola. Fugido do franquismo, instala-se na França onde inicia diversos estudos alternativos de psiquiatria em Saint Alban, onde Fanon Fanon trabalhou. Visionário e anticolonialista, Tosquelles criou a psicoterapia institucional, que poderia ser traduzido como terapia comunitária. A partir da influência de Freud, Reich, Politzer e Marx, pensava a loucura – alienação psiquica – ou o sofrimento psíquico em sua relação com o meio social em que o doente está inserido. Num outro polo, a desalienação psíquica dependeria da reorganização da sociedade, e portanto, as terapias de tratamento introduziam experimentos alternativos como assembleias democráticas entre profissionais e pacientes, trabalhos comunitários etc. (RODRIGUES, 2007)

[3] Publicado em Língua Portuguesa pela EDUBA sob o título: Pele negra, máscaras brancas. (2008).

[4] Os Estudos Pós-Coloniais configuram-se como uma corrente contemporânea interdisciplinar, fortemente inspirada nos estudos de Frantz Fanon e influenciada pelas áreas da Filosofia, Historiografia, Estudos Literários, Sociologia, Antropologia e Ciências Políticas. De acordo com Álvares (2000:222) “ Os teóricos pós-coloniais distinguem-se pela tentativa constante de repensar a estrutura epistemológica das ciências humanas, estrutura essa que terá sido moldada de acordo com padrões ocidentais que se tornaram globalmente hegemônicos devido ao facto histórico do colonialismo. (…) Pela ênfase colocada na temática da alteridade, a Teoria Pós-Colonial tende a transcender as conseqüências do colonialismo, servindo como frente de combate a qualquer grupo que se sinta discriminado em relação à norma prevalecente – seja esta étnica, social ou sexual -, e que procure implementar uma política de identidade através da afirmação da diferença.”. Entre os seus principais expoentes, destacam-se Said (2004), Brah (1996), Hall (1996 e 2009), Bhabha (1998) entre outros.

[5] Ver neste sentido a brilhante descrição A mitose originária de E. Cleaver (1971)

[6] Para uma análise bem mais detalhada de Pele negra, máscaras brancas, principalmente no que concerne às neuroses provocadas pelo colonialismo, ver: SAPEDE (S/data) .

[7] Na literatura de língua Francesa, destaca-se a psiquiatra psicanalista Alice Cherki, que busca, a partir da convivência que teve com Fanon, recuperar o seu legado como psicanalista, bem como desmistificar as distorções que foram criadas em seu nome (CHERKI, 2006).

[8] Uma tradução possível do árabe argelino para o português seria “guerreiro santo”. Estes artigos foram posteriormente reunidos a outros escritos de Fanon e publicados no livro Pour La révolution africaine – écrits politiques-. François Maspero. 1964. Há uma versão traduzida para o português de Portugal por Isabel Pascoal: Em defesa da Revolução Africana. In: Fanon (1980).

[9] O título original do livro Les damnés de La terre (Os condenados da terra) é visivelmente inspirado na primeira estrofe da versão francesa de A Internacinal, hino do movimento comunista internacional, que inicia da seguinte forma: “Debout les damnés de la terre/ Debout les forçats de la faim/ La raison tonne en son cratère/ C’est l’éruption de la fin.” Ver: http://letras.mus.br/ogeret-marc/1246295/. Acesso em 02 de Dezembro de 2012.

[10] Fanon toma como exemplo o movimento de negritude cultural, do qual ele mesmo foi em grande parte influenciadao, encabeçado por Aimé Cesaire, Leopold S. Sengor, Alaine Diop etc a partir da década de 30 nas colônias francesas.

[11] Título em português do livro The Souls of Black Filk de William Edward Burghardt Du Bois, publicado no Brasil como As almas da gente negra (DU BOIS, 1999).

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Apropriação Privada do Conhecimento e outras histórias

José Evaristo Silvério Netto

Nos encontramos em um momento na história da humanidade onde a crise nos setores da sociedade é evidente. O colapso no setor educacional, considerando os aparelhos públicos de escolarização, estão expressos na luta dos professores e demais profissionais da educação por melhores condições de trabalho e de vida. Não só o setor educacional, mas quando pensamos na sociedade como um todo, percebemos vários processos de ruptura da nefanda ordem social.

Protesto dos professores em São Paulo.

Entendo que o capitalismo e o racismo estrangulam as sociedades exploradas do planeta, e nesta conjuntura ampliando e intensificando a exploração e a geração de riquezas para compensar a crise mundial do sistema monetário. A exploração se dá de forma muito ampla e complexa, por meio dos diversos aparelhos de controle social do Estado e das industrias que detêm o controle dos processos políticos e sociais da humanidade. Uma face importante desta exploração se dá através apropriação privada do conhecimento humano, onde a lógica do capital tenta se vestir de leis da natureza, de modo que o senso comum perceba as expressões do racismo e do capitalismo como fatos naturais na história da humanidade. Assim, todos os aparelhos “oficiais” de produção de cultura e conhecimento em alguma medida dialogam com esta lógica, produzindo e reproduzindo o racismo e suas desigualdades, dentro do processo já mencionado acima, descrito por Roberto da Silva, quando discutindo sobre as bases científicas da Pedagogia Social (consultar livro: Pedagogia Social – Roberto da Silva, João Clemente de Souza Neto, Rogério Adolfo de Moura (orgs.). — São Paulo : Expressão e Arte Editora, vol. 1. 2ª edição, 2011).

De certa forma, a Apropriação Privada do Conhecimento trata do modo como as industrias constroem a realidade (a nossa realidade – como uma “matrix”) a partir dos produtos que vendem, de modo a não permitir aos explorados SER (expressão livre do espírito em comunhão com as identidades étnicas e humanas, por exemplo) sem possuir estes produtos. Tão forte é a penetração desta lógica nos nossos espíritos, que mesmo as teorias que problematizam o racismo e a lógica do capital, ainda assim continuamos presos à necessidade de comprar, de possuir estes produtos. A lógica do capital, o racismo, e seus resíduos valorativos e judicativos se imbricam na nossa estrutura afetivo-emocional; orientam a construção da nossa estrutura cognitiva, e tornam-se lócus interno da percepção da causalidade da nossa motivação e ação.

As industrias do setor alimentício forjam a realidade e a verdade que pretendem para nós a partir da manipulação dos nossos sentidos gustativos desde quando nascemos, ou até antes disso, “normatizando” e ajustando-nos para entender a realidade a partir do que oferecem de estímulos, de parâmetros valorativos, e de conhecimento sobre o mundo, transformando-nos finalmente em consumidores vitalícios. Da mesma forma, as industrias do olfato, do tato, da visão e audição, que se apropriam das nossas possibilidades de compreensão da realidade para, uma vez nos fazendo consumidores programados, manterem a lógica da exploração e do poder. Somos vítimas deste processo antes de tomarmos consciência do mundo que nos rodeia, e, talvez por isso seja tão difícil descortinar este esquema do qual somos peças fundamentais. Aqui, os conceitos de REVOLUÇÃO e de EMANCIPAÇÃO têm muita importância, mas sobre estes cabe outro texto, com outra orientação. (Neste texto, busco opinar, dentro das minhas possibilidades, sobre a condição de explorados pelo processo de Apropriação Privada do Conhecimento perpetrada pelas industrias e os aparelhos ideológicos do Estado).

A grande responsável pela sedimentação e consolidação deste processo perverso de Apropriação do Conhecimento pelo Capital, nas figuras das industrias que privatizam os sentidos Humanos, são as mídias televisivas. Estas industrias utilizam predominantemente os estímulos audiovisuais, e a LINGUAGEM (ai cabe outra discussão, sobre o papel da linguagem e da língua para a dominação e colonização), para introjetar a ideologia das elites mundiais de modo a estabelecer o controle social necessário para administrar a miséria e gestão do sistema de exploração. As propagandas, os programas de auditório e de outros gêneros, os programas de noticias, as novelas, os filmes, os desenhos, e outras tantas tecnologias desta industria geram uma gigantesca inércia de introjeção ideológica à serviço da lógica do capital e do racismo, dando ares de verdade universal ao conhecimento forjado desde o nosso nascimento (ou antes) pelos estímulos das industrias do palato, do tato, da audição, da visão e do olfato.

Penso que é necessário uma ruptura profunda do tecido social para gerar uma conjuntura social que seja solo fértil para a organização revolucionária do povo. Segundo Roberto da Silva (2011), houve no Brasil uma ruptura que provocou o processo de redemocratização do país, localizando a constituição de 88 como marco normativo. Porém, o professor afirma que esta Constituição Cidadã não significou uma ruptura de carácter revolucionário. Pelo contrário, representou a volta do Estado de Direito, antes fora interrompido pelo golpe militar de 64.

Abaixo faço uma pequena proposição de algo que ainda quero me apropriar.

Uma vez que o racismo tenha sido o motor do capitalismo, e dadas as demandas atuais gravíssimas – genocídio da juventude negra, redução da maioridade penal, racismo institucional, resistência e descaracterização de políticas de ação afirmativa, desapropriações criminosas de comunidades periféricas, crimes do Estado Brasileiro contra comunidades Quilombolas, entre tantas demandas – acredito que a ruptura do tecido social se dará a partir das desigualdades raciais das classes sociais para uma mudança da ordem estrutural da sociedade. O protagonismo dos explorados no processo de radicalização e endurecimento da luta de emancipação deverá levar em conta um projeto político de sociedade que contemple uma outra estrutura de sociedade, onde será possível inclusive implementar outras tecnologias educacionais e, onde a Lei 10639/03 poderá ser encaminhada na práxis, para além do papel.

Campanha Contra o Genocídio da Juventude Negra

Termino aqui esta opinião, mas sinalizando para o que penso ser um caminho interessante (pretendo escrever sobre isso): que a educação precisa passar por um processo de desconstrução dos seus sustentáculos estruturais historicamente forjados pelas demandas das classe dominante, para que seja possível implantar uma educação social – apoiada na Pedagogia Social – que tenha uma orientação política em acordo com a lei 10639/03, uma perspectiva afrocentrada de análise da realidade, e outras fontes de mudanças construturais para a reconfiguração da mente colonizada que possuímos.

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1. Encontro GT Trabalho – Kilombagem

José Evaristo Silvério Netto

Ontem tivemos nosso primeiro encontro proposto pelo GT Trabalho do coletivo Kilombagem, para a discussão das Particularidades do Capitalismo no Brasil, ao redor do texto de Caio Prado JR entitulado O Sentido da Colonização.

De acordo com o mediador do debate, nosso irmão Felipe Choco, o Caio Prado vai ser a pedra fundamental pra que se entenda neste campo de fundamentação da nacionalidade. Neste sentido, o texto O Sentido da Colonização é a pedra angular do livro A Formação do Brasil Contemporâneo – Colonia, haja vista que em todo o livro esta inculcado o sentido da colonização. O maior objetivo da óbra é entender:

  1. Como que se dá a nacionalidade brasileira;
  2. De que forma o Brasil se agregou, ou esta inserido no mundo.

O Caio Prado portanto, esta dentro deste debate de nação.

O Antônio Candido levantou em uma edição do livro Raízes do Brasil, escrito por Sérgio Buarque de Holanda, quais seriam os três clássicos da literatura sobre o Brasil, os interpretes do Brasil. Por ele foi reconhecida a tríade Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire, o livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, e o terceiro Formação do Brasil Contemporâneo, de autoria do Caio Prado Jr.

Entre estas três óbras há importantes diferenças, como salientou nosso mediador Felipe Choco, e neste é interessante reçaltar que o Caio Prado JR. se sobressai em relação aos outros porque ele é o primeiro que vai tentar abarcar a totalidade compreendendo o Brasil e suas particularidades contatenado com o mundo. Já os outros dois autores, Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda, vão tentar entender as relações que se desenvolveram no Brasil, mas dando tanta atenção às particularidades que perdem a linha mestra de desenvolvimento da nação, relacionada com o resto do mundo, perdendo os nexos causais das próprias particularidades e o sentido da colonização.

No nosso primeiro encontro, tomamos consciência destas questões, e discutimos mais profundamente sobre a linha mestra da história das nações europeias a partir do séc. XIV e XV, onde naquele continente houve uma mudança na órdem comercial, com a busca de novas rotas comerciais,ue que antes eram exclusivamente por terra, privilegiando os países centrais do continente. Discutimos através do texto e das intervenções do Felipe Choco que com a expansão ultramarina, houve um deslocamento da primazia comercial dos países centrais da Europa para os países que formam a fachada oceânica. Entendemos então que a busca por rotas comerciais acabou por fazer com que os Europeus chegassem na América. Discutimos o que significou o continente americano para estas empresas comerciais á priori, e em um segundo momento, como foi empreendida a exploração dos recursos naturais deste território novo, agora enquanto colônia. Debatemos sobre a forma que se deu o povoamento das regiões temperadas do continente Americano, e das regiões tropicais e subtropicais. Entendemos a idéia de povoamento, que surgiu da demanda dos fins mercantis, onde não bastaria apenas ocupar o continente com feitorias, como foram as ocupações no Mediterrâneo, na África e na Índia, por exemplo. O carácter de povoamento nas regiões tropicais e subtropicais foi mediante a posssibilidade de obtenção de gêneros que na Europa faziam falta, e eram artigos de luxo.

(Reunião Kilombagem – GT Trabalho – Discussão do texto: O Sentido da Colonização [Caio Prado Jr.])

Como termina Caio Prado JR.:

“Se vamos a essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açucar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isso. E com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção às considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se dispora naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão-de-obra de que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira.”

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O Racismo como arma de dominação – Clóvis Moura

Ao longo da história, o racismo foi a justificação dos privilégios das elites e dos infortúnios das classes subalternas. Agora ele se renova como instrumento de dominação

Sobre o racismo um dos temas mais polêmicos, instigantes e inesgotáveis do mundo moderno, concentram-se opiniões contraditórias, que discutem em vários níveis, as consequências de sua prática. A discussão sobre as diversas formas de sua atuação, significado e função vem sempre acompanhada de uma carga emocional, o que demonstra como a polêmica que se monta em torno de seu significado transcende em muito as questões acadêmicas, para atingir um significado mais abrangente, da ideologia de dominação. Somente admitindo o papel social, ideológico e político do racismo poderemos compreender sua força permanente e seu significado polimórfico e ambivalente…

veja o texto na íntegra:

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II Curso: Pan Africanismo e a esquerda diante da luta de classes

O Grupo KILOMBAGEM  e o Núcleo de Consciência Negra da USP têm a honra de convidar-te para o II Curso : Pan Africanismo e a esqueda duante da luta de classes.

O Curso tem o objetivo de oferecer subsídios históricos e sociológicos para o entendimento das relações entre o racismo e o capitalismo,  bem como as tensões, antagonismos e  convergências entre  a chamada esquerda e o internacionalismo negro.

 

Comente e avalie os encontros aqui!!!

 

 

Baixe aqui os textos para cada os encontros (clique no link em azul)

Atenção!!!

Alteração de ordem na Programação (19hs às 22hs): 

22/01 – O Racismo e a Luta de Classes – Weber Lopes Goes

Textos de apoio:
Origens, modalidades e formas de racismo – Martiniano José da Silva

O racismo como arma de dominação – Clóvis Moura

23/01 A Esquerda: Brasil  e Mundo no Pós-Guerra –  Teresinha Ferrari

Textos de apoio:

 

24/01 Os movimentos de libertação na África e suas influências no Movimento Negro brasileiro – Deivison Mendes Faustino (Deivison Nkosi)

textos de apoio:

A consciência negra e a busca da verdadeira humanidade – Bantu Stephen Biko

O Pan-africanismo e a formação da OUA – Érica Reis de Almeida

 

 

Local: 

Núcleo de Consciência Negra na USP

Av. Professor Lúcio Martins Rodrigues, Travessa  4. Bloco 3, Cidade Universitária – São Paulo – SP

Informações:

nucleodeconsciencianegra@gmail.com

3091`-7746

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Miscigenação e democracia racial: Mito e realidade – Clóvis Moura

Texto 3 – curso Particularidades do Capitalismo Brasileiro – Grupo Kilombagem

MOURA, Clóvis. Miscigenação e democracia racial: mito e realidade- in: Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Editora Ática, 1988

Negação da identidade étnica

Grande pane da literatura especializada sobre relações interétnicas no Brasil conclui afirmando, por preferências ideológicas, que o Brasil é a maior democracia racial do mundo, fato que se evidencia na grande diferenciação cromática dos seus habitantes.

Afirma-se, sempre, que o português, por razoes culturais ou mesmo biológicas, tem predisposição pelo relacionamento sexual com etnias exóticas, motivo pelo qual consegue democratizar as relações sociais que estabelece naquelas áreas nas quais atuou como colonizador. O Brasil seria o melhor exemplo deste comportamento.

Em outras palavras: estabeleceu-se uma ponte ideológica entre a miscigenação (que é um fato biológico) e a democratização (que é um fato sociopolítico) tentando-se, com isto, identificar como semelhantes dois processos inteiramente independentes. Todos nós sabemos que a miscigenação é um fenômeno universal não havendo mais raças ou etnias puras no mundo.

A antropologia demonstra esse dinamismo miscigenatório milenar, quer na Europa, quer na África, Ásia ou América. Nada tem, pois, de especial ou específico o fato do português, em determinadas situações especiais, estabelecer contato e intercâmbio sexual com as raças das suas colônias, fato que, em absoluto, significaria democratização social nesse contato e intercâmbio.

Mas, com esses argumentos, consegue-se deixar de analisar como foi ordenada socialmente esta população poliétnica e quais os mecanismos específicos, de resistência à mobilidade social vertical massiva que foram criados contra os contingentes populacionais discriminados por essa estrutura.

Esquecem-se de que esses segmentos populacionais eram componentes de uma estrutura escravista, inicialmente, e de capitalismo dependente, em seguida. Com essas duas realidades estruturais durante o transcurso da nossa história social foram criados mecanismos ideológicos de barragem aos diversos segmentos discriminados.

Mas na maioria dos estudos sobre o assunto esses mecanismos não são avaliados. Pelo contrário. É como se houvesse um fluir idílico, sem nenhum entrave à evolução individual senão aquele que a capacidade de cada um exprimisse. Elide-se, assim, a escala de valores que a estrutura de dominação e o seu aparelho ideológico impuseram para discriminar grande parte dessa população não-branca.

Essa elite de poder que se auto-identifica como branca escolheu, como tipo ideal, representativo da superioridade étnica na nossa sociedade, o branco europeu e, em contrapartida, como tipo negativo, inferior, étnica e culturalmente, o negro.

Em cima dessa dicotomia étnica estabeleceu-se, como já dissemos, uma escala de valores, sendo o indivíduo ou grupo mais reconhecido e aceito socialmente na medida em que se aproxima do tipo branco, e desvalorizado e socialmente repelido à medida que se aproxima do negro.

Esse gradiente étnico que caracteriza a população brasileira, não cria, portanto, um relacionamento democrático e igualitário, já que está subordinado a uma escala de valores que vê no branco o modelo superior, no negro ó inferior e as demais nuanças de miscigenação mais consideradas, integradas, ou socialmente condenadas, repelidas, à medida que se aproximam ou se distanciam de um desses polos considerados o positivo e o negativo, o superior e o inferior nessa escala cromática.

Criou-se, assim, através de mecanismos sociais e simbólicos de dominação, uma tendência à fuga da realidade e à consciência étnica de grandes segmentos populacionais não-brancos. Eles fogem simbolicamente dessa realidade que os discrimina e criam mitos capazes de fazer com que se sintam resguardados do julgamento discriminatório das elites dominantes.

A identidade e a consciência étnicas são, assim, penosamente escamoteadas pela grande maioria dos brasileiros ao se auto-analisarem, procurando sempre elementos de identificação com os símbolos étnicos da camada branca dominante.

No recenseamento de 1980, por exemplo, os não-brancos brasileiros, ao serem inquiridos pelos pesquisadores do IBGE sobre a sua cor, responderam que ela era:

acastanhada, agalegada, alva, alva escura, alvarenta, alva-rosada, alvinha, amarelada, amarela-queimada, amarelosa, amorenada, avermelhada, azul, azul-marinho, baiano, bem branca, bem clara, bem morena, branca, branca avermelhada, branca melada, branca morena, branca pálida, branca sardenta, branca suja, branquiça, branquinha, bronze, bronzeada, bugrezinha, escura, burro-quando-foge, cabocla, cabo verde, café, café com-leite, canela, canelada, cardão, castanha, castanha clara, cobre corada, cor de café, cor de canela, cor de cuia, cor de leite, cor de ouro, cor de rosa, cor firme, crioula, encerada, enxofrada, esbranquicento, escurinha, fogoió, galega, galegada, jambo, laranja, lilás, loira, loira clara, loura, lourinha, malaia, marinheira, marrom, meio amarela, meio branca, meio morena, meio preta, melada, mestiça, miscigenação, mista, morena bem chegada, morena bronzeada, morena canelada, morena castanha, morena clara, morena cor de canela, morenada, morena escura, morena fechada, morenão, morena prata, morena roxa, morena ruiva, morena trigueira, moreninha, mulata, mulatinha, negra, negrota, pálida, paraíba, parda, parda clara, polaca, pouco clara, pouco morena, preta, pretinha, puxa para branca, quase negra, queimada, queimada de praia, queimada de sol, regular, retinha, rosa, rosada, rosa queimada, roxa, ruiva, russo, sapecada, sarará, saraúba, tostada, trigo, trigueira, turva, verde, vermelha, além de outros que não declararam a cor.

O total de cento e trinta e seis cores bem demonstra como o brasileiro foge da sua realidade étnica, da sua identidade, procurando, através de simbolismos de fuga, situar-se o mais próximo possível do modelo tido como superior.1

O que significa isto em um país que se diz uma democracia racial? Significa que, por mecanismos alienadores, a ideologia da elite dominadora introjetou em vastas camadas de não-brancos os seus valores fundamentais.

Significa, também, que a nossa realidade étnica, ao contrário do que se diz, não iguala pela miscigenação, mas, pelo contrário, diferencia, hierarquiza e inferioriza socialmente de tal maneira que esses não-brancos procuram criar uma realidade simbólica onde se refugiam, tentando escapar da inferiorização que a sua cor expressa nesse tipo de sociedade.

Nessa fuga simbólica, eles desejam compensar-se da discriminação social e racial de que são vítimas no processo de iniciação com as camadas brancas dominantes que projetaram uma sociedade democrática para eles, criando, por outro lado, uma ideologia escamoteadora capaz de encobrir as condições reais sob as quais os contatos interétnicos se realizam no Brasil.

Como vemos, a identidade étnica do brasileiro é substituída por mitos reificadores, usados pelos próprios não-brancos e negros especialmente, que procuram esquecer e/ou substituir a concreta realidade por uma dolorosa e enganadora magia cromática na qual o dominado se refugia para aproximar-se simbolicamente, o mais possível, dos símbolos criados pelo dominador.

Etnologização da história escamoteação da realidade social

A etnologização dos problemas sociais a partir da afirmação de que há uma democracia racial no Brasil demonstra como há uma confusão nos cientistas sociais adeptos desse critério metodológico.

Ao abandonarem como universo de análise a estrutura rigidamente hierarquizada na qual essas etnias foram ordenadas, de acordo com um sistema de valores discriminatório, através de mecanismos controladores, historicamente montados para conservar o sistema, objetivando manter os segmentos e grupos dominados nas últimas escalas de sua estrutura, mostram como se confunde o plano miscigenatório, biológico, portanto com o social e econômico.

De um lado, ao se dizer que há uma democracia racial no Brasil, e, de outro, ao se verificar a alocação dessas etnias não-brancas no espaço social, chega-se à conclusão de que a sua inferiofízação é decorrência das próprias deficiências ou divergências desses grupos e/ou segmentos étnicos com o processo civilizatório.

Porque, se os direitos e deveres são idênticos, as oportunidades deverão ser também idênticas. Como tal não acontece, como veremos mais tarde, a culpa pelo atraso social desses grupos é deles próprios. Joga-se, assim, sobre os segmentos não-brancos oprimidos e discriminados, e do negro em particular, a culpa da sua inferioridade social, econômica e cultural.

Para compreendermos melhor esse processo/problema devemos analisar algumas particularidades significativas da formação das classes sociais no Brasil. Alguns sociólogos supõem, esquematicamente que, acabada a escravidão, os negros e pardos ex-escravos de idêntica condição, num processo automático e linear de integração social, iriam formar o proletariado das cidades que se desenvolveriam ou o camponês livre e assalariado agrícola.

Seriam, assim, absorvidos e incorporados, por automatismo, as novas classes que apareciam após a Abolição. Iriam compor a classe operária e camponesa nos seus diversos níveis e setores e, nesta incorporação, ficariam em pé de igualdade com os demais trabalhadores, muitos deles, especialmente nas regiões Sudeste e Sul, vindos de outros países, como imigrantes.

Mas os fatos não aconteceram exatamente assim. Em pesquisas parciais que realizamos, em jornais anarquistas2 e em trabalho sistemático feito pelo professor Sidney Sérgio Fernandes Solis, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, a imprensa anarquista que então circulava não refletia nenhuma simpatia ou desejo de união com os negros, mas, pelo contrário, chegava mesmo a estampar artigos nos quais era visível o preconceito racial.

Como vemos, se, de um lado, os negros egressos das senzalas não eram incorporados a esse proletariado nascente, por automatismo, mas iriam compor a sua franja marginal, de outro, do ponto de vista ideológico, surgia, já como componente do comportamento da própria classe operária, os elementos ideológicos de barragem social apoiados no preconceito de cor.

E esse racismo larvar passou a exercer um papel selecionador dentro do próprio proletariado. O negro e outras camadas não-brancas não foram, assim, incorporados a esse proletariado incipiente, mas foram compor a grande franja de marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente que substituiu o escravismo.

Em 1893, por exemplo, escreve Florestan Fernandes:

Os imigrantes entravam com 79% do pessoal ocupado nas atividades artesanais; com 8 1% do pessoal ocupado nas atividades comerciais. Suas participações nos estratos mais altos da estrutura ocupacional ainda era pequena (pois só 31 % dos proprietários e 19,4% dos capitalistas eram estrangeiros). Contudo achavam-se incluídos nessa esfera, ao contrário do que sucedia com o negro e o mulato.3

Florestan Fernandes

Neste processo complexo e ao mesmo tempo contraditório da passagem da escravidão para o trabalho livre, o negro é logrado socialmente e apresentado, sistematicamente, como sendo incapaz de trabalhar como assalariado. No entanto, durante o escravismo, o negro atuava satisfatória e eficientemente no setor manufatureiro e artesanal.

Thomas liwbank escrevia em 1845/6 que:

Tenho visto escravos a trabalhar como carpinteiros, pedreiros, calceteiros, impressores, pintores de tabuletas e ornamentação, construtores de lampiões, artífices em prata, joalheiros e litógrafos. É também fato corrente que imagens de santos, em pedra e madeira, sejam admiravelmente feitas por negros escravos ou livres. (…) O vigário fez referência outro dia a um escravo baiano que é um santeiro de primeira ordem. Todas as espécies de ofícios são exercidas por homens e rapazes escravos.4

Segundo Heitor Ferreira Lima, os negros escravos trabalhavam em diversas atividades artesanais. No Rio de Janeiro, da mesma forma que Ewbank, os naturalistas Spix e Martius escreviam que “entre os naturais, são mulatos os que manifestam maior capacidade e diligência para as artes mecânicas.

Trabalhavam, também, nos estaleiros, na construção de barcos, na pesca da baleia, na industrialização do seu óleo e em diversas outras atividades”. Em várias outras regiões desenvolviam-se atividades artesanais e manufatureiras aproveitando-se do trabalho dos negros escravos.

No Maranhão, por exemplo, ainda segundo Spix e Martius, dos 4 000 profissionais artífices existentes em toda a província, quando esses dois cientistas por ali passaram (1818/1820) mais de 3 000 eram escravos. Vejamos os números:

Profissão Livres Escravos
Alfaiates 61 96
Caldeireiros 4 1
Carpinteiros 178 326
Entalhadores 96 42
Carpinteiros Navais 80 38
Serralheiros 5
Ferreiros (em São Luiz) 37 23
Tanoeiros (em São Luiz) 2 1
Marceneiros 30 27
Ourives 49 11
Pedreiros e Britadores 404 608
Pintores e Ceriadores 10 5
Coreeiros 4 1
Escravos auxiliares nas indústrias 1 800
Total 964 2.985
TOTAL GERAL: 3 949    

Fonte: Heitor Ferreira Lima, História político-econômica e industrial do Brasil.

Na área de São Paulo o mesmo fenómeno se verificava. Os escravos ocupavam praticamente todos os espaços do mercado de trabalho, dinamizando a produção cm níveis os mais diversificados. Exerciam ofícios que depois seriam ocupados pelo trabalho imigrante. Segundo o recenseamento de 1872 o quadro era o seguinte:

Fonte: Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia.

Os negros não eram somente os trabalhadores do eito, que se prestavam apenas para as fainas agrícolas duras e nas quais o simples trabalho braçal primário era necessário. Na diversificação da divisão do trabalho eles entravam nas mais diversas atividades, especialmente no setor artesanal. Em alguns ramos eram mesmo os mais capazes como, por exemplo, na metalurgia cujas técnicas trazidas da África foram aqui aplicadas e desenvolvidas.

Na região mineira^por exemplo, foram os .únicos que aplicaram e desenvolveram a metalurgia. Tiveram também a habilidade de aprenderem com grande facilidade os ofícios que aqueles primeiros portugueses que aqui aportaram trouxeram da Metrópole.

Eles tinham mesmo interesse de ensiná-los aos escravos a fim de se livrarem de um tipo de trabalho não-condizente com a sua condição de brancos, deixando ao negro as atividades artesanais.

Mesmo porque o trabalho desses escravos, executados para os seus donos, ou quando alugados para terceiros, proporcionava um lucro certo c fácil para o senhor. Isto dava-lhes oportunidade de capitalizarem alguma poupança c se dedicarem ao comércio.

A personagem Bertoleza do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, retrata muito bem esse tipo de escravo urbano que trabalhava de jornal. Era escrava de um cego que dela recebia a contribuição com a qual sobrevivia.

Mas os negros também “tiveram ampla e brilhante participação nas atividades de todos os ofícios mecânicos exercidos entre nós, quer como escravo, quer como libertos, ora como oficial ou simples ajudante, e até mesmo como mestres. Ensinavam-lhes um ou mais ofícios e exploravam-nos rudemente, vivendo à custa de seu trabalho”.5

Escreve, neste sentido, J. F. de Almeida Prado:

Os primeiros operários aparecidos nas capitanias especializados em misteres que requeriam alguma aprendizagem e tirocínio, chegavam feitos do Reino ou das ilhas, muitas vezes sem intenção de se demorarem, tendo deixado na terra natal a esposa e os filhos. Mais tarde, outros se formavam sob as vistas dos reinóis, transmitindo o ofício daí por diante aos pretos e mestiços. Com o tempo, chegaram os elementos de cor a constituir a quase totalidade dos obreiros da autarquia colônia, por refugarem os brancos profissões manuais procurando tornar-se proprietários de terras.6

Tanto na época colonial como na última fase da escravidão o escravo negro se articulava em diversos níveis da estrutura ocupacional, desempenhando satisfatoriamente os mais diferenciados misteres, agroindústria do açúcar o mesmo fato se verifica.

Para Luiz Vianna Filho:

Mal chegados os negros logo assimilavam o que se lhes ensinava, transformando-se em ferreiros, carapinas, marceneiros, caldeireiros, oleiros, alambiqueiros, e até mesmo mestres de açúcar, sabendo o cozimento do mel, o “ponto” do caldo, a purga do açúcar.7

Durante todo o tempo em que o escravismo existiu o escravo negro foi aquele trabalhador que estava presente em todos os ofícios por mais diversificados que eles fossem. Sua força de trabalho era distribuída em todos os setores de atividade.

No Rio de Janeiro especialmente sabemos que ele, como escravo urbano, desempenhava as mais variadas profissões a fim de proporcionar o ócio da classe senhorial. Como prova, basta que olhemos as pranchas do livro de Debret.8

Queremos dizer com isto que na dinâmica da sociedade escravista atuou, durante toda a sua existência, como mecanismo equilibrador c impulsionador, o trabalho do escravo negro. Esse mecanismo de equilíbrio e dinamismo, já que as classes senhoriais fugiam a qualquer tipo de trabalho, será atingido quando se desarticula o sistema escravista e a sociedade brasileira é reestruturada tendo o trabalho livre como forma fundamental de atividade.

O equilíbrio se parte contra o ex-escravo que é desarticulado e marginalizado do sistema de produção.

Toda essa força de trabalho escrava, relativamente diversificada, integrada e estruturada em um sistema de produção, desarticulou-se, portanto, com a decomposição do modo de produção escravista: ou se marginaliza, ou se deteriora de forma parcial ou absoluta com a morte de grande parte dos ex-escravos.

Esses ourives, alfaiates, pedreiros, marceneiros, tanoeiros, metalúrgicos etc, ao tentarem se reordenar na sociedade capitalista emergente, são por um processo de peneiramento constante e estrategicamente bem manipulado, considerados como mão-de-obra não-aproveitável e/marginalizados.

Surge, concomitantemente, o mito da incapacidade do negro para o trabalho e, com isto, ao tempo em que se proclama a existência de uma democracia racial, apregoa-se, por outro lado, a impossibilidade de se aproveitar esse enorme contingente de ex-escravos.

O preconceito de cor é assim dinamizado no contexto capitalista, os elementos não brancos passam a ser estereotipados como indolentes, cachaceiros, não-persistentes no trabalho e, em contrapartida, por extensão, apresenta- se o trabalhador branco como o modelo do perseverante, honesto, de hábitos morigerados e tendências à poupança e à estabilidade no emprego.

Elege-se o modelo branco como sendo o do trabalhador ideal e apela-se para uma política migratória sistemática e subvencionada, alegando-se a necessidade de se dinamizar a nossa economia através da importação de um trabalhador superior do ponto de vista racial e cultural e capaz de suprir, com a sua mão-de-obra, as necessidades da sociedade brasileira em expansão.

Veremos isto depois.

Há uma visível desarticulação nessa nova ordenação que atinge as populações não-brancas em geral e o negro em particular, no momento em que a nação brasileira emerge para o desenvolvimento do modelo de capitalismo dependente.

Essa desarticulação não se realiza, porém, apenas no plano estrutural, mas desarticula, também, a consciência étnica do próprio segmento não-branco.

O branqueamento como ideologia das elites de poder vai se refletir no comportamento de grande parte do segmento dominado que começa a fugir das suas matrizes étnicas, para mascarar-se com os valores criados para discriminá-lo.

Com isto o negro (o mulato, portanto, também) não se articulou em nível de uma consciência de identidade étnica capa/ de criar uma contra-ideologia neutralizadora da manipulada pelo dominador.

Pelo contrário. Há um processo de acomodação a estes valores, fato que irá determinar o esvaziamento desses negros no nível da sua consciência étnica, colocando-os, assim, como simples objetos do processo histórico, social e cultural.

A herança da escravidão que muitos sociólogos dizem estar no negro, ao contrário, está nas classes dominantes que criam valores discriminatórios através dos quais conseguem barrar, nos níveis econômico, social, cultural e existencial a emergência de uma consciência crítica negra capaz de elaborar uma proposta de nova ordenação social e de estabelecer uma verdadeira democracia racial no Brasil.

O sistema classificatório que o colonizador português impôs, criou a categoria de mulato que entra como dobradiça amortecedora dessa consciência. O mulato é diferente do negro por ser mais claro e passa a se considerar superior, assimilando a ideologia étnica do dominador, e servir de anteparo contra essa tomada de consciência geral do segmento explorado/discriminado.

Em outro local já escrevemos que:

essa política aparentemente democrática do colonizador verá os seus primeiros frutos mais visíveis na base do aparecimento de uma imprensa mulata no Rio de Janeiro.

Ela surgirá entre 1833 e 1867, aproximadamente, com caráter nacionalista, de um lado, porém deixa de incorporar à sua mensagem ideológica a libertação dos escravos negros.

Esses jornais lutavam também contra a discriminação racial, mas na medida em que os mulatos eram atingidos na dinâmica da disputa de cargos políticos e burocráticos.9

Essa perda ou fragmentação da identidade étnica determinará, por sua vez, a impossibilidade de emergir uma consciência mais abrangente e radical do segmento negro e não-branco em geral.

Estratégia de imobilismo social

Esta estratégia discriminatória contra o elemento negro não surgiu porém com a chegada dos imigrantes europeus na base do trabalho livre. Na própria estrutura escravista já havia um processo discriminatório que favorecia o homem livre em detrimento do escravo.

De todas as profissões de artesãos e artífices, eles foram sendo paulatinamente excluídos ou impedidos de exercê-las. Manuela Carneiro da Cunha escreve com propriedade:

Todas essas profissões eram igualmente desempenhadas por libertos e por livres, e certamente houve em certas épocas concorrência acirrada das várias categorias por elas. Um decreto de 25 de junho de 1831, por exemplo, proibia “a admissão de escravos como trabalhadores ou como oficiais das artes necessárias nas estações públicas da província da Bahia, enquanto houverem ingênuos que nelas queirão empregarse”. (Nabuco Araújo, v. 7, 328-9, e Colleção das Leis do Império, 1830:24).

Deve-se ter em conta que os escravos representavam nâo os seus próprios interesses, mas os de seus senhores, que procuravam ocupar totalmente o mercado de trabalho. (…) Em 1813 e 1821, os sapateiros do Rio protestaram através da sua Irmandade) contra o imo do trabalho escravo na manufatura e venda de sapatos (M. Karasch, 1975:388).

Brancos brasileiros, crioulos e africanos libertos, além de escravos de ganho, competiam no mercado do trabalho entro sl o com os estrangeiros, europeus que vinham para a Corte (…) Houve também algumas tentativas mais ou menos bem-sucedidas de monopolizar certos setores, por parte dos escravos libertos urbanos.

Sabemos de alguns exemplos. Um desses monopólios era o dos carregadores de calo no Rio do Janeiro do século-XIX: os negros minas, escravos do ganho ou libertos, tinham aparentemente se apropriado do ramo. Era um serviço pesadíssimo, que implicava deformidades e uma esperança de vida reduzida”‘10

Como vemos, à medida que a sociedade escrava se diversificava e se urbanizava, ficava mais complexa internamente a divisão do trabalho e isto produzia conflitos ou atritos nos seus diversos setores de mão-de-obra.

A estrutura ocupacional dessa época, na medida que passava por um processo de diferenciação econômica, criava mecanismos reguladores capazes de manter os diversos segmentos que disputavam esse mercado de trabalho nos seus respectivos espaços.

A isto se contrapunham mecanismos criados pelos próprios escravos no sentido de equilibrar a divisão do trabalho; os cantos, em Salvador, foram um exemplo.

Segundo Manuel Querino:

Os africanos, depois de libertos, não possuindo oficio e não querendo entregar-se aos trabalhos da lavoura, que haviam deixado, faziam-se ganhadores. Em diversas partes da cidade reuniam-se à espora que fossem chamados para a condução de volumes pesados ou leves, como fossem: cadeirinha de arruar, pipas de vinho ou aguardente, planos etc. Esses pontos tinham ó nome de canto e por Isso era comum ouvir a cada momento: chame ali um ganhador no canto. Ficavam eles sentados em trlpeças a conversar até serem chamados para o desempenho de qualquer misteres. (…) Cada canto de africanos era dirigido por um chefe a que apelidavam capitão restringindo-se as funções deste a contratar e dirigir os serviços e a receber os salários. Quando falecia o capitão tratavam de eleger ou aclamar o sucessor que assumia logo a investidura do cargo.

Nos cantos do bairro comercial, esse ato revestia-se de certa solenidade á moda africana: Os membros do canto tomavam de empréstimo uma pipa vazia em um dos trapiches da Rua do Julião ou do Pilar, enchiam-na de aguado mar, amarravam-na de cordas e por estas enfiavam grosso e comprido caibro. Oito ou dez etíopes, comumente os de musculatura mais possante, suspendiam a pipa e sobre ela montava o novo capitão do canto, tendo em uma das mãos um ramo de arbusto e na outra uma garrafa de aguardente.11

Já no período escravista, portanto, havia uma tendência a se ver no negro escravo um elemento que devia ser restringido no mercado de trabalho. Os motivos alegados, as razões apresentadas, apesar de aparentemente serem compreensíveis, o que conseguiram era — como se queria — transformar o trabalho escravo, e, em muitas circunstâncias o negro liberto, em mão-de-obra eternamente não-qualifiçada e que, por uma série de razões, não podia ser aproveitado.

Se estes mecanismos foram estabelecidos empiricamente durante o escravismo, após a Abolição eles se racionalizaram e as elites intelectuais procuraram dar, inclusive, uma explicação “científica” para eles, como veremos adiante.

Em determinada fase da nossa história econômica houve uma coincidência entre a divisão social do trabalho e a divisão racial do trabalho. Mas através de mecanismos repressivos ou simplesmente reguladores dessas relações ficou estabelecido que, em certos ramos, os brancos predominassem, e, em outros, os negros e os seus descendentes diretos predominassem.

Tudo aquilo que representava trabalho qualificado, intelectual, nobre, era exercido pela minoria branca, ao passo que todo subtrabalho, o trabalho não-qualificado, braçal, sujo e mal remunerado era praticado pelos escravos, inicialmente, em pelos negros livres após a Abolição.

Esta divisão do trabalho, reflexa de uma estrutura social rigidamente estratificada ainda persiste em nossos dias de forma significativa.

Assim como a sociedade brasileira não se democratizou nas suas rerações sociais fundamentais, também não se democratizou nas suas relações raciais. Por esta razão, aquela herança negativa que vem da forma como a sociedade escravista teve início e se desenvolveu, ainda tem presença no bojo da estrutura altamente competitiva do capitalismo dependente que se formou em seguida.

Por esta razão, aquela herança negativa que vem da forma como a sociedade escravista teve início e se desenvolveu, ainda tem presença no bojo da estrutura altamente competitiva do capitalismo dependente que se formou em seguida.

Por esta razão, a mobilidade social para o negro descendente do antigo escravo é muito pequena no espaço social. Ele foi praticamente imobilizado por mecanismos seletivos que a estratégia das classes dominantes estabeleceu. Para que isto funcionasse eficazmente foi criado um amplo painel ideológico para explicar e/ou justificar essa imobilização estrategicamente montada.

Passado quase um século da Abolição a situação não mudou significativamente na estrutura ocupacional para a população negra e não-branca.

De acordo com o Censo de 1980, de 119 milhões de brasileiros, 54,77% se declararam brancos; 38,45% pardos; 5, 89% pretos e 0,6.1% amarelos.

Podemos afirmar, portanto, que são descendentes de negros ou índios 44,34% da população. Por outro lado, ao invés do branqueamento preconizado pela elite branca essa proporção vem aumentando nas últimas décadas, pois ela era de 36% em 1940, 38% em 1950 e 45% em 1980, usando o IBGE a mesma metodologia na pesquisa.

Mas a população negra e não-branca de um modo geral não se distribui proporcionalmente na estrutura empregatícia e outros indicadores da sua situação econômico-social no conjunto da sociedade.

Pelo contrário. De acordo com o recenseamento de 1980 era esta a situação dos principais grupos étnicos quanto à sua ocupação principal:

Esta situação poderá ser facilmente verificada através da análise dos gráficos abaixo:

Não precisamos argumentar mais analiticamente para constatarmos que os negros e não-brancos em geral (excluindo-se os amarelos) são aqueles que possuem empregos e posições menos significativas social e economicamente.

Por outro lado, repete-se, cm 1980, o mesmo fato que Florestan Fernandes registra ao analisar uma estatística de 1893: O negro é o segmento mais inferiorizado da população.

Em 1893 ele não comparece como capitalista, Em 1980 ele comparece apenas com 0,4% na qualidade de empregador. Isto demonstra como os mecanismos de imobilismo social funcionaram eficientemente no Brasil, através de uma estratégia centenária, para impedir que o negro’ ascendesse significativamente na estrutura ocupacional e em outros indicadores de mobilidade social.

Como vemos, os imigrantes de 1893 estavam numa posição melhor do que os negros brasileiros, atualmente, segundo os dados do Censo de 1980.

Isto se reflete de várias maneiras e funciona ativamente na sociedade competitiva atual.

Criaram-se, em cima disto, duas pontes ideológicas: a primeira é de que com a miscigenação nós democratizamos a sociedade brasileira, criando aqui a maior democracia racial do mundo; a segunda de que os negros e demais segmentos não-brancos estão ha atual posição econômica, social e cultural a culpa é exclusivamente deles que não souberam aproveitar o grande leque de oportunidades que essa sociedade lhes deu.

Com isto, identifica-se o crime-e a marginalização com a população negra, transformando-se as populações não brancas em criminosos em potencial. Têm de andar com carteira profissional assinada, comportar-se bem nos lugares públicos, não reclamar dos seus direitos quando violados e, principalmente, encarar a polícia como um órgão de poder todo-poderoso que pode mandar um negro “passar correndo” ou jogá-lo em um camburão e eliminá-lo em uma estrada.

Negro se mata primeiro para depois saber se El criminoso é um slogan dos órgãos de segurança. Como podemos ver, a partir do momento em que o ex-escravo” entrou no mercado de trabalho competitivo foi altamente discriminado por uma série de mecanismos de peneiramento que determinava o seu imobilismo.

Além disso privilegiou-se o trabalhador branco estrangeiro, especialmente após a Abolição, o qual passou a ocupar os grandes espaços dinâmicos dessa sociedade. Surge, como um dos elementos dessa barragem, a ideologia do preconceito de cor que inferioriza o negro em todos os níveis da sua personalidade.

Esse preconceito que atua como elemento restritivo das possibilidades do negro. na sociedade brasileira poderá ser constatado: a) no comportamento rotineiro dc grandes faixas brancas da população em todo o território nacional b) nas relações inter e intra-familiares; c) no critério seletivo para a escolha de empregos e ocupações; d) nos contatos formais entre elementos de etnias diversas; e) na filosofia de indivíduo, grupos, segmentos e instituições públicas ou privadas; f) na competição global entre camadas que compõem as classes sociais etnicamente diversificadas da sociedade brasileira.

Este conjunto de mecanismos ideológicos, inconscientes para a maioria, mas elaborados por uma elite racista, refletir-se-á no processo concreto da seleção econômica dos negros. A instrumentação dessa ideologia deve ser vista como um elemento componente da marginalização de grandes continentes populacionais negros.

Pesquisa realizada e concluída em 1979 — portanto apenas um ano antes da divulgação do censo de 1980 —, pelo Departamento de Estudos e Indicadores Sociais (Deiso), chega à conclusão que não deixa dúvidas quanto a este mecanismo selecionador negativo contra o negro no mercado de trabalho. Ainda acompanhando-se, por agora, apenas o indicador de rendimento familiar, conclui a pesquisa:

Com relação aos indicadores levantados, os diferenciais são maiores entre os brancos e negros nas famílias de rendimento familiar de mais de três salários mínimos e nas famílias urbanas. A distribuição das famílias por grupos de rendimento mensal familiar nos indica que 60% das famílias têm rendimentos de até três salários mínimos, sendo que a presença das famílias pretas e pardas neste grupo é de 80,5% e 74,2%, respectivamente, e a das brancas de 50,4%.

O rendimento médio familiar per capita, em 1976, das famílias brancas era de Cr$ 1 087,40 e das famílias negras (pretas e pardas) respectivamente Cr$ 383,10 e Cr$ 548,90, correspondendo o rendimento das famílias pretas e pardas a 35% e 50%, respectivamente, do rendimento familiar per capita das famílias brancas.12

No setor da divisão do trabalho a mesma pesquisa registra os seguintes resultados quanto à posição do negro:

Brancos e negros têm uma inserção desigual na estrutura ocupacional. Os negros encontram-se mais concentrados (aproximadamente 90%) que os brancos (cerca de 75%) nas ocupações manuais, as de menor nível de rendimento e instrução.

Assim, enquanto 8,5% dos brancos têm ocupações de nível superior apenas 1,1% dos pretos e 2,7% dos pardos neles são absorvidos e, considerando as ocupações de nível médio, os percentuais encontrados são de 14,6% para os brancos, 3,6% dos pretos e 7,2% dos pardos.13

Como vemos, na estrutura ocupacional, como em outras, a situação do negro é sempre negativa, sempre de inferiorização em comparação com o segmento branco da nossa população.

Outra pesquisa como a do IBGE, numa Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, chega a conclusão idêntica como podemos ver no quadro abaixo:

Como vemos, a estratégia racista das classes dominantes atuais, que substituíram os senhores de escravos, conseguiu estabelecer um permanente processo de imobilismo social que bloqueou e congelou população negra e não-branca permanentemente em nível nacional.

No que diz respeito à distribuição da renda o gráfico abaixo espelha essa realidade:

O Brasil teria de ser branco e capitalista

O auge da campanha pelo branqueamento do Brasil surge exatamente no momento em que o trabalho escravo (negro) é descartado e substituído pelo assalariado. Aí coloca-se o dilema do passado com o futuro, do atraso com o progresso e do negro com o branco como trabalhadores.

O primeiro representaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o branco (europeu) era o símbolo do trabalho ordenado, pacífico e progressista.

Desta forma, para se modernizar e desenvolver o Brasil só havia um caminho: colocar no lugar do negro o trabalhador imigrante, descartar o país dessa carga passiva, exótica, fetichista e perigosa por uma população cristã, europeia e morigerada.

Todo o racismo embutido na campanha abolicionista vem, então, à tona. Já não era mais acabar-se com a escravidão, mas enfatizar-se que os negros eram incapazes ou incapacitados para a nova etapa de desenvolvimento do país.

Todos achavam que eles deviam ser substituídos pelo trabalhador branco, suas crenças deviam ser combatidas, pois não foram cristianizados suficientemente, enquanto o italiano, o alemão, o espanhol, o português, ou outras nacionalidades europeias, viriam trazer não apenas o seu trabalho, mas a cultura ocidental, ligada histórica e socialmente às nossas tradições latinas.

Alguns políticos tentam inclusive introduzir imigrantes que fugiam aos padrões europeus, como os chineses e mesmo africanos. A grita foi geral. Precisávamos melhorar o sangue, a raça.

O historiador José Octávio escreve neste sentido que:

Se a providência pela qual, segundo o paraibano Maurílio Almeida tanto se bateria o paraibano Diogo Velho quando da sua passagem pelo Ministério da Agricultura do Império, já refletia a tendência de buscar-se alternativa para a mão-de-obra negro-escrava dentro dos ideais de caldeamento com “grupos superiores” perseguidos pela elite dirigente do Brasil, a resposta de Menezes e Souza, preparada como relatório formal do Ministério da Agricultura, em 1875, é preconceituosa e típica de que não se trata de importar grupos estrangeiros quaisquer que fossem, mas grupos estrangeiros brancos e do Norte europeu, o que situa a política imigratória adotada pelo Brasil em fins do Império e princípios da República como de fundo racista no sentido arianizante que a palavra passou a admitir. Nesses termos, Menezes e Souza não usava de meias palavras ao denegrir os chineses, cuja raça ” é abastardada e faz degenerar a nossa”, tanto mais porque ” o Brasil precisava de sangue novo e não de suco envelhecido e envenenado de constituições exaustas e degeneradas”.14

O problema não era apenas importar-se mão-de-obra, mas sim membros de uma raça mais nobre, ou melhor, caucásica, branca, europeia e por todas essas qualidades superior.

A ideologia do branqueamento permeia então o pensamento de quase toda a produção intelectual do Brasil e subordina ideologicamente as classes dominantes. Importar o negro, isto ficava fora de qualquer cogitação.

Em 1920 (ano inclusive em que entra a imigração sistemática de japoneses, em face da dificuldade de se importar mão-de-obra europeia em consequência da Primeira Guerra Mundial) foi realizada uma pesquisa para saber-se se o imigrante negro seria benéfico ao Brasil ou não.

A pesquisa foi feita pela Sociedade Nacional de Agricultura e as conclusões foram de que ele seria indesejável. Nas respostas negativas funcionava a mesma ideologia.

Vejamos os resultados:

Condição social Escravo Trabalhador livre Total
Costureiras 67 583 650
Mineiros e cant. (sic) 1 41 42
Trab. em metais 19 218 237
Trab. em madeiras 33 260 293
Trab. em edificações 25 130 155
Trab. em tecidos 124 856 990
Trab. em vestuário 2 102 104
Trab. em couro e pape 30 189 219
Trab. em calçados 5 58 63
Trab. em agricultura 826 3 747 4 563
Criados e jornais 507 2 535 3 042
Serviços domésticos 1 304 3 506 4 810
Sem profissão 677 8 244 8 921

Fonte: Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia.

Os negros não eram somente os trabalhadores do eito, que se prestavam apenas para as fainas agrícolas duras e nas quais o simples trabalho braçal primário era necessário. Na diversificação da divisão do trabalho eles entravam nas mais diversas atividades, especialmente no setor artesanal. Em alguns ramos eram mesmo os mais capazes como, por exemplo, na metalurgia cujas técnicas trazidas da África foram aqui aplicadas e desenvolvidas. Na região mineira^por exemplo, foram os .únicos que aplicaram e desenvolveram a metalurgia. Tiveram também a habilidade de aprenderem com grande facilidade os ofícios que aqueles primeiros portugueses que aqui aportaram trouxeram da Metrópole. Eles tinham mesmo interesse de ensiná-los aos escravos a fim de se livrarem de um tipo de trabalho não-condizente com a sua condição de brancos, deixando ao negro as atividades artesanais. Mesmo porque o trabalho desses escravos, executados para os seus donos, ou quando alugados para terceiros, proporcionava um lucro certo c fácil para o senhor. Isto dava-lhes oportunidade de capitalizarem alguma poupança c se dedicarem ao comércio. A personagem Bertoleza do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, retrata muito bem esse tipo de escravo urbano que trabalhava de jornal. Era escrava de um cego que dela recebia a contribuição com a qual sobrevivia. Mas os negros também “tiveram ampla e brilhante participação nas atividades de todos os ofícios mecânicos exercidos entre nós, quer como escravo, quer como libertos, ora como oficial ou simples ajudante, e até mesmo como mestres. Ensinavam-lhes um ou mais ofícios e exploravam-nos rudemente, vivendo à custa de seu trabalho”.5

Escreve, neste sentido, J. F. de Almeida Prado:

Os primeiros operários aparecidos nas capitanias especializados em misteres que requeriam alguma aprendizagem e tirocínio, chegavam feitos do Reino ou das ilhas, muitas vezes sem intenção de se demorarem, tendo deixado na terra natal a esposa e os filhos. Mais tarde, outros se formavam sob as vistas dos reinóis, transmitindo o ofício daí por diante aos pretos e mestiços. Com o tempo, chegaram os elementos de cor a constituir a quase totalidade dos obreiros da autarquia colônia, por refugarem os brancos profissões manuais procurando tornar-se proprietários de terras.6

Tanto na época colonial como na última fase da escravidão o escravo negro se articulava em diversos níveis da estrutura ocupacional, desempenhando satisfatoriamente os mais diferenciados misteres, agroindústria do açúcar o mesmo fato se verifica. Para Luiz

Vianna Filho:

Mal chegados os negros logo assimilavam o que se lhes ensinava, transformando-se em ferreiros, carapinas, marceneiros, caldeireiros, oleiros, alambiqueiros, e até mesmo mestres de açúcar, sabendo o cozimento do mel, o “ponto” do caldo, a purga do açúcar.7

Durante todo o tempo em que o escravismo existiu o escravo negro foi aquele trabalhador que estava presente em todos os ofícios por mais diversificados que eles fossem. Sua força de trabalho era distribuída em todos os setores de atividade. No Rio de Janeiro especialmente sabemos que ele, como escravo urbano, desempenhava as mais variadas profissões a fim de proporcionar o ócio da classe senhorial. Como prova, basta que olhemos as pranchas do livro de Debret.8

Queremos dizer com isto que na dinâmica da sociedade escravista atuou, durante toda a sua existência, como mecanismo equilibrador c impulsionador, o trabalho do escravo negro. Esse mecanismo de equilíbrio e dinamismo, já que as classes senhoriais fugiam a qualquer tipo de trabalho, será atingido quando se desarticula o sistema escravista e a sociedade brasileira é reestruturada tendo o trabalho livre como forma fundamental de atividade. O equilíbrio se parte contra o ex-escravo que é desarticulado e marginalizado do sistema de produção.

Toda essa força de trabalho escrava, relativamente diversificada, integrada e estruturada em um sistema de produção, desarticulou-se, portanto, com a decomposição do modo de produção escravista: ou se marginaliza, ou se deteriora de forma parcial ou absoluta com a morte de grande parte dos ex-escravos. Esses ourives, alfaiates, pedreiros, marceneiros, tanoeiros, metalúrgicos etc, ao tentarem se reordenar na sociedade capitalista emergente, são por um processo de peneiramento constante e estrategicamente bem manipulado, considerados como mão-de-obra não-aproveitável e/marginalizados. Surge, concomitantemente, o mito da incapacidade do negro para o trabalho e, com isto, ao tempo em que se proclama a existência de uma democracia racial, apregoa-se, por outro lado, a impossibilidade de se aproveitar esse enorme contingente de ex-escravos. O preconceito de cor é assim dinamizado no contexto capitalista, os elementos não brancos passam a ser estereotipados como indolentes, cachaceiros, não-persistentes no trabalho e, em contrapartida, por extensão, apresenta- se o trabalhador branco como o modelo do perseverante, honesto, de hábitos morigerados e tendências à poupança e à estabilidade no emprego. Elege-se o modelo branco como sendo o do trabalhador ideal e apela-se para uma política migratória sistemática e subvencionada, alegando-se a necessidade de se dinamizar a nossa economia através da importação de um trabalhador superior do ponto de vista racial e cultural e capaz de suprir, com a sua mão-de-obra, as necessidades da sociedade brasileira em expansão. Veremos isto depois.

Há uma visível desarticulação nessa nova ordenação que atinge as populações não-brancas em geral e o negro em particular, no momento em que a nação brasileira emerge para o desenvolvimento do modelo de capitalismo dependente. Essa desarticulação não se realiza, porém, apenas no plano estrutural, mas desarticula, também, a consciência étnica do próprio segmento não-branco.

O branqueamento como ideologia das elites de poder vai se refletir no comportamento de grande parte do segmento dominado que começa a fugir das suas matrizes étnicas, para mascarar-se com os valores criados para discriminá-lo. Com isto o negro (o mulato, portanto, também) não se articulou em nível de uma consciência de identidade étnica capa/ de criar uma contra-ideologia neutralizadora da manipulada pelo dominador. Pelo contrário. Há um processo de acomodação a estes valores, fato que irá determinar o esvaziamento desses negros no nível da sua consciência étnica, colocando-os, assim, como simples objetos do processo histórico, social e cultural.

A herança da escravidão que muitos sociólogos dizem estar no negro, ao contrário, está nas classes dominantes que criam valores discriminatórios através dos quais conseguem barrar, nos níveis econômico, social, cultural e existencial a emergência de uma consciência crítica negra capaz de elaborar uma proposta de nova ordenação social e de estabelecer uma verdadeira democracia racial no Brasil.

O sistema classificatório que o colonizador português impôs, criou a categoria de mulato que entra como dobradiça amortecedora dessa consciência. O mulato é diferente do negro por ser mais claro e passa a se considerar superior, assimilando a ideologia étnica do dominador, e servir de anteparo contra essa tomada de consciência geral do segmento explorado/discriminado. Em outro local já escrevemos que:

essa política aparentemente democrática do colonizador verá os seus primeiros frutos mais visíveis na base do aparecimento de uma imprensa mulata no Rio de Janeiro. Ela surgirá entre 1833 e 1867, aproximadamente, com caráter nacionalista, de um lado, porém deixa de incorporar à sua mensagem ideológica a libertação dos escravos negros. Esses jornais lutavam também contra a discriminação racial, mas na medida em que os mulatos eram atingidos na dinâmica da disputa de cargos políticos e burocráticos.9

Essa perda ou fragmentação da identidade étnica determinará, por sua vez, a impossibilidade de emergir uma consciência mais abrangente e radical do segmento negro e não-branco em geral.

3. Estratégia de imobilismo social

Esta estratégia discriminatória contra o elemento negro não surgiu porém com a chegada dos imigrantes europeus na base do trabalho livre. Na própria estrutura escravista já havia um processo discriminatório que favorecia o homem livre em detrimento do escravo. De todas as profissões de artesãos e artífices, eles foram sendo paulatinamente excluídos ou impedidos de exercê-las. Manuela Carneiro da Cunha escreve com propriedade:

Todas essas profissões eram igualmente desempenhadas por libertos e por livres, e certamente houve em certas épocas concorrência acirrada das várias categorias por elas. Um decreto de 25 de junho de 1831, por exemplo, proibia “a admissão de escravos como trabalhadores ou como oficiais das artes necessárias nas estações públicas da província da Bahia, enquanto houverem ingênuos que nelas queirão empregarse”. (Nabuco Araújo, v. 7, 328-9, e Colleção das Leis do Império, 1830:24). Deve-se ter em conta que os escravos representavam nâo os seus próprios interesses, mas os de seus senhores, que procuravam ocupar totalmente o mercado de trabalho. (…) Em 1813 e 1821, os sapateiros do Rio protestaram através da sua Irmandade) contra o imo do trabalho escravo na manufatura e venda de sapatos (M. Karasch, 1975:388). Brancos brasileiros, crioulos e africanos libertos, além de escravos de ganho, competiam no mercado do trabalho entro sl o com os estrangeiros, europeus que vinham para a Corte (…) Houve também algumas tentativas mais ou menos bem-sucedidas de monopolizar certos setores, por parte dos escravos libertos urbanos. Sabemos de alguns exemplos. Um desses monopólios era o dos carregadores de calo no Rio do Janeiro do século-XIX: os negros minas, escravos do ganho ou libertos, tinham aparentemente se apropriado do ramo. Era um serviço pesadíssimo, que implicava deformidades e uma esperança de vida reduzida”‘10

Como vemos, à medida que a sociedade escrava se diversificava e se urbanizava, ficava mais complexa internamente a divisão do trabalho e isto produzia conflitos ou atritos nos seus diversos setores de mão-de-obra. A estrutura ocupacional dessa época, na medida que passava por um processo de diferenciação econômica, criava mecanismos reguladores capazes de manter os diversos segmentos que disputavam esse mercado de trabalho nos seus respectivos espaços.

A isto se contrapunham mecanismos criados pelos próprios escravos no sentido de equilibrar a divisão do trabalho; os cantos, em Salvador, foram um exemplo.

Segundo Manuel Querino:

Os africanos, depois de libertos, não possuindo oficio e não querendo entregar-se aos trabalhos da lavoura, que haviam deixado, faziam-se ganhadores. Em diversas partes da cidade reuniam-se à espora que fossem chamados para a condução de volumes pesados ou leves, como fossem: cadeirinha de arruar, pipas de vinho ou aguardente, planos etc. Esses pontos tinham ó nome de canto e por Isso era comum ouvir a cada momento: chame ali um ganhador no canto. Ficavam eles sentados em trlpeças a conversar até serem chamados para o desempenho de qualquer misteres. (…) Cada canto de africanos era dirigido por um chefe a que apelidavam capitão restringindo-se as funções deste a contratar e dirigir os serviços e a receber os salários. Quando falecia o capitão tratavam de eleger ou aclamar o sucessor que assumia logo a investidura do cargo.

Nos cantos do bairro comercial, esse ato revestia-se de certa solenidade á moda africana: Os membros do canto tomavam de empréstimo uma pipa vazia em um dos trapiches da Rua do Julião ou do Pilar, enchiam-na de aguado mar, amarravam-na de cordas e por estas enfiavam grosso e comprido caibro. Oito ou dez etíopes, comumente os de musculatura mais possante, suspendiam a pipa e sobre ela montava o novo capitão do canto, tendo em uma das mãos um ramo de arbusto e na outra uma garrafa de aguardente.11

Já no período escravista, portanto, havia uma tendência a se ver no negro escravo um elemento que devia ser restringido no mercado de trabalho. Os motivos alegados, as razões apresentadas, apesar de aparentemente serem compreensíveis, o que conseguiram era — como se queria — transformar o trabalho escravo, e, em muitas circunstâncias o negro liberto, em mão-de-obra eternamente não-qualifiçada e que, por uma série de razões, não podia ser aproveitado.

Se estes mecanismos foram estabelecidos empiricamente durante o escravismo, após a Abolição eles se racionalizaram e as elites intelectuais procuraram dar, inclusive, uma explicação “científica” para eles, como veremos adiante.

Em determinada fase da nossa história econômica houve uma coincidência entre a divisão social do trabalho e a divisão racial do trabalho. Mas através de mecanismos repressivos ou simplesmente reguladores dessas relações ficou estabelecido que, em certos ramos, os brancos predominassem, e, em outros, os negros e os seus descendentes diretos predominassem. Tudo aquilo que representava trabalho qualificado, intelectual, nobre, era exercido pela minoria branca, ao passo que todo subtrabalho, o trabalho não-qualificado, braçal, sujo e mal remunerado era praticado pelos escravos, inicialmente, em pelos negros livres após a Abolição.

Esta divisão do trabalho, reflexa de uma estrutura social rigidamente estratificada ainda persiste em nossos dias de forma significativa. Assim como a sociedade brasileira não se democratizou nas suas rerações sociais fundamentais, também não se democratizou nas suas relações raciais. Por esta razão, aquela herança negativa que vem da forma como a sociedade escravista teve início e se desenvolveu, ainda tem presença no bojo da estrutura altamente competitiva do capitalismo dependente que se formou em seguida. Por esta razão, a mobilidade social para o negro descendente do antigo escravo é muito pequena no espaço social. Ele foi praticamente imobilizado por mecanismos seletivos que a estratégia das classes dominantes estabeleceu. Para que isto funcionasse eficazmente foi criado um amplo painel ideológico para explicar e/ou justificar essa imobilização estrategicamente montada. Passado quase um século da Abolição a situação não mudou significativamente na estrutura ocupacional para a população negra e não-branca.

De acordo com o Censo de 1980, de 119 milhões de brasileiros, 54,77% se declararam brancos; 38,45% pardos; 5, 89% pretos e 0,6.1% amarelos. Podemos afirmar, portanto, que são descendentes de negros ou índios 44,34% da população. Por outro lado, ao invés do branqueamento preconizado pela elite branca essa proporção vem aumentando nas últimas décadas, pois ela era de 36% em 1940, 38% em 1950 e 45% em 1980, usando o IBGE a mesma metodologia na pesquisa.

Mas a população negra e não-branca de um modo geral não se distribui proporcionalmente na estrutura empregatícia e outros indicadores da sua situação econômico-social no conjunto da sociedade. Pelo contrário. De acordo com o recenseamento de 1980 era esta a situação dos principais grupos étnicos quanto à sua ocupação principal:

Esta situação poderá ser facilmente verificada através da análise dos gráficos abaixo:

Não precisamos argumentar mais analiticamente para constatarmos que os negros e não-brancos em geral (excluindo-se os amarelos) são aqueles que possuem empregos e posições menos significativas social e economicamente. Por outro lado, repete-se, cm 1980, o mesmo fato que Florestan Fernandes registra ao analisar uma estatística de 1893: O negro é o segmento mais inferiorizado da população.

Em 1893 ele não comparece como capitalista, Em 1980 ele comparece apenas com 0,4% na qualidade de empregador. Isto demonstra como os mecanismos de imobilismo social funcionaram eficientemente no Brasil, através de uma estratégia centenária, para impedir que o negro’ ascendesse significativamente na estrutura ocupacional e em outros indicadores de mobilidade social. Como vemos, os imigrantes de 1893 estavam numa posição melhor do que os negros brasileiros, atualmente, segundo os dados do Censo de 1980. Isto se reflete de várias maneiras e funciona ativamente na sociedade competitiva atual.

Criaram-se, em cima disto, duas pontes ideológicas: a primeira é de que com a miscigenação nós democratizamos a sociedade brasileira, criando aqui a maior democracia racial do mundo; a segunda de que os negros e demais segmentos não-brancos estão ha atual posição econômica, social e cultural a culpa é exclusivamente deles que não souberam aproveitar o grande leque de oportunidades que essa sociedade lhes deu. Com isto, identifica-se o crime-e a marginalização com a população negra, transformando-se as populações não brancas em criminosos em potencial. Têm de andar com carteira profissional assinada, comportar-se bem nos lugares públicos, não reclamar dos seus direitos quando violados e, principalmente, encarar a polícia como um órgão de poder todo-poderoso que pode mandar um negro “passar correndo” ou jogá-lo em um camburão e eliminá-lo em uma estrada. Negro se mata primeiro para depois saber se El criminoso é um slogan dos órgãos de segurança. Como podemos ver, a partir do momento em que o ex-escravo” entrou no mercado de trabalho competitivo foi altamente discriminado por uma série de mecanismos de peneiramento que determinava o seu imobilismo. Além disso privilegiou-se o trabalhador branco estrangeiro, especialmente após a Abolição, o qual passou a ocupar os grandes espaços dinâmicos dessa sociedade. Surge, como um dos elementos dessa barragem, a ideologia do preconceito de cor que inferioriza o negro em todos os níveis da sua personalidade. Esse preconceito que atua como elemento restritivo das possibilidades do negro. na sociedade brasileira poderá ser constatado: a) no comportamento rotineiro dc grandes faixas brancas da população em todo o território nacional b) nas relações inter e intra-familiares; c) no critério seletivo para a escolha de empregos e ocupações; d) nos contatos formais entre elementos de etnias diversas; e) na filosofia de indivíduo, grupos, segmentos e instituições públicas ou privadas; f) na competição global entre camadas que compõem as classes sociais etnicamente diversificadas da sociedade brasileira. Este conjunto de mecanismos ideológicos, inconscientes para a maioria, mas elaborados por uma elite racista, refletir-se-á no processo concreto da seleção econômica dos negros. A instrumentação dessa ideologia deve ser vista como um elemento componente da marginalização de grandes continentes populacionais negros.

Pesquisa realizada e concluída em 1979 — portanto apenas um ano antes da divulgação do censo de 1980 —, pelo Departamento de Estudos e Indicadores Sociais (Deiso), chega à conclusão que não deixa dúvidas quanto a este mecanismo selecionador negativo contra o negro no mercado de trabalho. Ainda acompanhando-se, por agora, apenas o indicador de rendimento familiar, conclui a pesquisa:

Com relação aos indicadores levantados, os diferenciais são maiores entre os brancos e negros nas famílias de rendimento familiar de mais de três salários mínimos e nas famílias urbanas. A distribuição das famílias por grupos de rendimento mensal familiar nos indica que 60% das famílias têm rendimentos de até três salários mínimos, sendo que a presença das famílias pretas e pardas neste grupo é de 80,5% e 74,2%, respectivamente, e a das brancas de 50,4%.

O rendimento médio familiar per capita, em 1976, das famílias brancas era de Cr$ 1 087,40 e das famílias negras (pretas e pardas) respectivamente Cr$ 383,10 e Cr$ 548,90, correspondendo o rendimento das famílias pretas e pardas a 35% e 50%, respectivamente, do rendimento familiar per capita das famílias brancas.12

No setor da divisão do trabalho a mesma pesquisa registra os seguintes resultados quanto à posição do negro:

Brancos e negros têm uma inserção desigual na estrutura ocupacional. Os negros encontram-se mais concentrados (aproximadamente 90%) que os brancos (cerca de 75%) nas ocupações manuais, as de menor nível de rendimento e instrução. Assim, enquanto 8,5% dos brancos têm ocupações de nível superior apenas 1,1% dos pretos e 2,7% dos pardos neles são absorvidos e, considerando as ocupações de nível médio, os percentuais encontrados são de 14,6% para os brancos, 3,6% dos pretos e 7,2% dos pardos.13

Como vemos, na estrutura ocupacional, como em outras, a situação do negro é sempre negativa, sempre de inferiorização em comparação com o segmento branco da nossa população. Outra pesquisa como a do IBGE, numa Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, chega a conclusão idêntica como podemos ver no quadro abaixo:

Como vemos, a estratégia racista das classes dominantes atuais, que substituíram os senhores de escravos, conseguiu estabelecer um permanente processo de imobilismo social que bloqueou e congelou população negra e não-branca permanentemente em nível nacional.

No que diz respeito à distribuição da renda o gráfico abaixo espelha essa realidade:

4.O Brasil teria de ser branco e capitalista

O auge da campanha pelo branqueamento do Brasil surge exatamente no momento em que o trabalho escravo (negro) é descartado e substituído pelo assalariado. Aí coloca-se o dilema do passado com o futuro, do atraso com o progresso e do negro com o branco como trabalhadores. O primeiro representaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o branco (europeu) era o símbolo do trabalho ordenado, pacífico e progressista. Desta forma, para se modernizar e desenvolver o Brasil só havia um caminho: colocar no lugar do negro o trabalhador imigrante, descartar o país dessa carga passiva, exótica, fetichista e perigosa por uma população cristã, europeia e morigerada.

Todo o racismo embutido na campanha abolicionista vem, então, à tona. Já não era mais acabar-se com a escravidão, mas enfatizar-se que os negros eram incapazes ou incapacitados para a nova etapa de desenvolvimento do país. Todos achavam que eles deviam ser substituídos pelo trabalhador branco, suas crenças deviam ser combatidas, pois não foram cristianizados suficientemente, enquanto o italiano, o alemão, o espanhol, o português, ou outras nacionalidades europeias, viriam trazer não apenas o seu trabalho, mas a cultura ocidental, ligada histórica e socialmente às nossas tradições latinas. Alguns políticos tentam inclusive introduzir imigrantes que fugiam aos padrões europeus, como os chineses e mesmo africanos. A grita foi geral. Precisávamos melhorar o sangue, a raça.

O historiador José Octávio escreve neste sentido que:

Se a providência pela qual, segundo o paraibano Maurílio Almeida tanto se bateria o paraibano Diogo Velho quando da sua passagem pelo Ministério da Agricultura do Império, já refletia a tendência de buscar-se alternativa para a mão-de-obra negro-escrava dentro dos ideais de caldeamento com “grupos superiores” perseguidos pela elite dirigente do Brasil, a resposta de Menezes e Souza, preparada como relatório formal do Ministério da Agricultura, em 1875, é preconceituosa e típica de que não se trata de importar grupos estrangeiros quaisquer que fossem, mas grupos estrangeiros brancos e do Norte europeu, o que situa a política imigratória adotada pelo Brasil em fins do Império e princípios da República como de fundo racista no sentido arianizante que a palavra passou a admitir. Nesses termos, Menezes e Souza não usava de meias palavras ao denegrir os chineses, cuja raça ” é abastardada e faz degenerar a nossa”, tanto mais porque ” o Brasil precisava de sangue novo e não de suco envelhecido e envenenado de constituições exaustas e degeneradas”.14

O problema não era apenas importar-se mão-de-obra, mas sim membros de uma raça mais nobre, ou melhor, caucásica, branca, europeia e por todas essas qualidades superior. A ideologia do branqueamento permeia então o pensamento de quase toda a produção intelectual do Brasil e subordina ideologicamente as classes dominantes. Importar o negro, isto ficava fora de qualquer cogitação.

Em 1920 (ano inclusive em que entra a imigração sistemática de japoneses, em face da dificuldade de se importar mão-de-obra europeia em consequência da Primeira Guerra Mundial) foi realizada uma pesquisa para saber-se se o imigrante negro seria benéfico ao Brasil ou não. A pesquisa foi feita pela Sociedade Nacional de Agricultura e as conclusões foram de que ele seria indesejável. Nas respostas negativas funcionava a mesma ideologia.

Vejamos os resultados:

Como vemos, os resultados desta pesquisa já demonstram a cristalização de um processamento de rejeição absoluta ao negro por parte dos grupos que necessitavam de nova mão-de-obra. Essa cristalização bem esclarece como a ideologia do branqueamento penetrou profundamente na sociedade brasileira. Ela já tinha precedentes e teve continuadores. Este continuum discriminatório, que se iniciou com as Ordenações do Reino e prosseguiu nos representantes das classes dominantes até hoje, como veremos adiante. O que desejamos centrar aqui é o movimento chamado imigrantista de pensadores e políticos que antecederam a Abolição e que depois estabeleceram os mecanismos seletivos ideológicos, econômicos e institucionais, para a entrada do imigrante trabalhador.

Como acentua muito bem Thomas E. Skidmore:

Desde que a miscigenação funcionasse no sentido de promover o objetivo almejado, o gene branco “devia ser” mais forte. Ademais, durante o período alto do pensamento racial — 1880 a 1920 — a ideologia do “branqueamento” ganhou foros de legitimidade cientifica, de vez que as teorias racistas passaram a ser interpretadas pelos brasileiros como confirmação das suas ideias de que a raça superior — a branca — , acabaria por prevalecer no processo de amalgamação.15

E é justamente neste período de pique do pensamento racista apontado por Skidmore (1880 a 1920) que há a expansão violenta da economia cafeeira. Isto é, o dinamismo da agricultura procurava suprir-se da mão-de-obra de que necessitava nos grandes espaços pioneiros que se abriam e para isto o branco superior era escolhido e o “mascarvo nacional” (Afrânio Peixoto) descartado como inferior. Esta passagem do escravismo para o capitalismo dependente em tão curto período na região do Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente nesse último Estado, explica em grande parte os níveis de marginalização em que se encontra a população negra e não-branca em geral atualmente.

Antes da Abolição os imigrantistas apresentavam projetos para que os europeus fossem trazidos como mão-de-obra capaz de sincronizar- se com o surto de progresso da região.

Desta dupla realidade (a expansão econômica da área cafeeira e a formação racista das elites brasileiras) podemos ver que o que aconteceu não foi simplesmente uma ocupação de espaços de trabalho vazios por um imigrante que os vinha ocupar, mas sim a troca de um tipo de trabalhador por outro que era marginalizado antes de haver um plano de sua integração na nova fase de expansão. A ideologia racista atuou como mecanismo que, se não determinou, influiu de forma quase absoluta nesse processo. Remanipulam-se dois estereótipos de barragem contra a integração do negro no mercado de trabalho.

Um refere-se ao seu passado: como escravo era dócil. Outro ao seu presente: a sua ociosidade. Por outro lado, o imigrante não criaria mais problemas nesse processo de transição, pois já estava disciplinado. No seu devido tempo mostraremos que os fatos não corroboram esses estereótipos. O que aconteceu foi unia visão apriorística de que a grande massa não apenas egressa da senzala em 1888, mas aqueles que já compunham um contigente de mão-de-obra não aproveitada que antecede à Abolição, deveriam ser marginalizados para se colocar, no seu lugar, um trabalhador de acordo com a nova dinâmica da economia.

Ao que se saiba nenhum político, partido ou órgão do governo apresentou planos concretos e significativos e investiu neles no sentido de fixar e aproveitar essa mão-de-obra. Pelo contrário, todos os investimentos foram para o trabalhador estrangeiro. Com isto se afirmava antecipadamente que a mão-de-obra flutuante não prestava.

Criou-se a visão de que o trabalhador europeu se integrou porque era superior e o nacional, negro, não-branco de um modo geral, era incapaz para se integrar. Deste estereótipo não escapa inclusive um economista do porte de Celso Furtado. Escreve ele:

Seria de esperar, portanto, que ao proclamar-se esta, (a Abolição) ocorresse uma grande migração de mão-de-obra em direção das novas regiões em rápida expansão, as quais podiam pagar salários substancialmente mais altos. Sem embargo, é exatamente por essa época que tem início a formação da grande corrente migratória europeia para São Paulo. As vantagens que apresentava o trabalhador europeu com respeito ao ex-escravo são demasiado óbvias para insistir sobre elas.16

Em seguida, Celso Furtado apresenta as razões da superioridade do europeu sobre a massa trabalhadora nacional:

Quase não possuindo hábitos de vida familiar, a ideia de acumulação de riqueza lhe é praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas “necessidades”. Sendo o trabalho para o escravo uma maldição e o ócio o bem inalcançável, a elevação do seu salário acima de suas necessidades — que estão definidas pelo nível de subsistência pelo escravo — determina de imediato uma forte preferência pelo ócio.(…) Podendo satisfazer seus gastos de subsistência com dois ou três dias de trabalho por semana, ao antigo escravo parecia mais atrativo “comprar” o ócio que seguir trabalhando quando já tinha o suficiente “para viver”. Dessa forma, uma das consequências diretas da Abolição, nas regiões em mais rápido desenvolvimento, foi reduzir-se o grau de utilização da força de trabalho.(…) Cabe tão-somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a Abolição, retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento económico do país.17

Pelo pensamento de Celso Furtado, a culpa da segregação (marginalização) dos ex-escravos (e aqui está embutida a imagem dos negros e não-brancos) e componentes da massa de mão-de-obra nacional que foi transformada em excedente, foi decorrência do seu atraso mental, fato que conduziu ao entorpecimento da economia do país.

Para ele não havia saída a não ser aquela que se apresentou porque correspondia à necessidade de colocar-se um trabalhador mentalmente superior em face da ociosidade do negro, do mestiço, finalmente de todos aqueles que se encontravam sem ser integrados economicamente nessa fase de transição. Como prova disto é o fato de termos sempre, nesse processo de expansão, a participação do imigrante europeu. Seus hábitos afeitos à instituição familiar regular e outros de comportamento civilizados entravam como fatores que explicavam, de maneira aparentemente objetiva, a vantagem do trabalhador estrangeiro substituir o negro, ex-escravo e o não-branco em particular.18

Quando se quer fazer uma relação entre a necessidade da mão-de-obra e a imigração apresenta-se, como justificativa ou explicação, o número relativamente pequeno de escravos que foram libertados pela lei de 13 de maio (mais ou menos setecentos mil) e a grande expansão da economia cafeeira que necessitava de um número muito maior de trabalhadores nessa expansão econômica. Isto é artificial, argumento que não se deve considerar. Com isto apagar-se-ia artificialmente do mapa demográfico nacional e do seu potencial de trabalho a grande parcela disponível de mão-de-obra que antecedia à Abolição. Em 1882 tínhamos nas províncias de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio de Janeiro para 1 443 170 trabalhadores livres e 656 540 escravos uma massa de desocupados de 2 822 583. Essa era a realidade no processo de decomposição do sistema escravista: tínhamos, portanto, uma população trabalhadora sem ocupação maior do que o total de imigrantes que chegaram ao Brasil de 1851 a 1900.

Mas tudo isto era posto de lado, sob a alegação do “ócio” nacional.19 Vejamos como esses imigrantes chegaram:

Podemos reparar pelos dados acima, que há uma relação entre o processo de decomposição do sistema escravista e o ritmo de entrada de imigrantes europeus. Isto é: à medida que se tomam medidas para tirar o escravo do processo de trabalho estimula-se o mecanismo importador de imigrantes brancos. Inicialmente, com a proibição do tráfico, depois com a Lei do Ventre Livre. Com o movimento abolicionista o processo se amplia. À medida que segmentos escravos, por várias razões, eram afastados do sistema de produção, entrava, em contrapartida, uma população branca livre para substituí-los. Não é por acaso que logo depois da proclamação da República cria-se a Lei da Vadiagem para agir como elemento de repressão e controle social contra essa grande franja marginalizada de negros e não-brancos em geral.

No Rio de Janeiro essa seleção étnica feita pela classe empregadora em detrimento do trabalhador não-branco também se verifica. Em 1890, na indústria manufatureira, para 69,8% de brancos ocupados, o percentual negro era de 8,9% e mestiço 19,7%. Os chamados caboclos contribuíam apenas com 1,6% da mão-de-obra. Como vemos, esse continuum seletivo se mantém constante, desestruturando social e economicamente a população não-branca em geral que é colocada como massa marginalizada do modelo de capitalismo dependente.

Analisando esta época, o historiador José Jorge Siqueira afirma que:

Entre 1872 e 1900 a tendência foi de alta acelerada do crescimento populacional. Contribuíram para isto a inversão do fenômeno migratório cidade-campo, devido à fuga em massa do escravo negro aproveitando-se da crise que seria a derradeira do sistema escravista; o alto índice de crescimento natural da população (segundo o Censo de 1890, a variável que mais incrementa a estatística demográfica); e, por último a intensificação da migração europeia (principalmente de portugueses, no caso do Rio). Em 1906, o Rio de Janeiro era a única cidade brasileira com mais de 500 mil habitantes, vindo a seguir São Paulo e Salvador com pouco mais de 200 mil.20

No entanto, segundo o mesmo autor, nesse período:

para 822 empresários de manufatura dos diversos ramos industriais, temos 18 090 trabalhadores assalariados de alguma especialização técnica. Como a manufatura urbana no Rio de Janeiro contou também com o uso de trabalhadores escravos, lado a lado com os livres e assalariados, temos que aqueles representavam, neste ano, 13% do total da força de trabalho ocupada em atividades industriais. Havia, na cidade, 46. 804 escravos empregados em atividades diversas, malgrado o vultoso número de alforrias e o grau de desmantelamento do sistema.21

Por trás da ideologia de rejeição do trabalhador nacional, como veremos oportunamente, estavam os grandes investimentos feitos para trazer-se o imigrante europeu. Não se podia considerar inferior um artigo no qual se havia investido um capital considerável. Menezes Cortes, por isto, apresenta como um dos elementos das forças de atração para a vinda do imigrante europeu certas vantagens que lhes eram oferecidas:

É sabida a influência do conhecimento das possibilidades de emprego certo; sejam elas informadas por parentes, por amigos, ou mesmo através de agências de propaganda, não só nos países interessados na imigração, como também das empresas comerciais e transportes ferroviários e, principalmente, marítimo, as quais auferem lucros per capita dos transportados.22

Como vemos, já havia um processo de investimento capitalista nos mecanismos dinâmicos da política migratória. Onde isto não aconteceu o ex-escravo se integrou, embora em uma economia de miséria, mas de qualquer forma não foi marginalizado como no Sudeste, especialmente em São Paulo. Manoel Correia de Andrade afirma, por isto, ao descrever a situação do ex-escravo na região Nordeste:

Mas o que ocorreu em consequência da mesma (Abolição) na região canavieira do Nordeste? Aí já não existiam terras devolutas, de forma expressiva, para nelas se alojarem os ex-escravos e estes, libertos, não tiveram outra alternativa senão a de venderem a sua força de trabalho aos engenhos existentes. Os abolicionistas mais consequentes admitiam que a Abolição devia ser acompanhada de medidas que levassem à distribuição de terras devolutas com os libertos, a fim de que se transformassem em pequenos proprietários. Os conservadores, que assumiram o comando da campanha abolicionista na ocasião que compreenderam que a Abolição era um ato a se consumar, trataram de conceder a liberdade sem conceder terras, de vez que, conservando o monopólio da propriedade da terra teriam a mão-de-obra assalariada barata, face à inexistência, para o escravo, de uma opção que não fosse venda de sua força de trabalho aos antigos senhores. Assim, na região açucareira nordestina, com a Abolição, os escravos fizeram grandes fastas comemorativas e, em seguida, abandonaram, sem recursos, as terras dos seus senhores, saindo à procura de trabalho nas terras dos senhores de outros escravos. Houve, em consequência, uma redistribuição dos antigos cativos pelos vários engenhos e usinas, fazendo com que eles trocassem de senhores e passassem a viver com o magro salário que passaram a receber. O sistema utilizado, desde o começo do século, para os trabalhadores livres, foi aplicado aos escravos libertos, sendo os mesmos gradativamente absorvidos na massa da população pobre.23

Correia de Andrade coloca muito bem o problema e mostra como na região na qual não houve interesse do capitalismo mercantil no sentido de administrar a passagem do escravismo para o trabalho livre, o ex-escravo não demonstrou possuir aquele ócio sugerido por Celso Furtado. A falta de investimento, de capital, que objetivasse a substituição da mão-de-obra possibilitou a integração do ex-escravo.

Mas, como já havíamos escrito em outro local, o fato de não haver o negro das zonas de agricultura decadente se marginalizado na mesma proporção do paulista, não significa que ele tenha conseguido, ao integrar-se socialmente, padrões econômicos e culturais mais elevados do que os alcançados por aqueles que foram marginalizados em São Paulo. Eles conseguiram integrar-se em uma economia de miséria, com índices de crescimento e diferenciação baixíssimos, quase inexistentes.

Por estas razões os próprios indicadores para a formulação do conceito de marginalidade devem ser regionalizados, levando-se em conta essas diferenças, sem o que cairemos, inevitavelmente, em uma visão desfocada e impressionista do problema com as subsequentes interpretações formalistas e imprecisas.

Onde não houve possibilidade de se investir para substituí-los por outro tipo de trabalhador o negro foi integrado na economia, mas, por outro lado, naquelas áreas prósperas que tinham condições de investir na substituição da mão-de-obra, ele foi marginalizado. Aliás uma coisa decorria da outra: as áreas decadentes não tinham possibilidade de procurar outro tipo de trabalhador pela sua própria decadência. As áreas que decolavam puderam dar-se ao luxo de jogar nas franjas marginais toda uma população de trabalhadores, para substituí-los por outra que viria branquear o Brasil e satisfazer aos interesses daqueles que investiram no projeto migratório.

5. Entrega de mercadoria que não podia ser devolvida

Convencionou-se, dentro desta visão apriorística, que o trabalhador importado era superior ao nacional. Interesses convergentes, ideológicos (o branqueamento) e econômicos (os interesses dos investidores na empresa migrantista) determinaram que, ao invés de se fazerem planos experimentais para o aproveitamento dessa massa de mão-de-obra sobrante, estabeleceu-se como definitiva a sua inferioridade. Desta forma, ficou a visão de que a substituição foi feita sem choques de adaptação do colono com as condições de trabalho, clima, alimentação e comportamento político. A qualidade do imigrante não era tão uniformemente superior como se propala. Eles foram impostos muitas vezes sob restrição inclusive dos fazendeiros. No que tange à população italiana, especialmente do Sul, as suas condições sociais e culturais não eram aquelas de superioridade comumente apresentadas. Percorrendo uma região italiana nos começos do século XX o arqueólogo francês Gaston Boisier assim descreve a população camponesa italiana:

Aqui (em Óstia), os imigrantes são todos lavradores que vêm semear suas terras e fazer a colheita. À tardinha, amontoam-se em cabanas feitas de velhas tábuas, com tetos de colmo. Visitei uma delas, estreita e comprida, que parecia um corredor. Não tinha janelas e só recebia luz das portas colocadas nas duas extremidades. O arranjo era dos mais simples. No meio, as marmitas onde se fazia sopa; dos dois lados em compartimentos sombrios, homens, mulheres e crianças deitavam-se misturados, em montes de palha que nunca se renovaram. Mal entramos na cabana e um cheiro fétido se apodera de nós e nos provoca náuseas; o visitante, que não está acostumado a essa obscuridade nada pode perceber; só ouve o gemido dos maláricos que a febre prende ao leito de palha e que lhe estendem a mão pedindo esmola. Nunca imaginei que um ser humano pudesse viver em tais alforjas. 24

Completando o quadro escreve José Arthur Rios:

Nessa emigração, a instituição mais importante era a família. Na família a criança recebia as tradições do grupo e seus severos padrões de comportamento. As meninas aprendiam a temer o homem, a zelar pela honra e a ajudar no trabalho agrícola. O filho mais velho aprendia a profissão paterna e o árduo ofício de chefe de família. O homem era o senhor incontestado. A autoridade se transmitia do avô ao pai e deste ao filho mais velho, sempre na linha masculina. Às mulheres cabia o trabalho e a submissão. O concubinato era frequente no Sul, talvez, segundo sugere Foerster, resíduo da ocupação sarracena. O analfabetismo e a falta de instrução aí predominavam, embora fizessem sentir seus efeitos no Norte. Juntos concorriam a dar à tradição seu papel de árbitro supremo. Só a superstição lhes fazia concorrência, agravada por uma religiosidade primitiva.25

Sobre os métodos de cultivo da terra afirma o mesmo autor:

Os métodos de cultivo remontavam, em sua maioria, ao Império Romano.O arado era primitivo, combinado, às vezes, com a zappa, espécie de enxada. O adubo praticamente desconhecido, o que forçava os camponeses a deixar porções de terra em pousio se não quisessem vê-las rapidamente esgotadas. As sementes eram mal escolhidas. Os cascos de bois faziam a debulha das espigas e o vento separava o joio do trigo. 26

Como vemos essa superioridade técnica tão apregoada não é confirmada pelos fatos. Daí a frustração inicial de inúmeros fazendeiros na experiência que fizeram com esses imigrantes. Daí o ceticismo de Fernando Torres, presidente da província imigrantes. Daí o ceticismo de Fernando Torres,-presidente da província de São Paulo, o qual afirmava no seu relatório de 1859:

… o certo é que o desânimo e arrefecimento que em geral têm se manifestado os nossos fazendeiros pela colonização, prova que os colonos ultimamente vindos da Europa têm sido mais pesados que lucrativos aos mesmos fazendeiros, pois que só assim pode-se explicar a preferência que têm dado a despender somas enormes com a aquisição de escravos, comprados por preços que lhes absorvem anos de renda.27

Para ele, ao contrário do que afirmou Celso Furtado, esses imigrantes eram “homens que, por já ociosos” e por não encontrarem ocupação nos seus países de origem aceitam “por isso a emigrar na primeira oportunidade que isso ofereça”.28

Segundo Paula Beiguelman, – no mesmo Relatório que comunica a presidência da Província pelo Ministério dos negócios do Império de que iam chegar 800 colonos vindos por conta da Associação Colonizadora, e oferecendo-se o governo imperial a distribuí-los aos fazendeiros interessados, pagando a passagem da Corte a Santos, e dada publicidade a esse oferecimento fora quase nula a receptividade encontrada.29

Não houve aquele automatismo de aceitação decorrente da superioridade óbvia do imigrante.30 O que pretendia essa substituição do trabalhador nacional pelo alienígena era satisfazer uma teia de interesses que se conjugavam dentro de uma visão capitalista dessa transação, com capitais em jogo e interesses ideológicos e políticos que se completam. O governo imperial investe no imigrante porque ele não era mais um simples trabalhador, mas uma peça importante nos mecanismos que dipamizavam — via interesses de uma burguesia mercantil ativa e ávida de lucros — essa substituição. Pelo decreto imperial de 8 de agosto de 1871 (ano da Lei do Ventre Livre) foi autorizada a fundação da Associação Auxiliadora de Colonização e Imigração. Seu presidente era significativamente Francisco da Silva Prado e o seu capital podia ser aumentado em qualquer tempo. Os governos geral e provincial, por seu turno, poderiam injetar auxílios pecuniários à associação, os quais serviriam para pagar as passagens dos imigrantes.31

Nessa conjuntura, como afirma Paula Beiguelman: “Estimulados por esses auxílios governamentais, vários fazendeiros se interessaram pelo emprego do trabalho do imigrante”.32

As elites dominantes, através de vários mecanismos protetores do imigrante e de medidas restritivas à compra interna de escravos, através do tráfico interprovincial, conseguiu, finalmente, que o imigrante fosse um trabalhador de aluguel mais barato do que a compra onerosa (por onerada) do escravo e neste universo de transação capitalista o fazendeiro do café aceita o imigrante.

E aquele trabalhador europeu que inicialmente era considerado ocioso por representantes da lavoura passa a ser considerado o modelo de poupança, perseverança, organização e disciplina no trabalho.

O problema era, como se vê, impor o imigrante que correspondia aos interesses de uma camada que surgia nas entranhas do escravismo e tinha os seus objetivos voltados para os lucros da transação que se fazia com o imigrante. O Barão de Pati afirmava, mostrando a necessidade dessa alternância, que a abundância do escravo era um dos obstáculos ao desenvolvimento do trabalho livre. Daí a necessidade de se barrar a vinda da mão-de-obra escrava das zonas decadentes e se estimular e dinamizar a incorporação do imigrante ao trabalho nas fazendas de café. Na lavoura de café, o escravo assume o posto de trabalhador eficiente até ser substituído pelo imigrante.

Os representantes das províncias nordestinas decadentes sentem que elas estão ficando despovoadas. Até aí o interesse do proprietário das fazendas de café procurava o trabalhador escravo de outras regiões como ideal ou pelo menos o mais adaptado ao trabalho. Depois de 1870, os cafeicultores começam a aceitar a substituição. Em 80 o trabalho livre já se manifesta como a substituição ideal do trabalho escravo. Com uma ressalva: que esse trabalhador livre devia ser branco e o negro deveria transformar-se em marginal.

É exatamente esta gama de interesses do capitalismo mercantil que se desenvolve ainda nas entranhas do escravismo tardio através do processo migratório que determinou a dinâmica desse segundo tráfico não suficientemente estudado até hoje. Razões econômicas determinaram o sucesso da substituição de um tipo de trabalhador inferior por outro superior. Assim como a substituição do escravismo indígena foi justificada pela altivez do índio e a docilidade do negro, a foi também justificada pela incapacidade do ex-escravo (isto é, o negro e o não-branco nacional) realizar o trabalho no nível do europeu superior.

Os interesses em jogo na substituição do índio pelo negro nunca foram profundamente estudados. Diz a este respeito, com muita razão, Tancredo Alves:

Grande razão que tem sido geralmente esquecida, foi a pressão dos grupos interessados no tráfico de africanos no sentido de imporem-se no Brasil (como às demais colônias tropicais) os escravos negros fonte de polpudos lucros. O tráfico de africanos, ensina-nos, Marx desenvolveu-se na fase histórica da acumulação primitiva que precedeu ao surto do capitalismo industrial (séc. XVII a XVIII) como uma empresa tipicamente comercial, um fator a mais daquela acumulação. Tratava-se de uma empresa de certo modo autônoma que, se estava condicionada pelo seu mercado, em grande parte também o condicionava. O mercado era a agricultura de gêneros tropicais, que se desenvolveu a partir do século XVI como parte integrante do sistema colonial da fase do capitalismo manufatureiro, vale dizer como um outro fator da acumulação primitiva. Toda uma série de motivos ligados ao nível de desenvolvimento das forças produtivas, às condições geográficas, a certas condições ideológicas etc. (motivos que não será possível analisar aqui) ocasionaram essa ligação histórica entre a agricultura de gêneros tropicais e o tráfico de africanos, o fato é que onde vicejou a primeira verificou-se a penetração comercial do segundo; coisa fácil de comprovar-se no caso brasileiro: com exceção do surto minerador (há aí razões particulares), o fluxo de escravos negros correspondeu no Brasil — geográfica e historicamente — a vicissitudes da agricultura dos gêneros tropicais (o açúcar, o algodão, o café). Foram, portanto, esses interesses mercantis externos, ligados à agricultura colonial e ao tráfico de africanos, uma outra grande razão da predominância da escravidão negra no Brasil.33

Este mesmo processo de substituição de um trabalhador por outro verificou-se na passagem do escravismo tardio brasileiro em relação ao negro. As grandes firmas imigrantistas, grupos interessados”, nesse processo e especuladores em geral não viam evidentemente o imigrante como superior, mas o viam como um investimento que daria lucros a quem administrasse os mecanismos imigrantistas.34

Inicialmente a empresa Vergueiro & Cia. cobrava comissão dos fazendeiros para realizar a transação da vinda de imigrantes europeus. Essa comissão onerosa era repassada ao imigrante que tinha de pagá-la acrescida dos juros que o fazendeiro cobrava. Isto levava a que o imigrante dificilmente conseguisse resgatar as suas dívidas. Em 1867 um emissário do governo prussiano, H. Haupt, constatava que somente em circunstâncias excepcionais uma família de imigrantes poderia ressarcir as suas dívidas em tempo relativamente curto. Onze anos depois desta constatação há uma tentativa de se reabilitar o trabalhador nacional. No particular escreve Verena Stolcke:

No Congresso Agrícola de 1878, convocado pelo governo para avaliar o estado geral da agricultura, um grupo de fazendeiros se opôs à imigração em grande escala, como solução para o problema da mão-deobra, devido aos custos que ela acarretaria para eles ou para o país.

Ao invés disso, reivindicavam leis para combater a alegada aversão da população nacional ao trabalho. Buscavam meios de disciplinar os agregados e de obrigar os ingénuos ao trabalho, bem como disposições que reforçassem a lei de 1837 na regulamentação dos contratos de locação e serviços. Ao final, essa posição seria derrotada pelos fazendeiros que consideravam altamente problemático depender de ex-escravos após a Abolição ou da população nacional disponível, e que viam na imigração em massa subvencionada a única solução.35

O Estado assume financiar a imigração e em 1884 a Assembleia de São Paulo aprova medida através da qual eram concedidas passagens gratuitas aos imigrantes que se destinassem à agricultura.

A mesma autora desenvolve o seu raciocínio apresentando os seguintes fatos:

Após 1884, em vez de coagir os trabalhadores diretamente o Estado procurou obter mão-de-obra barata e disciplinada para as fazendas, inundando o mercado de trabalhadores com imigrantes subvencionados. Em 1886, o governo provincial havia encontrado uma forma eficaz de fornecer subsídio integral aos imigrantes e o resultado foi praticamente imediato. Em maio de 1887, entre 60 000 e 70 000 imigrantes, agora predominantemente italianos, já haviam sido assentados nos estabelecimentos de São Paulo. Essa cifra excede a estimativa de 50 000 escravos que estavam sendo empregados nas fazendas cafeeiras paulistas em 1885.36

Como vemos, havia grandes interesses na empresa imigrantista que procurava dinamizar esse fluxo migratório com o objetivo de estabelecer a continuidade e ampliação dos seus interesses que estavam subordinados à marginalização do trabalhador nacional e a sua substituição pelo trabalhador estrangeiro subsidiado. Este complexo mercantil que se criou em cima da importação do trabalhador europeu determinou a exclusão do negro e do trabalhador nacional de modo geral de uma integração como mão-de-obra capaz de dinamizar o surto de desenvolvimento económico que surgiu com o boom da economia cafeeira. Podemos ver como há toda uma política que se conjuga — do Estado e dos fazendeiros — no sentido de alegar falta de braços para a lavoura e apelar, sempre, para que essa crise de mão-de-obra fosse resolvida através do imigrante europeu. Na base das transações mercantis que eram operadas por esse complexo montado para importar o imigrante, estavam os lucros que vários segmentos da sociedade brasileira com isso conseguiam obter. Os próprios fazendeiros, ha primeira fase da imigração, cobravam juros aos seus trabalhadores europeus, muitas vezes escorchantes, fato que deu motivo a diversas formas de protesto do trabalhador importado.

Um levantamento de quanto lucraram os setores envolvidos e participantes desse comércio, no qual estavam interessados agentes europeus e nacionais, fazendeiros, funcionários do governo, empresas de imigração, e outros setores financiadores, poderá demonstrar por que surgiu a ideologia da necessidade de importação em massa do trabalhador europeu. Ele, por seu lado, era também explorado.

Vindo com a expectativa de fixação à terra, direito à propriedade, proteção, assistência médica, fontes de financiamentos, como apregoavam os agentes nos países europeus — também remunerados para isto —, ao chegarem viam-se equiparados aos escravos das fazendas.

Daí muitos terem se revoltado. Não suportando as reais condições que lhes eram impostas a si e às suas famílias, com um regime de trabalho no qual a coerção extra-econômica funcionava como um componente das normas de trabalho, o imigrante reagiu muitas vezes. A revolta de Ibicaba, do senador Vergueiro, em 1850, é a mais conhecida mas não foi a única. Mas é significativa porque demonstra os mecanismos coatores que os fazendeiros usavam contra esses trabalhadores considerados superiores em relação aos nacionais.

Os fazendeiros usavam a alegação da falta da mão-de-obra em São Paulo para conseguirem novos trabalhadores importados e conseguirem um nível de salários baixos.

Neste particular, escreve ainda Verena Stolcke:

Mesmo depois da década de 1880, os fazendeiros regularmente se queixavam de que havia uma escassez de braços agrícolas em São Paulo. Existem, porém, várias indicações de que essas queixas eram recursos para pressionar pela continuidade da imigração em massa, e assim assegurar os baixos salários que os fazendeiros estavam dispostos a pagar. Por exemplo, as duas fontes alternativas de mão-de-obra, os libertos e os chamados trabalhadores nacionais, nunca foram utilizados de nenhuma forma substancial até a Primeira Guerra Mundial, quando a imigração europeia subvencionada se tornou impraticável. Ambos os grupos foram em larga medida ignorados pelos fazendeiros, mesmo nas épocas de suposta escassez de mão-de-obra.37

É óbvio pelo exposto que havia um mecanismo de barragem permanente contra o ex-escravo, o negro, e de forma mais abrangente, contra o trabalhador nacional. Enquanto se marginalizava este, dinamizava-se, através de várias formas, o segundo tráfico na medida em que ele era interessante e lucrativo para as classes dominantes.

Como podemos ver, não se tratou de uma crise de mão-de-obra, como até hoje se propala, mas da substituição de um tipo de trabalhador por outro, o isolamento de uma massa populacional disponível e a colocação, no seu lugar, daquele trabalhador que vinha subvencionado, abrindo margens e possibilidades de lucros para diversos segmentos das elites delíberantes.

Em 1871 é criada a Associação Auxiliadora da Colonização e Antônio Prado tornou-se o seu vice-presidente, tendo o seu pai conseguido, através da associação, a importação de dez famílias alemãs para suas fazendas. Em abril de 1886 Martinico Prado anunciou a fundação da Sociedade Promotora da Imigração. Essa entidade reuniu-se no mesmo ano a convite do Barão (depois Conde) de Parnaíba.

Este propõe que a associação fosse o único contato junto ao governo provincial, do qual era vice-presidente e posteriormente presidente.

Depois foi vice-presidente da entidade, e Martinico Prado, seu presidente. Convém acrescentar que o Barão de Parnaíba era primo dos Prado e estava interessado vivamente no desenvolvimento migratório.Essa sociedade funcionará até 1895, quando a política migratória passa a ser função do Estado. No período de funcionamento a Associação Promotora importou 126 415 trabalhadores.

Em todo esse processo os casos de nepotismo e corrupção eram inevitáveis. No particular, escreve um biógrafo da família Prado:

Talvez acusações mais sérias que a do favoritismo regional e do excessivo gradualismo na questão da escravatura fossem aquelas da conspiração pessoal de Antônio com o fim de canalizar fundos governamentais para seu irmão. Em maio de 1889, o jornalista liberal Rui Barbosa acusou Antônio de emprestar 300 contos de fundos públicos para Martinico, presidente da Sociedade Promotora, para que ele subsidiasse a imigração, em violação a uma lei que dispunha que tal pagamento poderia ser feito apenas depois de recebidas as provas de que os imigrantes estivessem realmente estabelecidos nas fazendas. O ataque de Rui Barbosa insinuava que a renúncia de Antônio ao Ministério da Agricultura estava ligada a este “parentismo administrativo”! Antônio evidentemente não respondeu às acusações, nem delas resultou qualquer ação legal. Tinha frequentemente gueixas contra a inércia governamental em encarar problemas cruciais ç parece ter tido pouco respeito pelas sutilezas legais envolvidas. É possível que, ao ordenar o pagamento ao presidente da Sociedade, que aconteceu ser seu irmão, Antônio tenha sentido que estava aderindo à lei, já que pagamento direto aos fazendeiros não era efetuado. De qualquer maneira, o incidente mostra um lado sombrio do familismo usado para facilitar a imigração em São Paulo. Tendo observado muito anteriormente, na progressista Inglaterra, que tudo era feito pela iniciativa privada, Antônio aparentemente acreditou que, quando a livre empresa precisasse de apoio financeiro, o governo deveria ser um sócio à sua disposição.38

Não foi por acaso que a denúncia de corrupção (apesar da discreta defesa que o biógrafo da família fez) tenha surgido de um político nordestino. O Nordeste estava em decadência e via como se manipulavam as verbas para a importação do imigrante, em detrimento do amparo ao trabalhador nacional. As oligarquias se beneficiaram enormemente com o segundo tráfico, não apenas diretamente, mas também beneficiando segmentos mercantis, comerciais e usurários que tinham na importação do imigrante uma fonte de renda permanente.

Já houve quem escrevesse a história dos magnatas do tráfico negreiro. 39 Falta quem escreva, agora, a história da vinda do imigrante europeu, a barragem que se fez contra o ex-escravo, o negro, o não-branco de um modo geral e os mecanismos que beneficiaram economicamente aqueles que estavam engajados nessa operação: a história do segundo tráfico.

Acompanhando esses mecanismos que dinamizavam a estratégia da importação de imigrantes e as suas compensações monetárias, projetava-se a ideologia da rejeição do negro. Em São Paulo, onde o processo migratório subsidiado foi considerado a solução para a substituição do trabalho escravo, os políticos representativos dos fazendeiros do café desenvolveram um pensamento contra o negro, não apenas mais como ex-escravo, mas como negro, membro de raça inferior, incapaz de se adaptar ao processo civilizatório que se desenvolvia a partir do fim do escravismo. Em 1882, ao se falar na vinda de negros para São Paulo, o deputado Raphael Correia exclamaria indignado que era necessário “arredar de nós esta peste, que vem aumentar a peste que já aqui existe”. Adicionava à condição de praga a “ociosidade inevitável dos negros”.

Esta constante’ do pensamento das elites políticas e econômicas penetrou profundamente o ideário de vastas camadas da nossa população e da nossa intelectualidade, conforme vimos no pensamento de Celso Furtado. Sobre isto escreve Célia Maria Marinho de Azevedo:

Atualmente pode-se constatar a permanência desta ideia — a vagabundagem do negro — transformada em tema historiográfico, destituído porém da argumentação racista do imigrantismo. Ao contrário convencionou-se explicar a “recusa” do negro em trabalhar devido ao “fator herança da escravidão” ou “traumatismo” do escravo, pois para ele a liberdade seria o contrário do trabalho. Assim o negro teria se marginalizado devido à sua incapacidade para o trabalho livre, o que se explica hoje por ter sido ele escravo, e não mais por ter “sangue africano”. Por sua vez, esta transmutação da representação imigrantista racista — negro vagabundo, em tema histórico — ex-escravo vagabundo, deve ser entendida dentro do contexto suscitado pelo mito da democracia racial, mito engendrado em meados da década de 30, porém alimentado pela imagem já mencionada acima, de um país escravista sem preconceitos raciais.40

A ideologia racista é substituída por razões sociológicas que no fundo as justificam, pois transferem para o negro, através do conceito de um suposto traumatismo da escravidão, as causas que determinaram a sua marginalização atual.

6. Das Ordenações do Reino à atualidade: O negro discriminado

Como vimos nas páginas precedentes, a inferiorização do negro no nível de renda, no mercado de trabalho, na posição social e na educação são incontestáveis. Mas, como já dissemos também, essa situação deve-se, fundamentalmente, aos mecanismos de barragem que desde o Brasil-Colônia foram montados para colocá-lo em espaços sociais restritos e controláveis pelas classes dominantes.

Muitos desses mecanismos foram instituídos ainda na Metrópole e objetivavam colocar o negro escravo na sua condição de semovente.

O Código Filipino, também conhecido como Ordenações do Reino, de 1607, mandado recopilar por Filipe II da Espanha e promulgado pelo seu filho Filipe III era taxativo no particular. Esse código foi estendido ao Brasil pela própria Assembleia Constituinte de 1823 e vigorou até a Abolição. No Título XVII do Livro IV lê-se o seguinte:

Qualquer pessoa que comprar algum escravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-se dele, o poderá enjeitar a quem lhe vendeu, provando que já era doente em seu poder de tal enfermidade, contanto que cite ao vendedor dentro de seis meses do dia que o escravo lhe for entregue.

No item 3 lê-se ainda:

Se o escravo tiver cometido algum delito, pelo qual, sendo-lhe provado, mereça pena de morte, e ainda não for livre por sentença, e o vendedor ao tempo da venda o não declarar, poderá o comprador enjeitá-lo dentro de seis meses, contados da maneira que acima dissemos. E o mesmo será se o escravo tivesse tentado matar-se por si mesmo com aborrecimento da vida, e sabendo-o o vendedor, o não declarasse.

Finalmente para o aspecto que nos interessa:

Se o vendedor afirmar, que o escravo, que vende, sabe alguma arte, ou tem alguma habilidade boa, assim como pintar, esgrimir, ou que é cozinheiro, e isto não somente pelo louvor, mas pelo vender por tal, e depois se achar que não sabia a tal arte, ou não tinha a tal habilidade, poderá o comprador enjeitá-lo; porém para que o não possa enjeitar, bastará que o escravo saiba da dita arte, ou tenha a tal habilidade meãmente. E não se requer ser consumado nela.

Por essas normas que regulavam a situação do negro escravo em Portugal, e, por extensão dos nossos primeiros constituintes, também no Brasil, a situação do negro era praticamente a de um animal. Não havia diferença entre o tratamento que se dava a uma besta e o que se dispensava a um negro escravo. Mas essa legislação repressora, escravista e despótica por isto mesmo, era aceita como normal e cristã, contanto que os escravos, no momento certo, fossem batizados pelos seus senhores. Aliás o mesmo código regula este detalhe e mostra como os senhores deviam batizar os seus escravos até seis meses “sob pena de os perder para quem os demandar”. Era, também, o início do sincretismo exposto, como já vimos. As leis e alvarás se sucedem contra o escravo negro durante todo o transcurso da escravidão.

Em Sergipe, no ano de 1838 o seu governador baixa o decreto n. 13, de 20 de março, no qual se lê que são proibidos de frequentar as escolas públicas:

§1 — Todas as pessoas que padeçam de moléstias contagiosas;

§2 — Os Africanos, quer livres quer libertos.42

Evidentemente quando o legislador colocou africanos quis referir-se aos negros em geral, pois uma coisa estava imbricada na outra. Desta forma barravam-se as possibilidades educacionais do negro da mesma forma que se impedia o ingresso de leprosos, tuberculosos ou portadores de outras doenças do gênero. Se nas Ordenações do Reino o negro era equiparado às bestas, no decreto de 1838 ele era colocado no mesmo nível daqueles que deviam ser afastados do convívio social por transmitirem doenças contagiosas.

Outras vezes, quando não se podia mais alegar que os africanos e os negros em geral eram iguais aos leprosos, apelava-se para aquilo que se convencionou chamar de um temperamento diferente do negro, o qual geraria um comportamento divergente e instável, razão pela qual ele devia ser impedido de frequentar certas escolas ou instituições de cunho cultural e/ou religioso. Prova disto foi o comportamento da direção da Congregação dos Missionários da Sagrada Família de Crato, no Ceará, em 1958.

Num prospecto publicado procurando despertar vocações sacerdotais dizia o documento que, entre outras condições para ingresso no seminário, o candidato devia ser de cor clara. Como vemos, cento e vinte e um anos depois do decreto que vedava aos negros ingresso nas escolas públicas de Sergipe, um Seminário, no Ceará, alegando outros pretextos, porém por idênticas razões, barrava o negro de seguir a carreira sacerdotal. O escritor Orlando Huguenin, estranhando os termos do documento, escreveu ao Padre Superior da Venerável Congregação dos Missionários da Sagrada Família sobre a veracidade do documento e quais as razões, em sendo autêntico, do procedimento da congregação em relação aos negros. Obteve a seguinte resposta:

Referente à solicitação de V. S. no que concerne o item 4 das Condições de Admissão, a respeito da cor dos candidatos, venho responder- Ihe que determinamos este ponto baseado em experiências adquiridas há vários anos. Sempre notamos que a tais vocações é necessário dispensar uma vigilância de todo especial e, mesmo assim, quase sempre aberram e não conseguem dominar as suas inclinações, de modo que ou são dispensados, ou eles mesmos desistem com o tempo das suas aspirações. Parece que a permanente convivência com os rapazes de outra cor que, em geral, estão na maioria, os desnorteia e os faz esquecer o ideal que inicialmente abraçaram. Creio que um ambiente de alunos de qualidades corporais iguais daria muito mais resultado.43

Como podemos ver há um continuum de medidas que se sucedem como estratégia de imobilismo das classes dominantes brancas contra a população negra em particular e a não-branca de um modo geral. Essa estratégia racista se evidenciará em vários momentos, exatamente quando há possibilidades de, através de táticas não-institucionais, os negros conseguirem abrir espaços nessa estratégia discriminatória.

Este continuum, porém, é visto por grande parte dos estudiosos da nossa história social como casos excepcionais e não-característicos das nossas relações interétnicas. As medidas de controle social, sem analisarmos, por enquanto, o que foi no Parlamento a discussão dos racistas brasileiros contra a entrada de imigrantes não brancos, são uma permanente atitude das elites brancas. Em 1945, parodiando o governador de Sergipe em 1838, Getúlio Vargas, estabelecendo normas para a política de imigração do Brasil, baixa decreto ordenando medidas no sentido de desenvolver na composição étnica do país as características mais convenientes de sua descendência europeia.

O problema que se apresentava era branquear o Brasil para que ele se civilizasse. Nas Forças Armadas o mesmo fato se verifica. Durante o Estado Novo vigorou uma norma discriminatória na Escola Preparatória de Cadetes de São Paulo, quando se proibia a entrada de negros, mulatos, judeus e filhos de operários. A norma foi baixada pelo então Ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra. Ela somente foi relaxada quando o Brasil entrou na guerra contra a Alemanha e, aí sim, os negros, mulatos, judeus e operários foram recrutados para irem morrer, da mesma forma como aconteceu na Guerra do Paraguai, quando os filhos dos senhores de engenho mandavam em seu lugar os escravos de seus pais.

Esta visão do negro como inferior leva a atitudes irracionais como a do Presidente da Federação das Associações Comerciais do Paraná, Carlos Alberto Pereira de Oliveira, que, em 1981 afirmava em conferência intitulada “A tese da doutrina do otimismo realista” que:

as causas principais da existência de alguns bolsões de pobreza no Brasil são de origem étnica e histórica. O Brasil foi colonizado por povos selvagens e o negro importado das colônias portuguesas da África. Esses povos, apesar da robustez física, eram povos primitivos, que viviam no estágio neolítico e por isso incapazes de se adaptarem a uma civilização moderna industrial. O negro mantido como escravo até fins do século XIX, analfabeto e destinado a trabalhos braçais, também não conseguiu integrar-se perfeitamente à civilização moderna. São esses povos — índios, negros, mulatos e caboclos — que constituem a grande massa de pobreza do Brasil, no campo e nas favelas.

E Concluía peremptório:

Imigrantes europeus, asiáticos, japoneses, oriundos de civilizações milenares que se dirigiram para as regiões litorâneas vivem muito bem no Brasil. É muito raro ver-se um descendente de japoneses, judeus, italianos, árabes ou alemães, em condições de miséria absoluta. Isto prova que as causas principais da pobreza no Brasil são de origem étnica, muito mais do que possíveis influências do meio físico, da má administração pública ou da tão divulgada exploração do homem pelo homem, como pretendem os marxistas.44

Remetidas para a própria população negra as causas fundamentais do seu atraso social e cultural, político e existencial, resta apenas procurar branqueá-la cada vez mais para que o Brasil possa ser um país moderno, civilizado e participante do progresso mundial. A filosofia do branqueamento passa, assim, a funcionar. Todas as medidas que possam ser tomadas neste sentido são válidas. A filosofia do branqueamento não tem ética social.

Por esta razão, se em 1981, um empresário denunciava a doença, em 1982 um economista apresenta a terapêutica: esterilizar os negros e seus descendentes. Desta forma a “doença” (repare-se que em 1838 em Sergipe já se equiparava os negros aos portadores de doenças contagiosas) poderia ser eliminada do corpo social. O economista Benedito Pio da Silva, assessor do GAP do Banespa (São Paulo), apresentou trabalho intitulado “O Censo do Brasil e no Estado de São Paulo, suas curiosidades e preocupações”. Estabelecia ali a sua filosofia étnica segundo a qual era necessária uma campanha nacional visando o controle da natalidade dos negros, mulatos, cafuzos, mamelucos e índios, considerando que se mantida a atual tendência de crescimento populacional “no ano 2000 a população parda e negra será da ordem de 60% (do total de brasileiros), por conseguinte muito superior à branca. E eleitoralmente poderá mandar na política brasileira e dominar todos os postos-chave”. Isto foi visto como perigo social que deve ser combatido e eliminado como doença para se manter o equilíbrio social dentro dos valores brancos. A síndrome do medo contra as populações não-brancas que teve seu início no regime escravista, conforme veremos mais tarde, continua funcionando e estabelecendo níveis de comportamento patológico como o do economista citado. O mais sintomático é que esta tese racista foi aprovada por esse órgão de assessoramento do governo de São Paulo, na época dirigido pelo governador Paulo Salim Maluf. A tese da esterilização da população não-branca foi aprovada e cópias do seu texto distribuídas a todos os integrantes dos diversos GAPs.

Isto porém, não é caso inusitado. Os exemplos poderiam ser dados às dezenas. O certo é que, depois de quatrocentos anos de lavagem cerebral, o brasileiro médio tem um subconsciente racista. O preconceito de cor faz parte do seu cotidiano. Pesquisa realizada pelo jornal Folha de S. Paulo, em março de 1984, sobre o preconceito de cor, constatou que 73,6% dos paulistanos consideram o negro marginalizado no Brasil e 60,9% dizem conhecer pessoas e instituições que discriminam o negro. Devemos salientar, como elemento de reflexão na interpretação desses dados, que é notável a tendência de se reconhecer mais facilmente a existência da discriminação racial nos outros do que em si mesmo. Como vimos, 73,6% consideram o negro marginalizado no Brasil. A proporção caiu para 60,9% quando se trata de reconhecer a existência de discriminação em seu próprio círculo de relações. E apenas 24,1% revelaram alguma forma de preconceito pessoal. Como sempre, o problema nevrálgico é quando se pergunta se aceitaria um negro como membro da família. Foi a pergunta sobre a possibilidade de ter um negro como genro ou cunhado, muito mais do que como chefe de serviço ou como representante político, que suscitou a maior média (24,1%) de respostas francamente preconceituosas, reveladoras do racismo do brasileiro.

Toda essa realidade discriminatória, preconceituosa e repressiva é escamoteada deliberadamente. Seria fastidioso aqui repetir os pronunciamentos de todas as autoridades que proclamam a nossa democracia racial e praticam a discriminação. Em 1969, segundo documento coligido por Thales de Azevedo, citado por Abdias do Nascimento, podemos ler:

O Globo, Rio, 12-2-69: “Portela vê Imprensa a Serviço da Discriminação Racial para Conturbar” — Publicando telegrama procedente de Brasília, o jornal informa que o General Jaime Portela, em exposição de motivos ao Presidente da República, sugerindo a criação da Comissão Geral de Inquérito Policial Militar, datada de 10-2-69, refere-se a conclusões do Conselho de Segurança Nacional sobre ações subversivas e afirma: “No contexto das atividades desenvolvidas pelos esquerdistas, ressaltamos as seguintes (item 9) — Campanha conduzida através da imprensa e da televisão em ligação com órgãos estrangeiros de imprensa e de estudos internacionais sobre discriminação racial, visando criar novas áreas de atritos e insatisfação com o regime e as autoridades constituídas”.45

Esse mesmo governo neofascista dizia, através do seu presidente Ernesto Geisel, ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, em 21-3-1977, quando se comemorava o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial:

O Brasil é o produto da mais ampla experiência de integração racial que conhece o mundo moderno, resultado, ao longo dos séculos, de um processo harmônico e autônomo, inspirado nas raízes profundas dos povos que aqui somaram esforços na construção do País.

E concluía:

Compartilham os brasileiros da convicção de que os direitos da pessoa humana são desrespeitados nas sociedades onde conotações de ordem racial determinam o grau de respeito com que devem ser observadas as liberalidades e garantias individuais.46

Esta é a retórica oficial. No entanto, esse mesmo presidente, em março de 1975, escorraçava do Palácio do Planalto uma comissão de negros paulistas que para lá foram convidá-lo a participar das festas de 13 de Maio que seriam realizadas na Capital de São Paulo. A alegação foi a de que não tínhamos mais negros no Brasil, mas sim cidadãos brasileiros. Chamou-os de divisionistas e impai riotas c mandou que a comissão se retirasse. 47

Mas, ao comemorar-se o sesquicentenário da imigração alemã no Rio Grande do Sul Geisel não apenas compareceu aos festejos, mas elogiou publicamente o esforço dos alemães no progresso da nação brasileira.

Em outras palavras: ele pode ser teuto-brasileiro, mas os negros não podem ser afro-brasileiros. A historicidade étnica e cultural fica, assim, através dessa estratégia inibidora e intimadora, reservada ao imigrante branco.

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Racismo e Cultura por Frantz Fanon

FANON, Frantz. Racismo e Cultura. FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980, p. 35-48.

1A reflexão sobre o valor normativo de certas culturas, decretado unilateralmente, merece que lhe prestemos atenção. Um dos paradoxos que mais rapidamente encontramos é o efeito de ricochete de definições egocêntricas, sóciocêntricas. Em primeiro lugar, afirma-se a existência de grupos humanos sem cultura; depois, a existência de culturas hierarquizadas; por fim, a noção da relatividade cultural.

Da negação global passa-se ao reconhecimento singular e específico. É precisamente esta história esquartejada e sangrenta que nos falta esboçar ao nível da antropologia cultural.

Podemos dizer que existem certas constelações de instituições, vividas por homens determinados, no quadro de áreas geográficas precisas que, num dado momento, sofreram o assalto directo e brutal de esquemas culturais diferentes. O desenvolvimento técnico, geralmente elevado, do grupo social assim aparecido autoriza-o a instalar uma dominação organizada. O empreendimento da desculturação apresenta-se como o negativo de um trabalho, mais gigantesco, de escravização económica e mesmo biológica.

A doutrina da hierarquia cultural não é, pois, mais do que uma modalidade da hierarquização sistematizada, prosseguida de maneira implacável.

A moderna teoria da ausência de integração cortical dos povos coloniais é a sua vertente anátomico-fisiológica. O surgimento do racismo não é fundamentalmente determinante. O racismo não é um todo, mas o elemento mais visível, mais quotidiano, para dizemos tudo, em certos momentos, mais grosseiro de uma estrutura dada.

Estudar as relações entre o racismo e a cultura é levantar a questão da sua acção recíproca. Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o racismo é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com racismo e culturas sem racismo.

Contudo, este elemento cultural preciso não se enquistou. O racismo não pode esclerosar-se. Teve de se renovar, de se matizar, de mudar de fisionomia. Teve de sofrer a sorte do conjunto cultural que o informava.

Como as Escrituras se revelaram insuficientes, o racismo vulgar, primitivo, simplista, pretendia encontrar no biológico a base material da doutrina. Seria fastidioso lembrar os esforços empreendidos nessa altura: forma comparada do crânio, quantidade e configuração dos sulcos do encéfalo, características das camadas celulares do córtex, dimensões das vértebras, aspecto microscópico da epiderme, etc.

O primitivismo intelectual e emocional aparecia como uma consequência banal, um reconhecimento de existência.

Tais afirmações, brutais e maciças, dão lugar a uma argumentação mais fina. Contudo, aqui e ali, vêm ao de cima algumas ressurgências. É assim que a “labilidade emocional do Negro”, “a integração subcortical do Árabe”, “a culpabilidade quase genérica do Judeu”, são dados que se encontram em alguns escritores contemporâneos. Por exemplo, a monografia de J. Carothers, patrocinada pela OMS, exibe, a partir de “argumentos científicos”, uma lobotomia fisiológica do Negro de África.

Estas posições sequelares tendem, no entanto, a desaparecer. Este racismo que se pretende racional, individual, determinado, genotípico e fenotipíco, transforma-se em racismo cultural. O objecto do racismo é, não descriminar o homem particular, mas uma certa forma de existir. No limite, fala-se de mensagem, de estilo cultural. Os “valores ocidentais” unem-se singularmente ao já célebre apelo à luta da “cruz contra o crescente”.

Sem dúvida, a equação morfológica não desapareceu completamente, mas os acontecimentos dos últimos trinta anos abalaram as convicções mais firmes, subverteram o tabuleiro de xadrez, reestruturaram um grande número de relações.

A lembrança do nazismo, a miséria comum de homens diferentes, a escravização comum de grupos sociais importantes, o surgimento de “colónias europeias”, quer dizer, a instituição de um regime colonial em plena Europa, a tomada de consciência dos trabalhadores dos países colonizadores e racistas, a evolução das técnicas, tudo isto alterou profundamente o aspecto do problema.

Temos de procurar, ao nível da cultura, as consequências deste racismo.

O racismo, vimo-lo, não é mais do que um elemento de um conjunto mais vasto: a opressão sistematizada de um povo. Como se comporta um povo que oprime? Aqui, encontram-se constantes.

Assiste-se à destruição dos valores culturais, das modalidades de existência. A linguagem, o vestuário, as técnicas são desvalorizados. Como dar conta desta constante? Os psicólogos que tem tendência para tudo explicar por movimentos da alma pretendem colocar este comportamento ao nível dos contactos entre particulares: crítica de um chapéu original, de uma maneira de falar, de andar …

Semelhantes tentativas ignoram voluntariamente o carácter incomparável da situação colonial. Na realidade, as nações que empreendem uma guerra colonial não se preocupam com o confronto das culturas. A guerra é um negócio comercial gigantesco e toda a perspectiva deve ter isto em conta. A primeira necessidade é a escravização, no sentido mais rigoroso, da população autóctone.

Para isso, é preciso destruir os seus sistemas de referência.

A expropriação, o despojamento, a razia, o assassínio objectivo, desdobram-se numa pilhagem dos esquemas culturais ou, pelo menos, condicionam essa pilhagem. O panorama social é desestruturado, os valores ridicularizados, esmagados, esvaziados. Desmoronadas, as linhas de força já não ordenam. Frente a elas, um novo conjunto, imposto, não proposto mas armado, com todo o seu peso de canhões e de sabres.

No entanto, a implantação do regime colonial não traz consigo a morte da cultura autóctone. Pelo contrário, a observação histórica diz-nos que o objectivo procurado é mais uma agonia continuada do que um desaparecimento total da cultura preexistente. Esta cultura, outrora viva e aberta ao futuro, fecha-se, aprisionada no estatuto colonial, estrangulada pela canga da opressão. Presente e simultaneamente mumificada depõe contra os seus membros. Com efeito, define-os sem apelo. A mumificação cultural leva a uma mumificação do pensamento individual. A apatia tão universalmente apontada dos povos coloniais não é mais do que a consequência lógica desta operação. A acusação de inércia que constantemente se faz ao “indígena” é o cúmulo da má-fé. Como se fosse possível que um homem evoluísse de modo diferente que não no quadro de uma cultura que o reconhece e que ele decide assumir. É assim que se assiste à implantação dos organismos arcaicos, inertes, que funcionam sob a vigilância do opressor e decalcados caricaturalmente sobre instituições outrora fecundas…

Estes organismos traduzem aparentemente o respeito pela tradição, pelas especificidades culturais, pela personalidade do povo escravizado. Este pseudo-respeito identifica-se, com efeito, com o desprezo mais consequente, com o sadismo mais elaborado. A característica de uma cultura é ser aberta, percorrida por linhas de força espontâneas, generosas, fecundas. A instalação de “homens seguros” encarregados de executar certos gestos é uma mistificação que não engana ninguém. É assim que as djemaas cabilas nomeadas pelas autoridades francesas são reconhecidas pelos autóctones. São dobradas por uma outra djemaa eleita democraticamente. E naturalmente a segunda dita a maior parte das vezes a sua conduta à primeira.

A preocupação constantemente afirmada de “respeitar a cultura das populações autóctones” não significa, portanto, que se considerem os valores veiculados pela cultura, encarnados pelos homens. Bem depressa se adivinha, antes, nesta tentativa uma vontade de objectivar, de encaixar, de aprisionar, de enquistar. Frases como: “eu conheço-os”, “eles são assim”, traduzem esta objectivação levada ao máximo. Assim, conheço os gestos, os pensamentos, que definem estes homens…

 

O exotismo é uma das formas desta simplificação. Partindo daí nenhuma confrontação cultural pode existir. Por um lado, há uma cultura na qual se reconhecem qualidades de dinamismo, de desenvolvimento, de profundidade. Uma cultura em movimento, em perpétua renovação. Frente a esta, encontram-se características, curiosidades, coisas, nunca uma estrutura.

Assim, na primeira fase, o ocupante instala a sua dominação, afirma maciçamente a sua superioridade. O grupo social, subjugado militar e economicamente, é desumanizado segundo um método polidimensional.

Exploração, torturas, razias, racismo, liquidações colectivas, opressão racional, revezam-se a níveis diferentes para fazerem, literalmente, do autóctone um objecto nas mãos da nação ocupante.

Este homem objecto, sem meios de existir, sem razão de ser, é destruído no mais profundo da sua existência. O desejo de viver, de continuar, torna-se cada vez mais indeciso, cada vez mais fantasmático. É neste estádio que aparece o famoso complexo de culpabilidade. Wright2 dedica-lhe nos seus primeiros romances uma descrição muito pormenorizada.

Contudo, progressivamente, a evolução das técnicas de produção, a industrialização, aliás limitada, dos países escravizados, a existência cada vez mais necessária de colaboradores, impõem ao ocupante uma nova atitude. A complexidade dos meios de produção, a evolução das relações económicas, que, quer se queira quer não, arrasta consigo a das ideologias, desequilibram o sistema. O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de exploração brutal dos braços e das pernas do homem. A perfeição dos meios de produção provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem, logo das formas do racismo.

Não é, poisna sequência de uma evolução dos espíritos que o racismo perde a sua virulência. Nenhuma revolução interior explica esta obrigação de o racismo se matizar, de evoluir. Por toda a parte há homens que se libertam, abalando a letargia a que a opressão e o racismo os tinham condenado.

…)

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A história das coisas

 

Da extração e produção até a venda, consumo e descarte, todos os produtos em nossa vida afetam comunidades em diversos países, a maior parte delas longe de nossos olhos.

História das Coisas é um documentário de 20 minutos, direto, passo a passo, baseado nos subterrâneos de nossos padrões de consumo.

História das Coisas revela as conexões entre diversos problemas ambientais e sociais, e é um alerta pela urgência em criarmos um mundo mais sustentável e justo.

História das Coisas nos ensina muita coisa, nos faz rir, e pode mudar para sempre a forma como vemos os produtos que consumimos em nossas vidas.

Categoria:

Entretenimento

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O Trabalho – Grupo de Estudos sobre Economia, política e sociedade

O modo de produção capitalista se aperfeiçoou ao ponto de se tornar insuperável? Não é mais possível uma revolução social? Seremos obrigados a concordar que a história chegou a seu fim?

Para responder a estas e outras perguntas, vimos a necessidade de limpar o terreno da produção teórica atual, impregnada de irracionalismos e vulgarizações de toda ordem, à busca da apreensão, o mais correta possível, da lógica do mundo. Não se trata de estudar por estudar, mas sim, buscar identificar na própria realidade vivida as possibilidades de transformação social que priorizem os trabalhadores e não a lógica macabra do Capital.

Esta empreitada exige grandes esforços e movimentações diversas que vão muito além de um simples grupo de estudos… é a práxis efetivamente transformadora (revolucionária) que se objetiva aqui, mas por hora, mantendo firmes os pés no chão, tal qual um samba de côco, nos propomos a contribuir para a consolidação de um corpo teórico sólido, que ajude a caminharmos (e porque não sambarmos) conscientemente este complexo “terreiro” do “concreto”.

Nessa caminhada, identificamos no debate da Ontologia, ciência essa que vai em busca do por si das coisas – do que o mundo é – , uma excelente norteadora para entendermos as linhas gerais do ser social. Por conseguinte, não é uma tarefa fácil, já que para tal, teremos de percorrer toda história da filosofia, sob o prisma de como os filósofos responderam à questão de como se conhece, apreende, um mundo em constante movimento – transformação.

Porém, não partimos para esse campo de batalha de guarda aberta, ou munidos de um prisma desfocado; mas a partir das contribuições do grande Karl Marx, e de alguns “dragões” semeados e colhidos com o desenrolar da história, como Lenin, Lukacs, Frantz Fanon, Amilcar Cabral, Samora Machel, Angela Davis, Amilton Cardoso, Heleit Safiotti, Clóvis Moura e tantos outros, . Dessa forma, resta-nos parafrasear novamente o mestre Candeia quando o mesmo nos canta: “”Mora na filosofia / “Morô” Maria? / “Morô” Maria?””. Para uma ação revolucionária do conhecimento do mundo.

Este Grupo de Estudos tem como principal objetivo o estudo da sociedade contemporânea a partir da perspectiva do trabalho, e para tal, desenvolve grupos de estudos a respeito dos seguintes temas:

  • Ontologia
  • Capital e Capitalismo
  • Capitalismo, Machismo e Racismo
  • Reestruturação produtiva e Capitalismo contemporâneo
  • Movimentos Sociais
  • Teoria da transição
  • Humanismo X Irracionalismo Pós-moderno
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O Encarceramento em massa e os aspectos raciais da exploração de classe no Brasil

O Encarceramento em massa e os aspectos raciais da exploração de classe no Brasil. In: Encarceramento em Massa, símbolo do Estado Penal. PUC Viva, ano 11 – N.39. Setembro a Dezembro de 2010 / ISSN 1806-3667[1]

Deivison Mendes Faustino (Deivison Nkosi)[2]

Art. 2º – Nenhum preto, ou preta, forros africanos poderá sair da cidade, villas, povoações, ou fazenda e prédio, em que for domiciliário à título de negócio ou por outro qualquer motivo sem passaporte que deverá obter do juiz criminal, ou de Paz do lugar (…) mas também se designará o tempo por que devam durar os ditos passaportes, por quanto há toda a presumpção e suspeita de que taes pretos são os incitadores e provocadores de tumultos e commoções a que se tem abalançado os que existem na escravidão.

(Decreto de 14 de dezembro de 1830 – Leis e decisões do Governo. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro)[3]

Se o “Encarceramento em Massa” é um dos símbolos do “Estado Penal”, usado contra cidadãos que insurgem a ordem, motivados por algum tipo de descontentamento. a solução para o Encarceramento em Massa seria a garantia da plenitude do “Estado de Direito”? Mas o que seria na prática este Estado de Direito? Seria o sinônimo de uma Democracia Burguesa, eurocêntrica, machista e cristã no Brasil? Seria possível uma efetiva democracia em um país onde o capitalismo se organiza através de alianças com os mais diversos elementos antidemocráticos? Qual a função do racismo nesta equação?

As disputas ideológicas que envolvem estes temas estão muitas vezes ancoradas em terrenos conceituais movediços que nos prejudicam uma apreensão real do problema, dificultando  o estabelecimento de uma práxis efetivamente emancipatória.   Sem a pretensão de esgotar este debate, proponho neste ensaio, esboçar uma reflexão crítica sobre os conceitos de Criminalização da Pobreza, Estado Penal e Encarceramento em Massa, para em seguida, discutir as relações reciprocas entre capitalismo e racismo na sociedade brasileira.

No dia 25 de novembro de 2010 Telespectadores de todo o Brasil assistiram em “tempo real” à chamada “Ocupação” da favela Vila Cruzeiro, subúrbio do Rio de Janeiro, por forças policiais fortemente armadas, ancorados na justificativa de (re)estabelecimento da ordem social local, tomada por traficantes. O “espetáculo”[4] que concentrou as câmeras na fuga dos traficantes enquanto eram alvejados a tiros de metralhadoras por  “atiradores de elite”, posicionados à quilômetros de distância do local, possibilitou altíssimos pontos no IBOPE, para uma certa emissora que cobria o evento, conferindo em 2011, prêmio internacional de melhor reportagem do ano de 2010. Enquanto corriam por uma trilha que ligava a Vila Cruzeiro ao complexo de favelas do Alemão alguns fugitivos, em que pese às imagens, jovens negros, tombavam ao serem abatidos e instantaneamente eram arrastados pelos companheiros envoltos à chuva de tiros.

O incidente, repetido exaustivamente e comemorado pelos grandes meios de comunicação[5], foi acompanhado por um silêncio avassalador “opinião pública” a respeito de um detalhe importante: Enquanto fugiam, os “suspeitos” eram assassinados. De acordo com o Artigo 25 do Código Penal Brasileiro – Decreto Lei 2848/40, um policial só poderia atirar se a vida de outrem ou a sua própria estivesse em risco eminente, obviamente não foi o que se assistiu neste caso, onde a expressão de um extermínio sistemático e histórico, foi acompanhado neste caso pela exaltação midiática da postura que a elite brasileira espera de sua polícia: “bandido bom é bandido morto”.

O problema se amplia, quando se busca entender o perfil destes tidos “bandidos” que a polícia não mede esforços para abater.  As posturas comuns dos policiais não deixam a dúvidas que recai a pretos e pobres o “tipo ideal” do criminoso brasileiro, reverberando os estudos de Barros (2008) sobre a violência policial, onde a seleção do suspeito tem cor, endereço e razão social, confrontando os  ensinamentos do pensador racista Cesare Lombroso (1835-1909), tido como um dos principais teóricos da antropologia criminal. Ao observar o perfil geral dos assassinatos cometidos por policiais no Brasil, percebe-se que os policiais do caso supracitado, não agiram de forma deslocada, pelo contrário cumpriu de forma eficiente e eficaz seu trabalho, na medida em que esta postura é a esperada pela polícia, pela burguesia que teme a sublevação popular e por parte considerável de cidadãs e cidadãos que assistiram tamanha atrocidade de forma silenciada, em que pese às autoridades políticas representativas. A postura policial perante a população (estando ou não vinculada ao crime) varia de acordo com a posição de classe, raça e gênero que estão distribuídos os indivíduos no tecido social brasileiro.

A venda de drogas ilícitas nos morros cariocas é apenas a ponta varejista de um Iceberg que desnudo revela interesses políticos e econômicos que facilmente são equacionados e relacionados ao fluxo geral do capitalismo mundial, revelando também que os vários envolvidos nesta cadeia produtiva e viciada recebem tratamentos diferenciados por parte do Estado, a depender da posição que ocupem na hierarquia desta atividade econômica. Dito de outro modo, a postura policial agressiva e fatal é uma reação desta rede violenta que afeta diretamente pobres, negros e jovens, cabendo outras totalmente antagônicas para os traficantes internacionais, políticos corruptos, amigos de banqueiros que usam da lei para se proteger e beneficiar como no recente caso do ex-Senador Demóstiles Torres e o banqueiro “Cachoeirinha”.  Aliás, para os principais personagens da trama social que justifica a existência de uma corporação policial e o “Encarceramento” no Código Penal, não há menção ou identificação como parte do processo criminoso. O verdadeiro crime organizado, que está na gênese e essência do capitalismo[6], é apresentado indiscriminadamente como obra de pobres. E contra estes, o máximo uso da violência e do poder das armas é “legitimado” pelo estado, desde que a “ordem social” e de “classe” seja mantida.

Outro exemplo tragicamente emblemático desta triste relação que se arrasta pelos estados e municípios brasileiros, perdendo a característica de concentração nas cidades metrópoles, passando a ser também realidade de cidades de médio e pequeno porte, foi o massacre cometido pela polícia paulista em maio de 2006, nas periferias das cidades metropolitanas de São Paulo. Em uma suposta “resposta” aos “ataques do PCC”[7] no Estado de São Paulo, Policiais fardados e grupos de extermínio paramilitar, assassinaram mais de 493 pessoas, jovens, na maioria negros moradores de bairros da periferia da região metropolitana de São Paulo.

O incidente corrobora os estudos de Waiselfisz (2010) ao estruturar o Mapa da Violência 2001 – Anatomia dos Homicídios no Brasil, no período de 2002 a 2010. Leva a crer que a Polícia Paulista, como todas as demais polícias brasileiras, se sente no dever de cercear a vida alheira, cabendo-os  sobre a prerrogativa do Estado, o direito/dever deferido para matar[8]. As cenas que se seguiram em São Paulo, como a diagnosticada no Brasil no Mapa da Violência são classificadas como extermínio.

Chama a atenção neste caso o relatório emitido pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP):

A análise do Cremesp indicou uma grande quantidade de vítimas mortas com tiros na cabeça, no peito e nas costas, muitos disparados à queima roupa e de cima para baixo. “A combinação destes fatores aponta para situação mais compatível com aquela típica de execução e não de confronto com troca de tiros”, concluiu o perito Ricardo Molina de Figueiredo a respeito dos 124 homicídios registrados pela polícia como “resistência seguida de morte”. Para o perito, havia indícios de execução em 60% a 70% dos supostos confrontos. (SALVADORI, 2009)

Na época, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo (CONDEPE/SP) tomou conhecimento do fato que, ignorado pelos grandes meios de comunicação, passou despercebido e não ganhou significativa repercussão. Pelo contrário, os telejornais sensacionalistas, que de praxe destacam crimes sanguinários em sua programação, lamentavam o assassinato dos “cidadãos de bem” conferidos às vítimas policiais ou pessoas a eles associada. Quanto aos quase 500 assassinatos de civis cidadãos apressadamente classificados como “suspeitos”, em que pese jovens negros de periferia, suas mortes por policiais não conferiam prejuízo relevantes.

Como visto, a morte de pretos e pobres continuam não incomodando parte da população no Brasil, e nestes casos, acende os brios complexados de uma classe média que não tem referências a heróis tupiniquins. A alta bilheteria dos filmes Tropa de Elite I e II levantou em momentos distintos a reflexões de um debate macabro sobre o paradoxo eficiência/ineficiência da polícia frente à sociedade no “espetáculo do circo dos horrores”[9].  A mensagem é simples e compõe o pano de fundo histórico que sustenta estas análises: desde que a violência “presente nas favelas” não cheguem ao “asfalto” ou afete a vida social nas da classe média nas grandes cidades, comemoremos o fortalecimento dos eficientes instrumentos de repressão do Estado, ainda que este seja a prática genocida.

Analisaremos neste ensaio, atentos a observância de  como a violência Estatal contra pretos e pobres se relaciona com as necessidades mais gerais de controle na sociedade contemporânea, discutindo  se de fato, este mesmo Estado, em sua luta pelo monopólio da violência, dirige suas ações de repressão aos “despossuídos”  de forma indiscriminada, ou prioritariamente àqueles que por algum motivo específico representam ameaças reais ou simbólicas ao acúmulo de riqueza das classes dominantes.

Para tanto, esboçaremos uma reflexão crítica sobre os conceitos de Criminalização da Pobreza, Encarceramento em Massa e Estado Penal, e em seguida, discutir as relações reciprocas entre capitalismo e racismo na sociedade brasileira.

“Criminalização da pobreza” ou dos pobres que assustam os ricos?”

Vários pensadores e ativistas políticos sensíveis aos direitos humanos vêm alertando para o caráter sistematicamente violento do tratamento disponibilizado pelo Estado aos pobres. Este fenômeno que não é novidade na sociedade moderna (capitalista), e muito menos privilegio tupiniquim. Amplia-se nas últimas décadas ao passo que avança a integração do mundo sob a lógica da mundialização do Capital.

Esta violência contra os “destituídos”, bem como a sua legitimação jurídico-ideológica é interpretada por alguns pensadores como parte de um processo chamado de “criminalização da pobreza”. De acordo com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1998), o período que se passa não mais é regido, como foi à época de Sigmund Freud e K. Marx (principalmente deste último), onde, forças da modernidade clássica eram voltadas à interdição do desejo em nome da segurança e da estabilidade social.

Para Bauman, nossa época é marcada por incertezas e transformações constantes, regidas pela busca desenfreada de uma liberdade individual extrema; a convivência social bem como as manifestações que orquestram a vida em sociedade foi “hipotecada”. O sistema social outrora centrado na produção teria sido, para ele, paulatinamente alterado, de forma a centrar-se na circulação e no consumo exacerbado de mercadorias. Esta mudança seria observável pela crescente hegemonia do capital financeiro sobre o industrial, bem como a ampliação do consumismo e o individualismo pelo mundo. Estes, segundo o autor, seriam os traços marcantes de um novo período histórico, caracterizado como “pós-modernidade” (BAUMAN, 1998).

Para o sociólogo, o período pós-moderno é caracterizado pelo fortalecimento do capital financeiro, e este impulsiona o enfraquecimento dos Estados-Nações trazendo profundas modificações na sociedade contemporânea, ocasionando surgimento de uma massa de desassistidos pelo Estado e destituídos do acesso ao consumo, bem como do acesso aos direitos. Este contingente seria assim conhecido como “vagabundos” sem função e vazios de sentido, se repartem entre outros exemplos, entre as pessoas adictas, desempregadas, que possui incapacidade física e/ou psicológica, em que pese à cor da pele entre todos estes.

Neste “novo” cenário de pós-modernidade “as ‘classes perigosas’ (de outrora) são assim redefinidas como classes de criminosos. E, desse modo, as prisões agora, completa e verdadeiramente, fazem as vezes das definhantes instituições do bem-estar” (BAUMAN, apud LAIGNIER 2010). O encarceramento em massa, sempre dirigido aos pobres do sistema seria, portanto, uma característica desta nova conjuntura, já que estes (os pobres) passam a ser culpabilizados por sua pobreza:

A responsabilidade por não integrarem o sistema de forma plena, embora isso seja cada vez mais difícil, é relegada às próprias pessoas pobres, redundantes, consumidores falhos ou mesmo refugo humano. Como afirma Bauman, “cada vez mais, ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o produto de predisposições ou intenções criminosas – abuso de álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistência, merecem ódio e condenação – como a própria encarnação do pecado”. (Laignier, 2010:65)

Em síntese, os pobres culpabilizados por um fracasso que lhes foi atribuído, passam a ser perseguidos e condenados pelos crimes dos quais são vítimas. A comprovação para esta tese estaria no índice desproporcional de despossuídos (negros, chicanos, árabes) nas penitenciárias públicas dos países centrais. Esta tese, embora abordem questões relevantes e urgentes de serem encarados pela sociedade contemporânea, possibilita elencar alguns pontos que merecem ser debatidos para que não se perca de vista algumas questões importantes.

É verdade, como afirma a socióloga  e professora de Criminologia Vera Malaguti Batista[10], que a frequente associação midiática da criminalidade à pobreza tem sido uma importante estratégia de controle social dos pobres. Os pobres são apresentados como “propensos à criminalidade”, e neste sentido, justifica-se as ações violentas do Estado contra eles[11]. Este processo de criminalização configura-se, portanto, como importante estratégia de controle social (ou se preferirmos, da sociedade).

O problema, a nosso ver, é que a operacionalização do conceito de  “criminalização da pobreza”,  tal como descrito por Bauman, pode ocultar, ou pelo menos subestimar alguns traços fundamentais da organização geral do sistema capitalista.

Em primeiro lugar, é questionável que a sociedade contemporânea tenha se reconfigurado substancialmente  em relação à “modernidade clássica” a ponto de estarmos em uma “nova era” de desregulamentação, privatização, desordens e incertezas.  Se por um lado, a aceleração dos ritmos produtivos teve efeitos imediatos no padrão de vida das pessoas, provocando transformações contínuas e imprevisíveis, ampliando as suas angústias e sensações de insegurança, também é fato que o crescimento do consumo, ou o consumismo exacerbado, só pode ser posto em prática na medida em que o ciclo de reprodução do capital  amplia a produção dos bens de consumo.

Para ser mais preciso: não é possível consumir o que não foi produzido, e é justamente a ampliação exacerbada das esferas produtivas que viabiliza, e principalmente impulsiona o desenvolvimento de um consumismo desenfreado o suficiente para absorver as mercadorias produzidas (em escala cada vez maior).

À dispensa do trabalho vivo das unidades produtivas que se encontram no topo da cadeia produtora de valor, segue-se sua utilização intensiva e extensiva em espaços produtivos espalhados por amplos territórios. Sob diferentes formas jurídicas de apropriação da força de trabalho, segue-se sua utilização nos serviços que fazem as mercadorias chegarem mais reluzentes, mais rapidamente e com a qualidade de mercado – seja para o consumo produtivo (circulação entre unidades produtivas), seja para o consumidor final (FERRARI, 2005).

Aliás, a suposição de que o consumo passou a ser mais importante do que a produção na sociedade contemporânea configura-se como uma mistificação da realidade que só é útil a quem interessa manter o atual estado das coisas. Esta mistificação é um exemplo emblemático para entender o que Ferrari (2005), denuncia como “a ilusão do rabo abanar o cachorro”:

Interpretes da realidade, não escassos na academia, escamoteiam a apropriação do tempo de trabalho excedente como fonte do valor, atribuem esta fonte a um poder intrínseco ao capital ou a atividades ligadas à circulação. Para estes apologetas não é o cachorro que abana a cauda – como pulgas situadas no rabo, juram que estes, ao circular freneticamente , está a balançar o cachorro. Estas opiniões expressam a aparência da supressão do trabalho produtivo direto. Expressam também, a atribuição de uma importância quase exclusiva à esfera da circulação (FERRARI, 2005).

Esta suposição acaba por maquiar a real natureza do sistema capitalista, pois este, apesar de apresentar mudanças significativas ao longo de seu desenvolvimento, manteve em essência o que o torna viável, a extração da mais-valia sobre o trabalho assalariado.

O processo de automação e a intensificação do trabalho[12], observados por Marx em O Capital são os elementos-chave para se compreender a ampliação contínua da apropriação do trabalho não pago, e estes elementos estão presentes na sociedade capitalista desde o século XIX até os nossos dias, e hoje, de forma mais latente que ha 150 anos. Se é verdade que o progressivo desenvolvimento tecnológico (incorporação de mais trabalho morto no processo produtivo) [13], possibilitou a expulsão da força de trabalho ( trabalho vivo) do interior das fábricas,  agudizando com isto as contradições inerentes sociabilidade  contemporânea, é mister considerar que  continua sendo a apropriação privada da mais-valia, própria do processo produtivo, o elemento central de acumulação de capital e organização da sociedade capitalista (ANTUNES, 1995).

Este é um ponto do qual não se deve abrir mão, sob o risco de maquiar a realidade. O sistema capitalista não ficou estacionado no tempo desde os estudos de K. Marx, pelo contrário, o seu sucesso deve-se justamente a sua capacidade de auto-reprodução. A cada novo ciclo de acumulação, novas e mais agudas contradições se apresentam, sendo transferidas e imediatamente sentidas pelo conjunto da sociedade a partir de novos e intensos conflitos.  Os Fenômenos apontados por Bauman expressam bem estes conflitos. O problema é que em essência, este “novo” estágio não rompe com os elementos basilares do estagio “anterior”, a não ser pela intensidade das contradições que ele gera.

Esta “nova era” “pos-moderna” marcada pela fluidez liquescente das lógicas clássicas de exploração  não se observa na realidade objetiva, a não ser para aqueles que tomem por causa os efeitos de um processo que se reorganiza para manter o fundamental. É nestes termos que pretendemos analisar o fenômeno da criminalização.

O outro ponto que nos cabe refletir  remete a nomenclatura em questão: “criminalização da Pobreza”. A nosso ver, o termo pode sugerir um efeito contrário ao que os seus formuladores propõe na medida em que traz a ideia de que é a pobreza o elemento a ser criminalizado, como se interessasse às classes dominantes combater (efetivamente) a pobreza como se esta lhe fosse um problema. Na verdade sabemos que para os formuladores e adeptos deste conceito, a preocupação anterior a denuncia da violência contra os pobres está no ato de trata-los como criminosos natos.  Neste caso, seria mais coerente falar em criminalização dos pobres, e não da pobreza, já que para as classes dominantes não interessa ataque aos elementos que a fazem dominante como a pobreza, e sim àqueles (os pobres) que por algum motivo ameaçam este domínio, neste caso os pobres.

No atual estágio de reprodução do Capital, aqueles classificados por Bauman como “excluídos da sociedade do consumo” [14],   embora já descritos por Marx como exército industrial de reserva, encontram-se em boa parte, como uma “reserva” sem perspectiva de ser aproveitada pelo mercado de trabalho cada vez mais automatizado e informatizado. Estes, embora vivenciem as situações mais extremas de pobreza e violência, não estão e não poderiam estar fora (excluídos) da sociedade.  Pelo contrário, assumem posições precisas na organização geral, e inclusive na dinamização da sociedade capitalista, seja a partir de sua contribuição em setores de trabalho de sub-emprego que são na sociedade “mal vistos”, porém necessários à economia[15], seja na contribuição demográfica ao rebaixamento geral do valor da força de trabalho (salário).

Dito de outra forma, a pobreza não é indesejável para o sistema, mas necessária, já que a função dos pobres na sociedade capitalista é serem pobres, e  não há nenhum problema nisto. O problema começa quando os “despossuídos” de alguma forma representam (mesmo que simbolicamente) algum entrave ou risco a estabilidade geral deste moinho-de-gente que os consomem.

Os ataques do Estado com o uso incabível da violência às favelas do Rio de Janeiro não surgem (somente) de uma necessidade moral[16] de exterminar os pobreza da vista dos ricos, muito menos de “pacificar” [17] os pobres. É senão antes, uma forma de reorganizar a correlação de forças sociais pelo monopólio do controle (por parte do Estado) que se vale do uso da violência em regiões estratégicas de uma grande cidade turística em plena ascensão do mercado (especulativo) imobiliário, por razões óbvias de um momento político estratégico, em uma capital inchada por pessoas, sendo muitas delas nas favelas “improdutivas” ao Capital ao Estado. Deixar escapar este fato é perder os elementos centrais que possibilitam entender porque a Política das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora se localizam geograficamente nos corredores turísticos (efetivos ou em potenciais) da “cidade maravilhosa”. Uma vez implantadas, as Unidades Policiais reestabelecem a ordem, não para os moradores,  mas para os diversos interesses econômicos envolvidos, as condições para o livre-transito de mercadorias que antes ficavam sobre o monopólio comercial dos traficantes locais.

Por mais que os pobres (como um todo) sejam estigamitizados e apontados como “classes perigosas”, causadores de suas próprias chagas e ameaça constante aos “cidadãos de bem”,  não é a pobreza que representa um problema ao  Capital, e sim, os trabalhadores, empregados ou desempregados que eventualmente representem ameaça ou precisem ser realocados conforme as necessidade de livre-domínio do capital.

Mesmo quando direcionadas às populações pobres, as ações violentas do Estado não surgem aleatoriamente e este é a nosso ver um ponto central, na medida em que o conceito de “criminalização da pobreza” tal como descrito acima pode conter o risco de ocultar elementos fundantes da sociabilidade contemporânea (e lamentavelmente moderna).

O que se contrapõe ao Estado Penal?

Outro ponto relevante para este debate é o conceito de Estado Penal, mormente utilizado nos debates sobre a violência do Estado contemporâneo sobre determinadas populações. Num sistemático estudo sobre o sistema penal estadunidense, Wacquant (2001, 2002, 2003 e 2007) denuncia que a ampliação abrupta do número de presos nos países centrais está profundamente relacionada à diminuição Welfare State naquele país.

O número de reclusos havia diminuído; um relatório oficial enviado a Nixon preconizava a contenção das iniciativas de construção de prisões e a abolição da detenção dos menores de idade. Dez anos mais tarde, contra todas as expectativas, a população carcerária aumentou de 380.000 para 780.000 detentos, dobrando novamente até atingir 1,5 milhões em 1995. Hoje, essa marca se aproxima de dois milhões, dos quais um milhão de condenados é por infrações não-violentas, e ninguém sabe como travar essa máquina infernal de aprisionar. Com 700 detentos por 100.000 habitantes – (WACQUANT, 2007)

O Estado Social (Welfare State), marcado por políticas de seguridade social mínimas, vai sendo substituído por um Estado Penal, expresso pela perseguição sistemática dos pobres e ampliação abrupta do sistema penal. Este novo processo é marcado, segundo o autor, por uma cabeça liberal e um corpo autoritário.

A transição do Estado Social para o Estado Penal é marcada pela intensificação dos preconceitos em relação aos pobres (criminalização) e articula políticas governamentais de caridade com a ampliação da repressão, buscando sempre enquadrar o “público alvo” num perfil desejado às classes dominantes:

As duas principais modalidades de política de criminalização que, nos Estados Unidos, substituíram progressivamente, nas últimas três décadas, um semi  Estado-providência por um Estado policial foram: a) os dispositivos do  workfare, que transforma os serviços sociais em instrumento de vigilância e controle das classes consideradas “perigosas” – condicionam o acesso à assistência social à adoção de certas normas de conduta (sexual, familiar, educativa, etc.), e o beneficiário do programa deve se submeter a qualquer emprego (não importa a remuneração nem as condições de trabalho); e b) a adoção de uma política de “contenção repressiva” dos pobres, por meio do encarceramento em massa, tendo como resultado mais visível e estarrecedor um crescimento da população carcerária nunca visto em uma sociedade democrática, de 314% em 20 anos (entre 1970 a 1991).( ARGÜELLO, 2005)

Argüello (2005) evidencia que a alteração das relações de produção observada nas ultimas décadas exigem uma reconfiguração da relação entre o Estado e o conjunto da sociedade, impulsionando a redução de impostos e taxas de qualquer natureza,  a eliminação do  sistema de proteção social e principalmente a flexibilização do mercado de trabalho e expulsão de um enorme contingente de trabalhadores para o mercado informal, permitindo maior exploração da força de trabalho.

Este processo, no entanto, não é viável sem a ampliação da repressão social sobre determinados grupos, já que os efeitos desta reorganização social cairão ferozmente sobre os pobres. O Estado pune para conter os efeitos de suas omissões. É neste contexto que se ampliam, inclusive com a injeção de grandes investimentos privados e estatais, junto ao sistema prisional nos países centrais.

O que importa para a nossa reflexão, é que esta tendência de penalização da vida vem sendo frequente desejada, afirmada e comemorada pelos setores mais conservadores da sociedade. É crescente no Brasil um enfoque distorcido no tema da “segurança pública” com o apelo  às políticas de repressão estatal cada vez mais enérgicas. Este apelo tem mediado o planejamento e execução de políticas que escondem em última instância as verdadeiras contradições existentes em nossa sociedade, e garante de quebra, a legitimidade do uso desmedido da violência contra as “classes perigosas”.

Neste cenário, o desafio que se apresenta é o seguinte: Se a tendência à penalização da vida vem ganhando cada vez mais espaço e legitimidade na sociedade contemporânea ao passo que se diluem as conquistas sociais obtidas com o Welfare State (no caso dos países centrais, ou a ausência do Estado Democrático de Direito nos países periféricos), como propor e lutar pela superação deste Estado Penal, sem se limitar a uma afirmação saudosista do Estado de Bem Estar Social?

O Welfarestate surgiu num contexto específico de  final de guerra Fria e desenvolvimento do capitalismo Taylor-fordista, incorporando demandas sociais das classes trabalhadoras dos países centrais, na medida em que as classes dominantes sentiam a necessidade de oferecer (por via estatal) melhores condições à exploração da força de trabalho e, principalmente, fazer propaganda contrária ao fantasma vermelho, representado pelos blocos soviéticos.  Neste contexto, o Estado precisava fazer-se presente nas ações de impulso ao crescimento e equilíbrio econômico, mas principalmente forte na repressão a qualquer resquício de desordem social (em especial às desordens politicamente organizadas pela classe trabalhadora).

Denunciar o desgaste do Estado Social no contexto do capitalismo contemporâneo exige explicitar que o antônimo para Estado Penal não é implantação do Estado (democrático?) de Direito, mas colocar na pauta a violência institucionalizada como expressão fundamental do Estado Moderno, seja em sua manifestação liberal democrática, nunca vivida pelos países de via colonial como o Brasil, seja em sua manifestação autocrática.

A crítica ao Estado Penal deve estar articulada à compreensão mais geral sobre a relação autodependente entre a Sociedade Civil e o Estado. Se for verdade que a criminalização, violência e o encarceramento se agudizam numa época em que a reestruturação produtiva impulsiona a intensificação dos ritmos produtivos, também é verdade que estes fenômenos não são novidade para o Estado moderno, mas agora, assumem funções mais precisas na sincronização dos espaços e ritmos produtivos segundo as atuais necessidades de reprodução.

O círculo mágico (vicioso)  compreende o imenso papel que desempenha o poder político na auto-reprodução ampliada do universo regido pelo capital; e, vice-versa, o modo pelo qual a sociedade civil do capital representa o reproduz a formação política dominante segundo sua própria imagem. Um mundo articulado de dimensões solidárias entre sí, graças à interdependência entre sociedade civil e estado, tendo o capital como centro organizativo de ambos. Ou seja, a sociedade civil, articulada em torno do poder econômico, assegura a dominação capitalista sobre o estado político e, através deste, sobre o conjunto da sociedade, formando, assim um anel autoperpetuador. (CHASIN, 2000:93a)

Em outras palavras, a violência do Estado é expressão de sua essência, e não apenas desta fase de desenvolvimento capitalista, banalizada sob o signo do “neoliberalismo”. Mesmo que fosse possível retornar ao Estado Social (lembramos, nunca vivido pelos países da periferia capitalista), não estaríamos combatendo a violência sistemática do Estado contra (frações específicas da) Sociedade Civil.

“A menos que suprima a sí mesmo, o estado não pode suprimir a contradição entre o papel e a boa vontade da administração, de um lado, seus meios e seu poder, doutro. Ele repousa sobre esta contradição. Em verdade, a impotência é a lei natural da administração, quando ela é posta diante das consequências que resultam da natureza anti-social desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, este esquartejamento, esta baixeza, esta escravidão da sociedade civil” (MARX, 2010)

O que se pretende chamar a atenção é o risco de se caminhar para a legitimação naturalizante das relações de produção capitalista, na medida em que a crítica ao “Estado Penal” (muito visível neste estágio de desenvolvimento capitalista) seja entendida como contraposição a um Estado (Democrático) de Direito, pretensamente isento das mesmas contradições que permeiam o famigerado Estado Penal. O Estado (Democrático) de Direito[18],  muitas vezes apontado como horizonte a ser alcançado,  não pode prescindir da violência, mesmo quando disponha de meios ideológicos de legitimidade, aceitação  e reconhecimento.

Ferrari (2008) em seu estudo sobre as transformações no processo produtivo e os seus novos elementos de  legitimação ideológica chama a atenção para um perigo que todos estamos sujeitos:

Estas alterações geradas pelo caráter contraditório da forma atual da acumulação capitalista e pela luta de classes contemporâneas, reproduzem outras contradições a que pretendemos aludir: as lutas populares imediatas são incorporadas ao próprio progresso capitalista ou, ainda estas lutas possuem em seu próprio seio, pela forma de interlocução com o Estado, o germe de legitimação deste mesmo Estado e de suas instituições (FERRARI, 2008:14)

Observa-se que as atuais rearticulações da luta de classe se complexificam a ponto de se assistir à incorporação por parte do capital, de demandas históricas e legítimas da classe trabalhadora, mas sempre filtradas e higienizadas a ponto de perder o seu caráter subversivo.

Outro exemplo destas alterações observadas por Ferrari é a legítima demanda dos movimentos pelos direitos humanos por uma humanização dos presídios e o estabelecimento de penas alternativas para a efetiva “re”socialização do preso.  Wacquant ( 2003) denuncia como a expansão dos presídios estadunidenses em épocas de redução estatal dos gastos sociais  vão articular-se a estratégias de ampliação da exploração de mais valia nas prisões. Os estudos realizados pelo autor evidenciam um crescente  interesse de setores produtivos em explorar mão de obra barata que os presos possam oferecer em troca de redução da pena.  Esta nova tendência de mercado vem crescendo cada vez mais, e tem sido exportada para vários países na Europa e América Latina.

Comentando sobre esta tendência Argüello (2005) explica que a relação entre a fábrica e o cárcere sempre foram muito íntimas, seja através da cadeia em seu papel disciplinador, seja em sua função econômica, mas nas últimas décadas, esta relação tende a se estreitar ainda mais, dadas às novas necessidades de acumulação de capital. No caso dos países ricos:

(…)as prisões privadas, além de ser um negócio altamente lucrativo, podem trazer às multinacionais a comodidade de explorar a mão-de-obra escrava, legalmente, sem se deslocar para os “quintais” do mundo, onde normalmente exploram a força de trabalho escrava e infantil, mas ficam sujeitas a alguns riscos que os capitalistas (ao contrário do que diz a teoria liberal) não gostam de ter: possibilidade de rebeliões populares, instabilidade política, denúncias de organizações internacionais sobre o uso de mão-de-obra escrava e infantil que prejudicam o  marketing do produto, etc. (ARGÜELLO 2005:20)

Já nos países pobres, estes efeitos poderiam ser ainda mais perversos na medida em que:

Nos países pobres, ter a sua força de trabalho explorada na prisão ainda pode vir a ser considerado um “privilégio” dos condenados, diante do contingente de desempregados e miseráveis que desfilam do lado de fora. (idem)

O  crescimento do Estado Penal, além de atuar como estratégia de controle social das classes despossuídas, vem representando a exploração de novos nichos do mercado precarizado de força de trabalho. Esta tendência de arregimento dos presos para trabalhos manuais “educativos” ainda é tímida no Brasil, mas vem ganhando cada vez mais visibilidade como alternativa aos regimes de punição tradicionais, na medida em que possibilitam certa redução da pena.

Como visto, a tendência à penalização da vida representada pelo Estado Penal não é uma exclusividade do atual modelo de acumulação, mas ganha dimensões específicas e necessita ser questionado sem desconsiderar seus vínculos mais gerais com o caráter violento do Estado, e principalmente, as novas necessidades de acumulação capitalista. Interessa-nos discutir a relação destas (atuais) necessidades de acumulação com as ideologias racistas contemporâneas em sua função legitimadora da violência institucionalizada.

A política do medo e o encarceramento: aspectos raciais da dominação de classe

Nas seções anteriores busquei problematizar os conceitos de Criminalização da Pobreza e Estado Penal, com o objetivo de dialogar com alguns estudos contemporâneos sobre o tema da violência urbana e as políticas de repressão estatais. Em relação ao primeiro conceito, propôs-se refletir criticamente sobre o seu uso generalizado nas ciências humanas e nos movimentos sociais, já que a violência sistemática do Estado não se dirige à pobreza (enquanto estado econômico), mas sim aos sujeitos empobrecidos pelas relações sociais capitalistas. Sugeriu-se também que a relação do Estado com os pobres não é homogênea, mas pelo contrario, dirige-se a estes no momento exato em que eles representem ameaça, mesmo que simbólica ao ciclo de acumulação capitalista, seja nas áreas rurais, cada vez mais regidas pela logica industrializadas do agronegócio, seja nas cidades, gradualmente transformadas em esteiras de produção a céu aberto.

Em relação ao conceito de Estado Penal, concordei que o encarceramento em massa é a tônica do atual estágio de reprodução capitalista, na medida em que a repressão estatal aos pobres vem crescendo na medida em que se ampliam a negação do acesso aos direitos sociais historicamente conquistados. No entanto, foi levantada a polêmica sobre os riscos de se limitar a crítica do Estado Penal a uma afirmação abstrata do Estado Democrático de Direito.

Nesta seção pretende-se esboçar algumas reflexões sobre a relação entre capitalismo e racismo na sociedade brasileira, enfatizando a violência institucionalizada do estado sobre a população negra como expressão singular da luta de classes no país.  O insight surgiu a partir de uma breve leitura do livro: O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história de Vera Malaguti (2003). A autora estuda a política de discriminação do medo como estratégia de controle social das classes subalternas.

Embora o movimento negro tenha sido vitorioso nas últimas décadas, no que diz respeito à em sua insistente empreitada para desmascarar o mito da “democracia racial”, é fácil constatar que a sociedade brasileira ainda tem dificuldade de assumir o seu racismo. Esta postura conservadora é sociologicamente explicável, uma vez que assumir o racismo implica em oferecer legitimidade às diversas reivindicações pelo fim de privilégios raciais secularmente erigidos.

O que (infelizmente não) chama a atenção nesta triste equação é que o mito da “democracia racial”, que é base para a formação do pensamento social brasileiro, sendo amplamente difundido pelas elites é também compartilhado por boa parte dos pensadores e organizações políticas assumidamente marxistas. Este fenômeno tem sido trágico na medida em que contribui para o desastroso afastamento ideológico entre estes e os pensadores e ativistas ligados à luta anti-racista.

A questão que se levanta é que independente da “esquerda” reconhecer a importância do racismo para a manutenção do sistema capitalista, ou dos pensadores e militantes anti-racistas considerarem as relações intrínsecas entre capitalismo e racismo, estes elementos vêm se relacionando na prática desde o advento da escravidão moderna até os nossos dias, e no Brasil assumem uma dimensão singular dado as especificidades de entificação do capitalismo tupiniquim.

Para refletir sobre esta relação é necessário driblar a cegueira intelectual que impera nestes dois campos de análise e buscar como ponto de partida os elementos concretos que   possibilitaram o amadurecimento da sociedade contemporânea, e não as representações socialmente determinadas que a fetichizam. Não devemos, portanto partir:

… daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida (MARX, 1979) .

Dito de outra maneira, mesmo que “marxistas” e anti-racistas não consideram os nexos existentes entre capitalismo e racismo, estes nexos seguirão presentes na realidade objetiva, carentes de uma compreensão adequada que possibilite a sua superação.

É óbvio que não há espaço aqui para estudar exaustivamente as determinações reflexivas entre capitalismo e racismo, mesmo porque esta relação recíproca não é uma especificidade brasileira, mas parte inerente de todos os períodos de desenvolvimento capitalista. Defendemos inclusive a posição segundo o qual o racismo antecede a formulação teórica (pseudo-científica) do conceito da raça no século XIX, não sendo portanto, um mero reflexo mecânico dos interesses burgueses. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento histórico do racismo não pode ser  traçado, sob penas de mistificações, isolada do desenvolvimento mais geral do capitalismo. As suas varias expressões históricas estão profundamente relacionadas com as diversas fases e especificidades regionais que o capitalismo foi assumindo em seu processo de desenvolvimento até os dias atuais.

O caso brasileiro é emblemático na medida em que as vias de entificação capitalista não se pautaram, tal como nos países clássicos europeus “… por uma época de ilusões humanistas e de tentativas, mesmo utópicas, de realizar na prática o ‘cidadão’ e a comunidade democrática…” (CHASIN, 1978). Aqui, as classes dominantes optaram por uma objetivação do capital industrial marcada pelo acentuado atraso de seu arranque e um retardo estrutural. Esta especificidade resultará em uma serie de consequências que são sentidas até os nossos dias na medida em que o “progresso” sempre será marcado pela aliança com o que existe de mais retrogrado e conservador:

A aproximação da forma particular de objetivação do capitalismo brasileiro tem por parâmetro os contornos, traçados por Marx, da “miséria alemã”, mostrando que o caráter lento e tardio da constituição do capitalismo extrapola em muito a referência cronológica, gestando uma forma de ser específica que afeta todas as relações e categorias societárias. Lentidão determinada pela ausência de processos revolucionários de transição, substituídos pela conciliação entre atraso e progressos sociais, entre o modo de produção capitalista, que forceja por se desenvolver e impor, e modos de produção arcaicos, cuja sobrevivência, assim possibilitada, emperra e restringe o desenvolvimento do primeiro. De sorte “a emanação do novo para alto tributo ao historicamente velho”, alterando de modo substancial diversos aspectos da organização social, desde o ordenamento econômico, passando pelo caráter, perspectivas e limites de classe que está na ponta daquele processo de transição – a burguesia -, e atingindo as formas de exercício do poder político. (COTRIN –Prefácio. In: CHASIN, 2000b)

Esta longa citação ajuda a entender ajuda a entender o que Moura (1994) chama de particularidades do racismo brasileiro. Ao mesmo tempo em que o negro é considerado um “cidadão com os mesmos direitos e deveres dos demais”, a violência do período escravista deixou marcas profundas em sua personalidade, língua, formas de família, rituais religiosos e demais sistemas de referência, sobretudo, deixou marcas na ideologia das classes dominantes durante o surgimento da República. A igualdade jurídica de direitos se converteu num mito que teve como única utilidade maquiar desigualdades sociais econômicas e raciais. No “14 de maio”[19]:

O Negro foi obrigado a disputar a sua sobrevivência social, cultural e mesmo biológica em uma sociedade secularmente racista, na qual as técnicas de seleção profissional, cultural, política e étnica são feitas para que ele permaneça imobilizado nas camadas mais oprimidas, exploradas e subalternizadas. Podemos dizer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse processo de competição do Negro pois o interesse das classes dominantes é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores em seu conjunto (MOURA, 1994:160).

Este é o ponto que queremos explorar. As estratégias de barragens ao negro, além de serem expressão da luta de classes, a partir ações orquestradas pelas classes dominantes no Brasil para garantir a sua hegemonia num momento tão crucial de transição econômica, política e cultural, estas barreiras contribuíram para baixar os salários dos trabalhadores em seu conjunto. Eis aqui um nexo preciso entre capitalismo e racismo que tem sido pouco explorado nas ciências sociais.

Em uma extensa investigação sobre os medos cariocas do século XIX, Vera Malaguti (2003) analisa como a difusão generalizada do medo tem sido uma estratégia frequente das elites brasileiras para empreender ações autoritárias de controle social.  Ao estudar dados primários e secundários sobre a política criminal do Estado brasileiro, a autora evidencia que as políticas racistas e patrimonialistas foram à regra num período em que o Brasil transitava entre o atraso (escravista) e o moderno (industrial).

Para a autora, este caráter racista e patrimonialista ainda segue latente como a marca da sociedade brasileira. No prefacio do livro, Wacquant destaca esta relação entre o atual estado de violência e  este momento estudado pela autora, tão definidor para a consolidação do capitalismo brasileiro:

Malaguti Sugere que o policiamento seletivo, o viés judicial manifesto baseado em classe e cor, o tratamento cruel de infratores, o desrespeito rotineiro a direitos fundamentais e a indiferença ao consumo de corpos negros que caracteriza hoje o funcionamento da justiça criminal na metrópole brasileira têm sua origem no conturbado período imperial, quando o positivismo, o patrimonialismo e o racismo se encontraram e se fundiram na intelligentisia e no estado carioca. (WACQUANT – Prefacio in MALAGUTI, 2003)

Este fenômeno, longe de ser uma especificidade carioca e exclusividade destes períodos, tem sido a regra na formação do pensamento histórico e social. O desgaste político provocado pelas diversas insurreições negras durante o período colonial/escravista e imperial/escravista era sempre recompensado por alterações na  legislação  de forma normalizar a repressão brutal do elemento escravizado, tido sempre como risco em potencial.

A síndrome do medo das classes senhoriais tinha apoio material no grande número de escravos e na possibilidade permanente de sua rebeldia. Refletia uma ansiedade contínua e, com isto, a necessidade de um aparelho de controle social despótico, capaz de esmagar, ao primeiro sintoma de rebeldia, a possibilidade dessa massa escrava de rebelar (MOURA, 1988:332).

No mesmo caminho, Malugute (2003) destaca a presença deste medo generalizado, mas acrescenta um elemento. O medo vivido pelas elites nos vários períodos de transição que o país vivenciou não é apenas reflexo da ameaça de insurgência negra, ou subalterna. Ele é principalmente intencionalmente difundido e explorado como estratégia de legitimação da violência contra estas “classes perigosas”:

No Brasil a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. O ordenamento introduzido pela escravidão na formação sócio-econômica sofre diversos abalos a qualquer ameaça de insurreição. O fim da escravidão e a implantação da Republica (fenômenos quase concomitantes) não romperam jamais com aquele ordenamento. Nem do ponto de vista sócio-econômico, nem do cultural. Daí as consecutivas ondas de medo da rebelião negra, da descida dos morros. Elas são necessárias para a implantação de políticas de lei e ordem. A massa negra, escrava ou liberta, se transforma num gingantesco Zumbi que assombra a civilização; dos quilombos ao arrastão nas praias cariocas (MALAGUTI, 2003:21)

Bingo!!! As ondas de medo são conscientemente incentivadas e sistematicamente exploradas como estratégia de controle a partir da legitimação da violência sistêmica. Ocorre que, como insistimos mais acima, as ondas de medo não são indistintamente distribuída entre a classe trabalhadora como um todo, e muito menos aos pobres em geral. Afirmamos que embora as políticas de controle prejudiquem a classe trabalhadora como um todo. A violência só se legitima quando direcionada àqueles que representem, mesmo que simbolicamente a perturbação da ordem.

Se considerarmos os estudos de Clóvis Moura sobre as classes dominantes brasileiras à época de formação da primeira República, podemos notar que a mesma, profundamente impregnada por valores racistas semeados ao longo de mais de 300 anos de escravidão e regados pelas recentes teorias racistas vindas da Europa[20] via na simples reprodução biológica do negro uma ameaça ao projeto de nação que se esboçava: “O Brasil teria que ser branco e capitalista” (MOURA, 1988:79) ) e foi com base nestes pré-requisitos que o projeto de nação brasileira iniciado na República Velha (1889-1929) e implantado no Governo Vargas (1930-1945) sobre um regime de ditadura ganhou fôlego para se estruturar.

E é para resolver este problema, a elite hegemônica percebeu na importação de força de trabalho européia (considerada superior) uma saída pretensamente viável, sendo essa incentivada por diversas políticas governamentais. Clóvis Moura reúne uma série de evidencias que atestam que a expectativa de modernização da força de trabalho pela importação de mão de obra europeia foi frustrada.

Os imigrantes que vieram, em sua maioria eram oriundos de áreas rurais ou semi-industrializadas e tiveram muitas dificuldades de se adaptar à indústria nascente no Brasil (MOURA, 1988:86-95). O fato é que a burguesia já havia investido grandes montantes de capitais no processo de imigração e, portanto, não poderia reconhecer oficialmente o seu equívoco.  Restou ao negro seguiu assistindo a desvalorização de sua força de trabalho e vivencia em pleno o 14 de maio o aborto de qualquer possiblidade de uma vida considerada digna. Não é atoa que  exatamente neste momento a Lei da Vadiagem entra em vigor.

A ideologia racista no Brasil foi tão bem articulada que o negro aparece nela descrito como personificação do atraso brasileiro, a representação da escravidão num país que buscava se modernizar,  o que ainda hoje é combustível para incursões violentas como a invasão da favela Vila do Cruzeiro, citada no início deste texto. Ao mesmo tempo, a quantidade de pessoas embarreiradas no mercado de trabalho após o “14 de maio de 1988” resultava em uma imensa e ameaçadora massa de “destituídos” e “desajustados” pelos efeitos de uma violenta realidade. Para estes, o poder “preventivo” da repressão fez-se sentir em todos os âmbitos do poder. Assim, articulam-se num processo impiedoso de patologicização do negro  a medicina, a saúde pública, a imprensa, a política e principalmente a criminologia, buscando legitimar a violência sistemática dirigidas a estes grupos, e principalmente justificar sua exclusão através de sua pretensa deterioração inata (MALAGUTI, 2003).

Tudo isto posto, torna-se menos complexo  decifrar a constatação de realizada por Wacquant em relação ao perfil geral do presos no sistema penal estadunense:

A transição do Estado Providência para o Estado-Penitência não diz respeito, porém, a todos os americanos: ela se destina aos miseráveis, aos inúteis e aos insubordinados à ordem econômica e étnica que se segue ao abandono do compromisso fordista-keynesiano e à crise do gueto. Volta-se para aqueles que compõem o sub-proletariado negro das grandes cidades, as frações desqualificadas da classe operária, aos que recusam o trabalho mal remunerado e se voltam para a economia informal da rua, cujo carro-chefe é o tráfico de drogas. (WACQUANT, 2007)

Ou seja, as garras do Estado Penal não são dirigidas indistintamente  a todos os pobres. Elas entram em ação justamente no momento em que os pobres (ou os trabalhadores se preferirmos) passam a representar ameaça à determinadas lógicas de poder.

Esse medo branco que aumenta com o fim da escravidão e da monarquia produz uma República excludente, intolerante e truculenta com um projeto político autoritário. Esta foi sempre a síndrome do liberalismo oligárquico brasileiro, que funda a nossa República carregando dentro de si o principio da desigualdade legítima que herdara da escravidão. (MALAGUTE, 2003:37)

Este medo branco se analisado por um filtro economicista pode deixar escapar as permanências atualizadas das ideologias racistas num país que ainda não vivenciou nenhuma grande transformação impulsionada pela classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, ha que se considerar que a violência do Estado também se dirige ao negro, ainda tido como tipo-ideal suspeito, (BARROS, 2003), no exato momento em que ele representa ameaça, ou quando este consegue estar fora das áreas de controle da “Casa Grande”, para usar uma expressão do Mestre Hamilton Wale.

O brilhante trabalho de Teresinha Ferrari (2008) possibilita constatar que ao Capital importa seguir ampliando-se infinitamente, mas para isto, precisam esfolar cada vez mais a nós todos de forma a limar qualquer obstáculo à sua expansão. A reestruturação produtiva é acompanhada por um consequente rearranjo nas relações de produção como um todo, e para que estes rearranjos sejam viáveis, várias costuras ideológicas têm de ser realizadas para que se removam o máximo de barreiras possíveis a esta expansão.

Se por um lado as classes dominantes brasileiras – burguesia – ainda são herdeiras de um racismo que as acompanha desde a sua gênese, por outro lado, este racismo volta a tona (sem nunca ter ido) a partir de necessidades novas. O racismo segue oferecendo aos aparatos de repressão os elementos ideológicos que legitimam o livre uso da força do  Estado, mas agora, a violência institucionalizada tem como objetivo reorganizar as cidades segundo à lógica da fabricalização.

Num momento em que as cidades passam cada vez mais a conformar-se como esteiras produtivas a céu aberto. A tarefa de sincronização dos ritmos e espaços sociais, mesmo fora da fábrica, é essencial para a viabilidade do sistema. Não é mais (apenas) a fábrica que precisa ser disciplinada. Ela mesma, ampliada para fora de seus muros exige que as malhas viárias,  ritmos de vida, forma de lazer, de desejo, afeto e principalmente rebeldia sejam canalizadas (domesticadas) de forma a não oferecer obstáculo ao fluxo “just in time”. (FERRARI, 2008)

Além disso, a população negra alocada em lugares tradicionalmente úteis a especulação imobiliária contemporânea, em que pese a formação das favelas nas principais capitais brasileiras, que são resultados da sobrevivência destes povos que tinham que residir próximos do local de trabalho, o que com o advento do crescimento das cidades tornaram os territórios negros preciosos aos olhos do capital (SANTOS,1996). Tanto no caso dos Quilombos como no caso das favelas, os territórios ocupados por negros passam cada vez mais a ser cobiçados por grandes interesses privados. O discurso da criminalização além de reforçar estereótipos seculares na população negra, condenando milhares a uma vida sem perspectiva, quando sobrevivem aos índices de mortalidade corpórea e simbólica, vem com força para legitimar a violência do Estado sobre todos. Afinal, em nome da segurança, que venham câmeras oniscientes e policiamento ostensivo em cada canto da vida.

Os 493 jovens que tiveram sua vida interrompida simplesmente por se enquadrar no perfil ideal de suspeito no episódio de São Paulo, citado no início deste texto terão morrido em vão se caírem no esquecimento macabro da indiferença e no silenciamento da hegemonia  branca burguesa frente ao extermínio negro. Ao mesmo tempo, se acreditarmos, como querem os apologetas do sistema capitalista, que contra essa forma de existência não existem alternativas: talvez a nós “os despossuídos do mundo” e “Condenados desta Terra”  reste apenas  “rezar” por uma intervenção  divina,  mas se ela não vir Importará dar ouvidos e considerar literalmente a metáfora cantada pelo Grupo Facção Central quando afirmam que “em tempo de guerra a Kalishnicove é a oração”[21].

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[1] Deixo expresso os meus sinceros agradecimentos ao pesquisador Juliano Gonçalves Pereira pelos preciosos comentários teóricos e dicas de revisão sem os quais não teria sido possível concluir este trabalho.

[2] Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de São Carlos; Professor de História da África e da cultura negra no Brasil; Integrante do Grupo KILOMBAGEM. Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/1381425552378145

[3] Cavalcanti Brandão in Malaguti, 2003.

[4] O termo “espetáculo”, amplamente  estudado por  Gui Debord, pode ser analisado a partir da letra de Rap “espetáculo do circo dos horrores” (2006) do Grupo: Facção Central: http://letras.terra.com.br/faccao-central/732210/ .

[5] Ver:

[6] Em O Capital de K. Marx(1985) Lê-se: “o descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, a escravização e sepultamento nas minas da população aborígine, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente africano em local de caça de escravos negros: são todos feitos que assinalaram os alvores da era de produção capitalista. Estes processos idílicos representam outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação original”.

[7] Durante o confronto foram assassinados cerca de 59 policiais civis e militares (inclusive bombeiros), agentes penitenciários e guardas civis(SALVADORI, 2009).

[8]Vale lembrar que em meio ao clima espetacular que se criou, a Polícia ganhou “autorização” social para escolher suas vítimas, julgá-las e executa-las.

[9] O Espetáculo do Circo dos Horrores é o nome da música de introdução do álbum com o mesmo nome lançado em 2006 pelo Grupo Facção Central.

[10] Ver: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7098&cod_canal=41

[11] No livro: O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. (2003) Vera Malaguti ao fazer um levantamento de levantes e revoltas populares de grande expressão no Brasil expõe como a política do medo foi (e é) utilizada como estratégia sistemática de controle: “No Brasil a difusão do medo do caos e da desordem tem servido sempre para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas”

[12] Ver neste sentido MARX, Karl. Maquinaria e Grande Indústria. In O Capital. Crítica da Economia Política. Livro Primeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

[13] Amplamente potencializado pela informatização dos processos produtivos

[14] Lembremos que o ser humano é um ser vivo, e enquanto o for,  necessitará consumir os elementos mínimos para se reproduzir, ao menos biológicamente. Não é possível estar excluído do consumo e continuar vivo. Do mesmo modo, há que se questionar se aqueles que não dispõem do mínimo para se reproduzir nesta sociedade estejam por isto, excluídos da sociedade (de consumo), ou se a sua condição de “excluído” é justamente a sua função numa sociedade que necessita queimar riqueza social para valorizá-la no mercado. Neste sentido temos reservas à formulação de Bauman descrita em Amor Líquido (2004)   “Pobres daqueles que, em razão da escassez de recursos, são condenados a continuar usando bens que não mais contêm a promessa de sensações novas e inéditas. Pobres daqueles que, pela mesma razão, permanecem presos a um único bem em vez de flanar entre um sortimento amplo e aparentemente inesgotável. Tais pessoas são os excluídos na sociedade de consumo, os consumidores falhos, os inadequados e os incompetentes, os fracassados – famintos definhando em meio à opulência do banquete consumista.”

[15] Chico de Oliveira (2003) evidencia a importância da pobreza para a dinamização do escoamento de mercadorias de todo o tipo no mercado informal das grandes cidades brasileiras.

[16] “Para Bauman, ser hoje um consumidor falho significa evidenciar as próprias falhas sistêmicas e, nesse sentido, esses cidadãos devem ser excluídos a qualquer custo. Trata-se de uma dupla exclusão, portanto: aos excluídos, a criminalização (e consequente encarceramento) que os exclui concretamente da visão dos incluídos.” ( Laignier 2010)

[17] Na ocupação colonial do continente africano para exploração de riquezas durante o “novo imperialismo” (DAVIS, 2002) utilizava-se o termo  “civilização” (dos bárbaros primitivos) com o mesmo tom que hoje se utiliza o termo “pacificação das favelas”.  Nos dois casos vemos a subsunção de seres humanos a uma “ordem” exógena de interesses não explicitados. Ver neste sentido os Estudos de Frantz Fanon (1969 e 2005).

[18] Vale lembrar que nunca foi vivido efetivamente no Brasil.

[19] Termo cunhado por Deise Benedito (2006) refere-se ao período histórico que sucede à abolição da escravidão no Brasil.

[20] Destaca-se aqui a Eugenia. Ver neste sentido Stepan NL. A hora da eugenia: Raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. 228 p. (coleção história e saúde).

[21]Ver a letra na íntegra: http://letras.terra.com.br/faccao-central/787139/